Dentro da proposta de tornar esta página um espaço de debate democrático, publico o excelente artigo do meu amigo e colega de trabalho na Comissão Estadual da Verdade – CEV-RJ , Lucas Pedretti, jovem historiador e, nem tudo é perfeito, vascaíno, mas acime de tudo um observador do nosso dia-a-dia.
No dia 28 de maio, estudantes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) realizavam uma assembléia estudantil para discutir temas como o a precarização dos trabalhadores terceirizados da universidade e a possibilidade de uma greve, quando foram surpreendidos pelo barulho de bombas. O som vinha da Favela Metrô Mangueira, localizada próxima à UERJ, onde a prefeitura realizava uma remoção com o apoio da polícia militar.
Indignados, os alunos saíram da universidade e foram apoiar os moradores, que protestavam contra a truculência da ação do poder público. A polícia respondeu com mais violência e o caos se instalou. Ao tentarem retornar ao campus, os alunos foram perseguidos pela PM, que chegou a atirar bombas de efeito moral no estacionamento da universidade.
Afastados os estudantes e moradores, a prefeitura pôde levar a cabo a destruição de casas e estabelecimentos comerciais da favela. Assim, mulheres e homens que saíram de suas casas de manhã para o trabalho, retornaram com tiros, bombas e escombros no lugar de seus lares.
O episódio ganha contornos mais significativos se lembrarmos que a UERJ foi construída onde antes se localizava a Favela do Esqueleto, surgida na década de 1930 e formada principalmente por pessoas que perderam suas casas para a abertura da Avenida Presidente Vargas.
Na década de 1960, quando o Esqueleto contava com milhares de habitantes, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, passou a defender a remoção de favelas como a forma de lidar com o problema da moradia. Em 1962, ele nomeou Sandra Cavalcanti para a Secretaria de Assistência Social, dando início a um grande surto remocionista que fez com que Lacerda entrasse para a memória coletiva da cidade como o responsável pelo maior número de remoções já vistas no Rio de Janeiro – embora não seja de fato, como veremos adiante.
Em 1964, o golpe de Estado e a instalação da ditadura agravaram o processo de remoções e colocaram a possibilidade de se pensar a erradicação definitiva das favelas, por meio da alocação de recursos e de força política por parte da ditadura, além da garantia de repressão a quaisquer tentativas de resistência. Assim, menos de dez meses após o golpe, teve início o processo de remoção da Favela do Esqueleto.
Entretanto, os moradores se organizaram para resistir: fizeram reuniões e planejaram um plebiscito que teria como objetivo consultar se as pessoas desejavam sair de suas casas.
A resposta do Estado foi pela via da violência: o presidente da associação de moradores foi preso e o DOPS ficou encarregado de assegurar que o plebiscito não aconteceria. Freada a resistência, a remoção foi levada a cabo pouco tempo depois e milhares de pessoas foram levadas para a Vila Kennedy, a dezenas de quilômetros dali.
O filósofo alemão Walter Benjamin dizia que não há um monumento de cultura que não seja também um monumento de barbárie. No caso da UERJ, isso é evidente: a Universidade, espaço por excelência do debate, do livre pensar, da cultura, foi erguida a partir de um processo de remoção forçada que tem como principal marca a violência – e não só a física, mas também a simbólica, representada pelo desmantelamento de laços comunitários e familiares, pelo isolamento dessas pessoas na cidade, pelo distanciamento de seus locais de trabalho, etc..
Os entrelaçamentos da memória se tornam mais intensos quando percebemos que o campus leva o nome de Francisco Negrão de Lima, governador da Guanabara durante o auge das remoções da ditadura (1966 – 1971), período em que mais de 70.000 pessoas foram removidas, número mais significativo que os já impressionantes 40.000 de Lacerda.
O prédio principal desse campus, por sua vez, recebe o nome de João Lyra Filho, reitor que concedeu o título de doutor honoris causa para Médici.
Esse é um caso exemplar para se pensar como a cidade pode ser compreendida a partir da sobreposição de camadas de memória, que às vezes vêm à tona, escancarando a intricada relação entre o passado e o presente. Afinal, na ditadura e na democracia vemos as mesmas práticas: um poder público que remove ao invés de integrar, segregando ainda mais uma cidade marcada pela desigualdade e um Estado que tem nas forças de segurança – ora o DOPS, ora a PMERJ – a única forma de lidar com a insatisfação e com a recusa à remoção.
As fronteiras entre presente e passado ficam ainda mais nebulosas quando observamos os impressionantes dados apresentados por Lena Azevedo e Lucas Faulhaber no recém publicado “SMH 2016: remoções no RJ olímpico”, livro que mostra que o atual prefeito Eduardo Paes também já superou o número de remoções de Lacerda.
Nos últimos anos, tendo os Megaeventos que o Rio de Janeiro está sediando como pano de fundo, mais de 60.000 pessoas foram removidas em processos sempre marcados pelo autoritarismo. Nesse momento, somos obrigados a encarar um passado que não passou e nos confrontar com as permanências da ditadura, expressas nas bombas de gás atingindo manifestantes e nas escavadeiras derrubando paredes.
2 Comentários
Muito bom o artigo!
Parabéns, Lucas. Com um texto claro e coerente com o se trabalho, você nos traduz o confronto social latente e permanente que as autoridades nunca souberam enfrentar.