Pedro, o profeta da vida transformada em poesia
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Ricardo Rezende (*)

Pedro Casaldáliga e seu anel de tucum (Foto: reprodução)

Hoje é sábado, 8 de agosto de 2020. Pedro, como gostava de ser chamado, alçou voo. Foi ao encontro do Amado. Teve sua Páscoa. Quantas lembranças.

Conheci-o provavelmente em 1977. Tinha chegado ao Araguaia com meus 24 anos e muita esperança. Fui trabalhar em Conceição do Araguaia. O Rio Araguaia levava até São Félix do Araguaia, 750 km rio acima. Ali morava um bispo santo e corajoso. O Pedro. O Casaldáliga. Magro, gestos contundentes e carinhosos e olhar firme, sandálias de borracha.

Pedro poeta, jornalista, escritor, padre, bispo. Quando sagrado bispo preparou um documento onde colocava contra a parede a ditadura e seus projetos. Denunciou as mortes, a concentração da terra e o trabalho escravo em um documento contundente e se tornou uma referência ainda hoje nos estudos sobre o campo brasileiro e a escravidão contemporânea. Amaldiçoou o latifúndio e foi um dedo na ferida provocada pelas autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Catalão, nunca retornou ao seu país de origem. Não entrava em avião e, decidiu, a Prelazia não possuía carro. Os deslocamentos pastorais eram realizados de bicicleta, a cavalo, de ônibus. Mas João Paulo II, em 1980, cobrou sua visita. A visita ad limina deve ser feita por todos bispos de cinco em cinco anos a Roma.

Finalmente Pedro saiu do Brasil e tomou um avião e foi ver seu irmão mais velho, o bispo de Roma.

Ricardo Rezende (segundo, da esquerda para direita) ao lado de dom Tomás e de dom Pedro (Foto: Douglas Mansur)

A partir daí começou a empreender visitas aos irmãos da querida América Latina. Foi a América Central algumas vezes. Sua presença sempre foi questionadora. Achava que o papado devia ser simplificado e despojado. Escreveu cartas ao Papa. Mesmo os que divergiam dele de alguma forma, admiravam-no pela sinceridade e coerência.

Pedro, com cada um, era uma atenção. E era firme. Não sedia se estava em questão o pobre, o sofredor, o posseiro ou o peão. Era abertamente parcial em favor do mais fraco e fragilizado.

Pedro era uma referência para os que se dedicavam a um projeto de igreja encarnada, voltada para os esquecidos e perseguidos.

Era um tempo de grandes bispos na fidelidade ao evangelho no Brasil: dom Helder Câmara, dom Waldir Calheiros, dom Tomás, dom Luís Fernando, dom Luciano Mendes, dom Aloisio e Ivo Lorscheiter, dom Adriano Hipólito…

Eram muitos e eram perseguidos. E com alguns nos encontrávamos com frequência nas reuniões da Comissão Pastoral da Terra, como dom Tomás Balduíno, dom Celso Pereira, dom Moacyr Grechi e dom Pedro. Diversos responderam processo político militar na ditadura, como dom Estevão Cardoso de Avelar. Eram muitos, mas Pedro se destacava na franqueza, na coragem e na austeridade pessoal.

Tive a benção de estar com Pedro em muitos encontros em diversas partes. Em reuniões, celebrações, assembleias e manifestações públicas em Goiânia, em Miracema do Norte, em Porto Nacional, em Belém, em São Geraldo do Araguaia, em Conceição do Araguaia e em São Felix do Araguaia.

Estive em sua casa algumas vezes. A primeira, em 1979, quando fui pedir para que me auxiliasse a preparar o texto de minha ordenação sacerdotal. Viajamos juntos algumas vezes e me admirava de sua capacidade de escrever poemas no ônibus; de escrever livros e textos nas circunstâncias mais adversas – no calor, em local de movimentação de muita gente e barulho.

Em 1980, João Paulo cobrou a visita de dom Pedro. (Foto: arquivo)

Grande orador, seduzia-nos pelo exemplo e pela palavra.

Diversas vezes ele nos apoiou. Especialmente quando matavam camponeses como fizeram com o Gringo. Ele, solidário, se deslocava para Conceição do Araguaia ou Itaipava. Estava conosco.

Foi ao julgamento dos padres franceses e posseiros em Belém. De lá, tomamos o ônibus e fomos para São Geraldo do Araguaia, no Pará. Uma viagem de 700 quilômetros. Trocamos de ônibus em Araguaína, no Tocantins.

Entre Araguaína e Xambioá, a Polícia Federal parou o ônibus e, rispidamente, nos obrigou a descer e vasculharam tudo que tínhamos. Estavam atrás de faixas, de cartazes, de panfletos “subversivos”. Sabiam que íamos inaugurar a igreja do Cristo Libertador em São Geraldo. Em determinado momento, um policial reconheceu dom Pedro e lhe disse meio sem graça:

“Dom Pedro, desculpe. Se coloque no meu lugar.”

O bispo se aproximou do policial, colocou as duas mãos sobre os seus ombros, olhou-o com afeto e respondeu:

“Meu filho, você está me pedindo algo difícil: como me colocar em seu lugar?”

Era, de fato, difícil, por ser ditadura, a polícia censurava, invadia e queimava casas, prendia com violência, torturava, servia a um projeto governamental que favorecia a concentração fundiária, a morte de posseiros e indígenas, ao trabalho escravo, à destruição do meio ambiente.

Pedro conheceu a perseguição e a morte esteve sempre próxima dele. Nos seus braços magros e frágeis recebeu o padre João Bosco Penido Burnier. A bala talvez fosse para ele. O policial se equivocou.

O bispo parecia pobre demais, pequeno demais, magro demais, para ser bispo.

Hoje, a igreja ficou mais pobre na palavra profética e na coerência. Pedro partiu na sua Páscoa e que olhe por nós, pelos indígenas, camponeses, posseiros, aflitos, enfermos. Olhe pelo Brasil na sua pandemia e na sua dor.

O anel de Tucum brilhara esta noite de forma mais intensa.

(*) Ricardo Rezende é padre, professor universitário e morou na diocese de Conceição do Araguaia (PA) por 20 anos.

 

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3 Comentários

  1. Rosângela Magalhães disse:

    Por favor, há um erro de digitação no antipenúltimo parágrafo, onde a palavra “pobre” foi digitada como “podre”.

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