Em 1989 a Internet no Brasil ainda era incipiente. Funcionava apenas em ambientes acadêmicos. Estava distante do grande público. Portanto, naquela época, ainda não se falava de Fake News. Mas a primeira eleição direta para a Presidência da República pós ditadura civil-militar (1964/85) acabou marcada por grandes manipulações. Algo que está completando três décadas. Foi em 17 de dezembro de 1989 que Fernando Collor (então no PRN) consolidou-se presidente, após a votação do Segundo Turno da eleição, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Como não poderia deixar de ser, a grande manipulação teve digitais do Grupo Globo, em especial da Rede Globo de Televisão. Pode-se até discutir se o Jornal Nacional dos dias 15 (sexta-feira) e 16 (sábado) de dezembro, ao apresentar reportagens maldosamente editada sobre o último debate entre os dois candidatos, ocorrido na quinta-feira, 14/12, foi ou não decisivo para consolidar a vitória do então “caçador de marajás”. Fato é que o próprio então vice-presidente da maior rede de TV, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, como mostrou a Folha de S.Paulo no domingo da votação (17/12), admitiu que a edição do telejornal favoreceu a Collor de Mello.
“Ficou mais favorável a Collor”; houve um “erro de avaliação” do Departamento de Jornalismo da emissora; a edição refletiu “com uma pitada de exagero” a vantagem que Collor obteve sobre Lula. São afirmações feitas por Boni que constam da reportagem, como mostramos na ilustração acima. Não bastasse a confissão do vice-presidente da Rede Globo, um artigo de Nelson de Sá, no mesmo jornal, cravava:
“O “Jornal Nacional“, na ausência do horário gratuito, garantiu a Collor a propaganda de sua vitória no debate. O candidato do PT, é claro, ajudou com frases desairosas de cunho próprio: assim como o bem treinado Collor. A Globo só entrou coma arte de editar“.
Na realidade, a Globo e o próprio Boni fizeram muito mais a favor de Collor, candidato que a maior rede de TV havia assumido, assim como outros grandes jornais, como consequência do medo que o “sapo barbudo” – apelido que Leonel Brizola, ex-governador do Rio, que disputou o pleito pelo PDT dera a Lula ao decidir apoiá-lo no segundo turno – provocava na classe dominante.
Como anos depois o próprio Boni reconheceu em entrevistas, (ouça o vídeo abaixo) na GloboNews, ao repórter Geneton Moraes Neto, o à época poderoso homem da Globo, admitiu claramente que foi procurado por Collor e lhe deu conselhos de como enfrentar o popular Lula.
Entre outras sugestões, lhe retirou a gravata, usou glicerina para que o candidato almofadinha parecesse suar e ainda o fez entrar no estúdio com várias pastas que sugeriram denúncias contra o petista. Com antecedência, espalharam para jornalistas que denúncias – inclusive de um tal aparelho de som três em um – surgiriam no debate, provocando certa instabilidade no petista.
Antes do debate, o próprio Collor já tinha “armado” com o que hoje chamaríamos de Fake News. Tal e qual ocorreu, ano passado, com a “mamadeira de piroka”, por exemplo.
Pagou pelo depoimento de Miriam Cordeiro, antiga namorada de Lula e mãe de sua filha Lurian. Então com 15 anos, e muito ligada ao pai, a menina, como descreveu Mônica Bérgamo dez anos depois, “viu Miriam surgir na televisão e afirmar que seu pai, Lula, “me ofereceu dinheiro para abortar”. Numa cena financiada e levada ao ar por Fernando Collor de Mello, que disputava a Presidência, Miriam contou ainda que, depois do parto, entregou a filha “no colo” de Lula e disse: “Agora, você mata”. A imagem teve impacto histórico. O pai de Lurian perdeu a eleição“.
A ajuda de Boni, embora possa parecer pequena, tinha importância grande pois à época, as campanhas ainda não tinham adotado marketeiros. Collor foi quem deu início a isso. Já a campanha de Lula trabalhava com abnegados, na sua grande maioria sem remuneração, como o editor desse Blog que usou suas férias no Jornal do Brasil para ajudar na assessoria de imprensa comandada por Ricardo Kotscho e Sérgio Canova.
Tudo à base da improvisação. Para se atingir rádios do interior, por exemplo, Canova gravava entrevistas com Lula e os principais nomes do PT em fitas cassetes, copiava-as e depois saíamos de carro distribuindo por rádios do interior. A mim coube faze-lo em cidades do interior fluminense. Com gasolina paga do próprio bolso.
“No segundo turno havia mais de 250 rádios de todo o Brasil que divulgavam as entrevistas de Lula e de outras personalidades que o apoiavam. As fitas eram despachadas via Sedex. Foi uma epopeia“, resume Canova, lembrando que Paulo Okamoto, responsável pelas finanças, ainda reclamava das despesas com Correio.
Canova relembra o esquema formado para furar a “bolha” de então: “A equipe de comunicação da campanha também levava ao comitê eleitoral pessoas conhecidas para dar entrevistas ao vivo. A gente ligava para as emissoras de rádio de todo o Brasil e colocava à disposição personalidades como Marcelo Rubens Paiva, Sergio Mamberti, André Singer e o agrônomo José Gomes da Silva., entre outros. A receptividade era muito boa”.
“Era uma batalha entre Davi e Golias. A gente se virava como podia. Por exemplo: enviamos diariamente uma ou duas matérias (releases) sobre a campanha via “busca automática”, serviço de telex que passava os conteúdos para 30 destinatários (mídia) por vez. Enquanto que a campanha de Collor utilizava jatos alugados para levar imagens dele dos rincões do país para um local mais próximo onde eram transmitidas para as redes de televisão, incluindo a Globo. Um jatinho com esse tipo de material infelizmente caiu próximo a Belo Horizonte, vitimando todos os ocupantes“, recorda ainda Canova.
Com amplo apoio dos empresários, Collor atravessava o Brasil em jatinhos fretados, com financiamento arrecadado pelo seu fiel tesoureiro Paulo César Farias, o PC Farias. Um esquema que enriqueceu aos dois e que depois foi amplamente divulgado, já com a eleição terminada.
Lula, por sua vez, como recordou certa feita Kotscho, atravessava o país em voos de carreira, que sempre atrasavam seus compromissos. Só foi contar com aviões particulares – longe de serem jatos – no final do segundo turno.
Não bastassem as “armações” da Globo e as mentiras de Collor, o PT e Lula ainda tiveram que conviver com as armações da Polícia Civil de São Paulo em combinação com a Polícia Federal comandada por Romeu Tuma, o qual, no governo collorido, não só permaneceu à frente do Departamento de Polícia Federal (DPF) que já dirigia, como o acumulou com a Secretaria da Receita Federal.
A armação das polícias ocorreu no sábado, 16, véspera da votação, quando cercaram a casa onde, desde a segunda-feira anterior, o empresário Abílio Diniz, então proprietário do poderoso Grupo Pão de Açúcar, era mantido em cativeiro por um grupo de dez sequestradores – seis chilenos, dois canadenses, um brasileiro e um argentino. Alguns dos chilenos se intitulavam membros do MIR – Movimento de Izquierda Revolucionaria, do Chile.
Foi o suficiente para que, no próprio sábado, surgissem, a partir de policiais, em nítida manipulação, informações do envolvimento de alguns dos sequestradores com o Partido dos Trabalhadores. Espalhou-se pelo noticiário de rádios – a internet não existia então – a presença de um dos presos trajando camiseta do PT.
Por ser uma “nítida armação”, alguns jornais não embarcaram. Noticiaram com cautela. No dia da eleição, a Folha de S.Paulo, mais comedida, relatou os fatos e a preocupação de autoridades, como o próprio presidente José Sarney, de se evitar contaminar a eleição com falsas notícias.
Mas nem todos agiram assim. No domingo em que seus leitores foram às urnas, O Globo, em sua primeira página expunha o envolvimento que não existia. Respaldando-se no então ministro da Justiça, Saulo Ramos – para quem os sequestradores queriam se beneficiar da legislação especial alegando crime político -, o jornal carioca levou para a primeira página que “dois dos que foram presos estariam usando camisetas do PT e que em suas agendas foram encontrados números de telefones de líderes petistas”. Ou seja, usou o verbo no condicional – “estariam”. Mas a possível ligação foi espalhada.
Logo abaixo, porém, apresentava a opinião do ex-ministro da Fazenda de José Sarney, Luiz Carlos Bresser Pereira. Este, como diretor do Grupo Pão de Açúcar e, principalmente, amigo de Diniz e de toda a sua família, assumiu as negociações com os sequestradores. Foi quem garantiu, inclusive, que o grupo empresarial bancaria o pagamento dos advogados que o direito constitucional de defesa garantia aos envolvidos no sequestro.
Na própria explicação de Bresser Pereira era irresponsabilidade “envolver o PT” no caso. O jornal, porém, na frase seguinte insistiu: “A Interpol e a Polícia chilena têm registros de atividades políticas de pelo menos um dos envolvidos”.
Na edição de segunda-feira, o jornal então noticiou o desmentido do envolvimento político, novamente recorrendo a Bresser Pereira: “Esta possibilidade está afastada pela polícia. Eles são criminosos comuns. O que se sabe hoje é que são profissionais que já efetuaram operações semelhantes na França e na Inglaterra. Devem pertencer a um grupo internacional. Não acredito que esse grupo tenha ligações com ideologias políticas”. Àquela altura, porém, Collor já comemorava sua vitória. No jornal, provavelmente, muitos também comemoraram.
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