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Miranda Jordão e o jornalismo com dignidade

Marcelo Auler, de Brasília

Jorge Miranda Jordão (Foto: Centro de Cultua e Memória do Jornalismo – CCMJ)

Na tarde desta quarta-feira (12/02) os amigos no Rio irão se despedir de Jorge de Miranda Jordão (1932-2020), cujo corpo será velado no Cemitério do Catumbi. Infelizmente, por estar em Brasília, não poderei me despedir dele. Tal e qual seu mais fraternal amigo, Frei Betto, que se encontra no exterior, de onde mandou-me o artigo abaixo falando de sua longa relação de amizade com o mesmo – mais de meio século – que acabou tornando-se um caso de amor.

Betto eu conheci em 1978 e nossa amizade se solidificou a partir de 1980, quando fui residir em São Paulo. Miranda só fui conhecer nos anos 200, quando ele assumiu a direção de redação do jornal O Dia, onde eu era repórter desde 1994. Pelo calendário, convivemos pouco profissionalmente. Atendendo ao meu pedido, me demitiu em 2001, naquilo que denominei projeto “Vamos ser Felizes”. A demissão alegrava aos meus chefes imediatos com os quais estava tendo problemas de relacionamento e a mim, pois ganharia o rumo de casa, com o dinheiro a que tinha direito, parando de me perturbar com brigas menores por questões profissionais.

Não me arrependo da demissão. Mas lamentei muito a perda de convivência profissional com Miranda Jordão um jornalista que entendia o que era jornalismo, ao contrário de muitos outros chefes que existem por aí (e aqui não me refiro aos chefes anteriores em O Dia). Mas foi fora do convívio da redação e a partir de encontros meus com ele e Betto – sempre regados a um bom uísque – que conheci um pouco mais da vida deste eterno bon vivant, que mesmo sem engajamento em organizações políticas, teve importante papel na resistência à ditadura militar, sem contudo fazer disso motivo de autopromoção. Tal e qual revela Betto no artigo abaixo.

O melhor de tudo, porém, era a coerência dele. Não era militante político. Não fazia apologias. Mas se posicionava sempre, do lado certo. Como jornalista, foi um profissional competentíssimo. Tanto assim que leva para o túmulo o exercício profissional com dignidade. Algo bastante raro nos dias atuais. Maior demonstração disso deu-se em 1994 quando, remando contra a maré, foi o único diretor de jornal – Diário Popular, de São Paulo – a não entrar na falsa história da Escola Base. Tal e qual lembrou, na segunda-feira (10/02), Luís Nassif, ao noticiar seu falecimento, no JornalGGN. De lá extraio o texto abaixo:

Haveria muita coisa a se contar de Jorge Miranda Jordão, excepcional jornalista, chefe e caráter.

Mas a reportagem que o consagrou definitivamente foi a que ele não escreveu. Quando dirigia o Diário Popular, em São Paulo, proibiu que o jornal entrasse no caso Escola Base.

Foi um momento de grandeza ímpar da imprensa“.

JORGE, UM CASO DE AMOR

Frei Betto(*)

Frei Betto e Jorge de Miranda Jordão (Foto: Arquivo pessoal de Frei Betto)

Foi em 1967 que conheci Jorge de Miranda Jordão, trazido ao convento dos Dominicanos em São Paulo pelas mãos de Thereza Cesário Alvim. A dupla enamorada alimentava ousada paixão jornalística: fundar um tablóide que, de algum modo, deixasse passar um raio de luz na escuridão imposta pelo regime militar. Quem sabe ressuscitar o “Brasil, Urgente”, fundado por meu confrade Carlos Josaphat e afundado pelo golpe de 1964. Naquela temporada paulista, o velho Frias convidou Jorge para reabrir a “Folha da Tarde”. Fui chamado para integrar a equipe após breve passagem pela revista “Realidade”.

Casos de amor não cabem nos estreitos limites da razão explicativa. Jorge e eu formávamos uma dupla que tinha tudo para dar errado. Ele, ateu e eu, cristão; ele, boêmio nas horas vagas e eu, frade: ele, diretor de redação e eu, repórter da Geral; ele, notívago e eu, matutino; ele apolítico e eu, de esquerda. No entanto, da convivência brotou a empatia e logo uma cumplicidade que se prolongou até a transvivenciação dele, a 10 de fevereiro de 2020.

Éramos os dois celibatários. De costume, saíamos muito tarde do jornal, que rodava de madrugada para chegar às bancas na hora do almoço. De bar em bar na noite paulistana, nossos papos avançaram da redação ao coração e, em seguida, à revolução. Convenci Jorge a ingressar como apoio na resistência à ditadura. Apresentei-o a Carlos Marighella, que Jorge tantas vezes transportou e hospedou. Isso estreitou a nossa amizade.

Poucos entendiam como um colecionador de revistas de mulheres nuas podia estar tão próximo de um frade estudante de antropologia e filosofia. A fachada de Jorge era o disfarce perfeito: por detrás do boêmio apreciador de uísque escondia-se o militante que imprimia à “Folha da Tarde” um tom crítico à ditadura e, nas horas vagas, costurava a rede de apoio à luta armada.

Em 1969, me transferi para o Rio Grande do Sul a pedido de Marighella com a missão de organizar o esquema de fronteira que tiraria do Brasil perseguidos políticos. Antes de dar fuga a sequestradores do embaixador americano, o primeiro a fazer uso do meu esquema foi Jorge. Marighella o encarregara de ir a Cuba levar uma mensagem a Fidel e aprender a operar a imprensa clandestina.

Em Montevidéu, Jorge caiu. Trazido preso para o Brasil, não cedeu às pressões. Queriam detalhes de nossas ligações. Jorge calou-se na tortura. O amor foi mais forte que a dor. Foi solto antes de minha prisão, em novembro de 1969. Então foi a minha vez de ser pressionado para falar de Jorge. Como ele, ative-me às relações profissionais. Se um tivesse falado do outro, talvez não estivéssemos vivos. Por isso, anos mais tarde, ao lançar “Batismo de sangue”, dediquei-o “a Jorge, que no afeto venceu o medo.”  O sobrenome dele só aparece na dedicatória a partir da edição de 2000.

Considero-me o irmão que Jorge não teve. Talentoso, era um ressuscitador de jornais, como fez com a “ Última Hora”, “O Diário Popular” e “O Dia”. Discreto, não se exibia nem frequentava colunas sociais. Mantinha-se distante do poder, seja ele político ou financeiro. Ético, jamais transgredia sua escala de valores. E era de uma fidelidade ímpar às amizades que colheu na vida.

Agora, o Amor o arrebatou desta vida. Tinha 87 anos.

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Típicos tipos, coletânea de perfis literários” (Garamond), entre outros livros.

 

 

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1 Comentário

  1. Tatiana de Miranda Jordão disse:

    Prezado Marcelo,
    Eu sou Tatiana, filha do Miranda Jordão. Gostaria de agradecer imensamente seu post sobre o meu pai. O enterramos hoje e foi um grande alento ver a enorme presença de seus amigos, muitos com dificuladades de locomoção. Minha irmã e eu ouvimos diversas hIstórias que não conhecíamos e ficamos muito confortadas. E seu post, da mesma forma, nos confortou bastante. Onrigada e um forte abraço a você.

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