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Marcelo Auler

Reportagem compartilhada com o Jornal do Brasil

O governo do Ceará decidiu recuperar o passado de lutas e, principalmente, opressões protagonizadas e sofridas pelo seu povo. Preocupado em não deixar cair no esquecimento fatos históricos importantes que marcaram – dolorosamente – as famílias cearenses, o governo do estado realiza uma licitação para a produzir uma cartografia da memória do estado. O processo entrou, segunda-feira (19/11), na fase de habilitação, aguardando agora a proposta de execução do projeto pela empresa escolhida.

Como o Blog, em reportagens compartilhadas com o Jornal do Brasil, noticiou no domingo (11/11) – “Campos de concentração” cearenses precederam aos de Hitler – e na segunda-feira (12/11) – Sem o Estado, caminhada lembra mortos no “campo de concentração” – parte da memória destes fatos históricos no estado vinha sendo mantida viva graças à religiosidade popular, sem qualquer participação do Estado. Acontece, por exemplo, com as grandes concentrações de retirantes que buscavam forma de sobrevivência na seca de 1932 e foram confinados em campos de concentração, impedidos de chegar à capital, Fortaleza.

Nas reportagens mostramos que foi pela persistência dos cristãos, que jamais deixaram de encomendar missas para as Almas do Açude do Patu, que a existência de um Campo de Concentração, na cidade de Senador Pompeu (273 quilômetros da capital), não caiu no esquecimento. Nele, milhares de flagelados da seca de 1932, incluindo crianças, depois de serem amotinados em ambientes insalubres, morreram sem a devida assistência do governo. Depois, foram enterrados sem qualquer respeito humano, em valas coletivas.

Para manter viva esta lembrança, há 36 anos, anualmente, no segundo domingo de novembro, os cearenses do semiárido realizam a chamada  “Caminhada pelas Almas” do Açude do Patu – ou Caminhada da Seca -, na qual percorrem cinco quilômetros a pé reverenciando os milhares de mortos em um dos vários campos de concentração criados naquele ano. Visitam o cemitério simbólico que eles próprios criaram como um marco da tragédia que vitimou milhares de flagelados.

No segundo domingo de novembro (11/11), milhares de pessoas caminharam em direção ao cemitério do Açude do Patu para reverenciarem os mortos da seca de 1932. (Foto: Marcelo Auler)

A omissão do Estado com relação às vítimas da seca desde o final do século XIX começa a ser revista pelo governo de Camilo Sobreira de Santana (PT), reeleito para ficar à frente do executivo cearense pelos próximos quatro anos.

Foi do Grupo de Trabalho sobre Memória e Verdade, criado pelo Decreto Nº 32.113, que o governador assinou em 23 de dezembro de 2016, que surgiu a proposta da cartografia. Indicará os locais onde o povo cearense foi vítima da opressão, não apenas no período de secas, mas também nas ditaduras imposta ao país ao longo do tempo.

“Trata-se de um trabalho de pesquisa científica, de consultoria, para mapear todos os espaços de memórias do estado. Espaços relacionados aos processos de resistência do povo do Ceará à opressão”, explica Demitri Cruz, titular da Coordenadoria de Direitos Humanos do governo estadual.

Segundo ele, o trabalho busca “estabelecer uma política estadual de memória que preserve o legado das lutas populares e das violações de direitos humanos ocorridas ao longo da formação histórica do Ceará, atuando, também, no resgate da verdade histórica dos cearenses que se opuseram à Ditadura Civil-Militar de 1964”.

Muito embora, aparentemente, o Grupo de Trabalho tenha um foco para o período da ditadura civil-militar de 1964 a 1981, sua ação poderá preencher outra lacuna da História do Ceará (e, consequentemente, do Brasil). Fará isso ao levantar as perseguições a flagelados das muitas secas que atingiram o Nordeste.

Nestas ocasiões, como o JB e o Blog noticiaram, milhares dos chamados “retirantes” do semiárido foram confinados em campos de concentração e ali morreram subnutridos, por doenças, sede e fome. Enfim, desatendidos pelo Estado. Ocorreu principalmente durante períodos de estiagem mais prolongados como os registrados nos anos de 1877, 1915 e 1932.

Na descrição de um relatório, de junho de 2017, da Coordenação de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura do Estado, tais espaços de confinamento visavam isolar extratos sociais considerados “desviantes”, “improdutivos”, “flagelados” que buscavam formas de sobrevivência junto às cidades, notadamente a capital Fortaleza. Ou, utilizando as palavras do promotor de Justiça da cidade de Senador Pompeu, Geraldo Laprovitera Teixeira, serviram como “barreiras sanitárias” como o propósito de, como definiu o padre Anastácio Ferreira de Oliveira, garantir a “higienização” da capital que vivia seu momento de “belle époque”.

Na Vila dos Ingleses, construções de 1923, estão para serem tombadas diante da importância histórica que têm. (Foto: Marcelo Auler)

História desconhecida – Fatos que, embora mantidos vivos pela iniciativa do povo do semiárido, são desconhecidos da maior parte da população, inclusive dos próprios cearenses.

Um exemplo é a procuradora da República Nilce Cunha Rodrigues que, em Fortaleza, responde pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC). Ela desconhecia a história dos campos de concentração até ser procurada pelo Blog.

“Com essas informações que me foram repassadas vou instaurar um Inquérito Civil pra investigar esses fatos e ver o que é possível conseguir apurar”, prometeu.

Outra iniciativa foi a do  promotor Laprovitera Teixeira que luta há mais de ano para que a prefeitura da cidade promova o tombamento da chamada Vila dos Ingleses”. Trata-se de um conjunto de construções erguidas no início da década de 20 pela companhia inglesa Dwight P. Robinson e Co., encarregada da construção do Açude do Patu. A obra foi paralisada pelo governo do presidente Artur Bernardes (novembro de 1922/novembro de 1926) e os imóveis utilizados quando da repressão aos flagelados da seca de 1932. Hoje sabe-se que o próprio governo estadual, através da sua secretaria de Cultura, cuida também do tombamento do que restou da Vila.

Junto à vila, na área onde o açude do Patu acabou erguido apenas nos anos 80, foi que os populares, com a ajuda da igreja católica, ergueram o cemitério simbólico onde reverenciam os mortos da tragédia de 32. O cemitério é onde, há 36 anos, a igreja, após a caminhada, celebra a missa em memória dos milhares de flagelados ali enterrados sem identificação, em valas comuns. Graças ao que restou da Vila dos Ingleses, trata-se do único dos sete campos de concentração criados no Ceará, em 1932, que ainda mantém seus resquícios.

Em Fortaleza, por exemplo, um destes locais de confinamento de flagelados – também popularmente chamados como “curral” – funcionou entre a antiga estação ferroviária Otávio Bonfim, aberta em 1922 como Estação Matadouro. Era onde desembarcavam o gado, vindo do interior, para ser abatido no matadouro ao lado e e alimentar a população da capital.

O antigo Campo de Concentração do Matadouro, em Fortaleza, virou praça e deverá ter uma placa recordando o que ali se passou em 1932 (Foto: Marcelo Auler)

Investigações necessárias – Desativada desde o início dos anos 2000, a estação foi derrubada – já o prédio do antigo matadouro abriga repartições públicas – e no lugar a prefeitura construiu uma praça. No muro, um painel lembra a antiga estação. A falta de referência ao campo de concentração que ali funcionou será suprida com uma placa onde se registrará o fato histórico. Ficará exposta em uma espécie de portal de madeira, já instalado.

A decisão do governo do Estado com essa cartografia poderá preencher lacunas da história do que realmente ocorreu nestes campos de concentração. Hoje, o que se sabe é fruto de estudos e pesquisas feitos de forma isolada, como a do advogado, que se tornou misto de historiador, Valdecy Alves.

Foi dele a iniciativa da primeira ação popular para tentar manter viva a memória do Campo de Concentração de Senador Pompeu, cidade onde nasceu e cresceu. Por isso, ao saber, através da reportagem publicada nesta quarta-feira (21/11) pelo Jornal do Brasil – Ceará em busca do seu passado -, da iniciativa do governo do Estado, saudou-a: ” Tomara que o que eles disseram realmente se torne ação”.

Reação parecida teve o padre Anastácio Ferreira de Oliveira, da diocese de Iguatu, um dos que, juntamente com o pároco da igreja de Nossa Senhora das Dores, de Senador Pompeu, padre João Melo dos Reis, há anos luta pela preservação do sítio arqueológico do açude do Patu: “que bom que o Governo do Estado do Ceará está avançando!”

O trabalho que o governo de Camilo Santana se propõe poderá esclarecer pontos ainda nebulosos. Como, por exemplo, o total de vítimas fatais nos campos de concentração da seca de 1932. Como noticiamos, os números são variados. Nas explicações do promotor Laprovitera Teixeira, a imprecisão de tais números é grande. Referindo-se ao campo do Patu, disse que “se estima que só em Senador Pompeu possam ter morrido entre 2.500 e 5.000 pessoas. Como lá, no auge, chegou a ter 20 mil pessoas, acredito na previsão de que um quarto das pessoas pereceram, morreram, um número estarrecedor”.

Há, porém, números mais elevados, como os que o jornalista Luiz Sucupira, de Senador Pompeu, extraiu do estudo feito pela historiadora Kênia Rios, da PUC-SP, no livro “Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932”. Por estes dados, 73.918 “molambudos” morreram nessas áreas de confinamento: 6.507, em Ipu; 1.800, em Fortaleza; 4.542, em Quixeramobim; 16.221, em Senador Pompeu; 28.648, em Cariús e 16.200, no Crato.

Registros de campos ce concentração do Ceará em 1933 (Arquivo pessoal Valdecy Alves)

A partir da cartografia, portanto, será necessário juntar os dados existentes isoladamente e promover uma investigação mais científica, que permita esclarecer a extensão das políticas de confinamento de flagelados, retirantes. Provavelmente até com escavações que possibilitem buscar restos mortais das pessoas jamais identificadas.

A intenção do governo com este trabalho é criar mecanismos de preservação da história de perseguições ao povo cearense. O próprio titular da Coordenadoria de Direitos Humanos do governo do Estado admite a necessidade de juntar as informações espalhadas a partir da iniciativa da cartografia:

“Esse instrumental é que comporá uma equipe que estará capacitada a fazer toda a coleta de informações. Sabemos de pessoas que por conta própria fizeram pesquisas, que as universidades têm estudo nessa área, mas agora precisamos consolidar. Esta é uma memória que é conhecida muito pouco pela população cearense, mas quem estuda, quem se debruça sobre os dados, os historiadores da cidade, as universidades conhecem esses fatos. Na verdade, precisamos dar a estas informações uma instrumentalidade que torne ela acessível ao conjunto da população”, diz Cruz.

Pelas explicações do governador ao Blog e ao JB, “o Grupo de Trabalho Memória e Verdade do Ceará atuará no resgaste histórico de vários momentos importantes de resistência no Ceará e terá como objetivo principal propor uma política que preserve o legado das lutas populares e da memória das violações de direitos humanos ocorridas ao longo da história”.

Verdade que, nas palavras de Camilo Santana, o GT parece ter um foco mais voltado ao “resgate da verdade e da memória histórica dos cearenses que se opuseram à ditadura militar”. Vítimas de prisões e torturas que ele, à frente do executivo estadual, tratou de “indenizar e pedir desculpas, em nome do Governo do Estado”. Fez isso por entender o que significaria para aqueles homens e mulheres anistiados, muitos dos quais, como lembrou, “foram presos lutando por algo imprescindível, pelo direito à liberdade e à democracia”.

Ao contrário, porém, das Comissões da Verdade que funcionaram no país, a preocupação dos cearenses se estenderá além dos períodos ditatoriais., em especial da civil-militar que durou de 1964 a 1985.

Nas palavras de Cruz, “certamente o fenômeno dos retirantes, da inserção deles em campos de concentração, tanto no interior como no entorno da capital, fará parte deste escopo da cartografia da memória”. Prosseguindo, explica que “a ideia é que a partir desta pesquisa seja promovido um material, um levantamento, que servirá tanto para trabalhar junto às escolas com a divulgação da cartografia da memória, quanto para instrumentalizar uma ação posterior de cultura e turismo. A cartografia será também o primeiro passo para constituirmos uma política de turismo histórico no nosso estado, a partir das referências de memória de resistência popular e também para trabalhar este conteúdo em sala de aula”.

Como explicou, já existe um trabalho inicial junto às escolas, com “ações pontuais, a partir do relato de pessoas que vivenciaram o processo de repressão. Trabalhamos principalmente com vítimas da ditadura militar, mas a ideia é que a partir da cartografia ampliemos este processo de identificação de espaço de memória, através desta compilação de dados e informações já existentes, e de pesquisa de campo. Esperamos, com este projeto, ter esse retrato de todas as iniciativas, de todos os processos históricos, incluindo os campos de concentração, para fazermos a divulgação tanto na área de educação, como na de cultural e do turismo”.

Paralelamente, o governo do Ceará, através da Secretaria de Cultura providencia o tombamento do sítio arquitetônico do açude do Patu. Há um tombamento inicial do que restou da chamada Vila dos Ingleses. Feito o tombamento e definida a cartografia, o passo subsequente, na explicação de Cruz, será “criarmos uma política de monumentos públicos para esses espaços. Um projeto de identificação física. Porque aquele lugar foi onde ocorreu aquele fato histórico, aquela violência. Então, a política de monumentalização seria um segundo passo”.

Vencido estes processos iniciais, Cruz diz que o governo do Estado estará acertando uma dívida antiga. “A investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania. Estudar o passado, resgatar sua verdade e trazer à tona seus acontecimentos, caracterizam forma de transmissão de experiência histórica que é essencial para a constituição da memória individual e coletiva. A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional e local”. O Ceará tenta, agora, vencer o silêncio que durante décadas se fez sobre os trágicos campos de concentração.

 

 

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