Com a devida autorização do autor, Márcio Tavares d”Amaral, um grande e antigo amigo, reproduzo aqui um belíssimo – e elucidativo – texto que ele distribuiu entre um grupo fechado. Didaticamente, como todo bom professor sabe fazê-lo – e Márcio é um excelente mestre, não à toa é Professor emérito de filosofia na UFRJ – ele demonstra por que podemos falar que o Impeachment de Dilma Rousseff, embora previsto na Constituição, foi um golpe.
Derruba também a falácia que utilizam afirmando que pelo fato de o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, ter presidido as sessões do Senado Federal durante o julgamento da ex-presidente eleita, não significa que o STF avalizou o que foi feito. Na verdade, o Supremo e seus onze ministros, lavaram as mãos como Pôncio Pilatos. Omitiu-se alegando tratar-se de uma questão jurídica.
Não é preciso falar muito. O melhor é ler o que ele escreveu e reproduzo abaixo.
1 – Previsão Constitucional – Há previsão constitucional para a interrupção do mandato de um/a presidente da República. Diferentemente do que acontece no parlamentarismo, porém, essa previsão não pode ser ativada pelo “conjunto da obra”.
A Dilma poderia ter sido responsável por descalabros econômicos, “estelionato eleitoral”, más alianças políticas, passar a mão na cabeça de corruptos – tudo poderia ser verdade, mas nada disso dá um impeachment.
Diferentemente do parlamentarismo, em que menos do que isso basta. Desde que haja maioria contra o primeiro ministro). Por que? Porque primeiro ministro não tem mandato. Seu governo acaba quando a maioria o abandonar. Nada de mais nisso. O Estado continua intocado, porque a chefia do Estado e a do governo não se confundem na mesma pessoa. Numa boa, a vida continua.
No presidencialismo o clamor público, a maioria parlamentar, o mercado (subia quando a Dilma caía, caía quando a Dilma subia), tudo pode ser contra, mas só a próxima eleição resolve essa pendenga. Só se a/o presidente tiver cometido crime a previsão constitucional, o impeachment, pode ser ativada.
2 – Ela praticou ou não crime de responsabilidade? – A questão toda, então, é se ela praticou crime ou não. Não é se houve crime. É se ela o praticou. Por mais certeza que se possa ter, pelas aparências, indícios, “está na cara”, “não pode deixar de ser” – nesse momento precisa-se de prova. Mesmo, prova no duro.
Por isso é que o impeachment é um processo híbrido, jurídico-político. Nós sabemos da irritação que o direito causa em geral. É coisa de formalismos, tecnicalidades, “firulas jurídicas”, retórica, enganação. Advogado diz o que quer, para cada causa existe sempre uma doutrina ou uma interpretação tortuosa de alguma lei… Essas são as coisas que em geral se pensam do direito. É injusto, porque o direito é uma grande experiência civilizatória. Mas é preciso admitir que às vezes os advogados ajudam a criar essa má imagem…
Bom, então vamos passar logo essa parte formal e ir ao que interessa, e é política. É só lembrar da horrível sessão da Câmara. Eu contei. Quatro deputados votaram no relatório.
Todo mundo votou pelo conjunto da obra. A favor do impeachment – por causa do desastre, etc – e contra – pelas políticas sociais, o bolsa família, etc.
Já se sabia de antemão como se ia votar. A questão era só o número final. Mas ela estava cassada desde que o processo começou. E por que?
Porque a primeira parte do processo, a jurídica, foi representada, mas não levada a sério. Mas devia. Porque era nela que ia se estabelecer se houve ou não crime, e se, tendo havido, foi ela que o cometeu.
3 – Não houve crime – Pessoalmente, no início eu tendia a pensar que parecia ter havido irregularidades, que em parte poderiam ter a natureza de um delito, mas não caracterizavam crime, e a pena seria, portanto, desproporcional aos fatos. E fui acompanhando os debates. Todos.
Quando ouvi o Nelson Barbosa (de quem nem gosto) e, depois, mais juridicamente, o José Eduardo Cardozo, fiquei convencido de que não houve crime. Não é o espaço aqui para desenvolver os motivos desse convencimento. Mas ele se fez, depois de uma tendência razoavelmente contrária. Depois, ouvindo o procurador da República junto ao TCU, contrário à Dilma, muito seguro e sereno, fiquei com uma dúvida num aspecto específico. Essa dúvida se desfez na sequência. – Por que estou dando esse depoimento pessoal? Para indicar que mesmo “tendo lado”, é preciso dar uma honesta atenção à parte técnica do processo. É nela que se pode estabelecer a verdade.
4 – O que aconteceu? Quem queria a cassação da Dilma continuou aferrado ao “conjunto da obra”. Quem queria a manutenção do mandato, também.
E, no meio, muito poucos discutiam se de fato o art. 4º da Lei Orçamentária Anual de 2015 permitia ou não a emissão de decretos de suplementação orçamentária; se os decretos tiveram impacto sobre a meta de resultado fiscal; se a execução do plano safra implicava ou não em empréstimo (se subsídio/subvenção e crédito tinham a mesma natureza). Isso é chatinho, sem dúvida, mas era só disso que se tratava. Ou devia tratar.
Que a maioria do Senado queria tirar o mandato da Dilma era uma coisa já sabida. Não se precisava de um longo processo para apurar isso. Precisava-se do processo para demonstrar (ou não) a existência de crime e sua atribuição (ou não) à presidente da República. Só para isso. E, honestamente, quem acompanhou tudo sabe que o processo não foi usado para isso.
5 – Se não houve crime, houve golpe – A ideia de que houve golpe é sustentada por quem (certo ou errado, mas de boa fé) não ficou convencido de que houve crime. Se houve crime, não houve golpe; se não houve crime, houve golpe. Quem decide se houve crime? Em geral, a Justiça. Em última instância, o Supremo (que tem o direito de errar por último, como disse o Rui Barbosa…).
Nesse caso, não. A decisão é do Senado. Uma casa 100% política. Que, na minha avaliação, não deu a menor importância (de verdade) para os aspectos jurídicos do caso. Note que não estou reservando essa atitude aos “cassadores”. Ela vale para os defensores também. No fim de tudo, votou-se, politicamente como era de se esperar e era correto (seria, se a outra parte do processo tivesse sido levada a sério), e sabemos o resultado.
Para quem viu crime (não vale “conjunto da obra”!), a Constituição se aplicou. Para quem não viu crime (também não vale o conjunto da obra!), a Constituição foi rasgada. E nesse caso, houve golpe.
6 – Argumentos de que não houve golpe – Os mais correntes argumentos para provar que não houve golpe são que :
1) o impeachment é constitucional; e
2) o Supremo legitimou o processo.
O valor do primeiro argumento já mostrei que eu não incorporo. Claro que o impeachment é previsto na Constituição. Ninguém pode a sério acreditar que quem defendia a Dilma desconhecia esse fato. A questão é se ele foi constitucionalmente aplicado. Se não foi, houve golpe.
O segundo argumento é uma falácia. Desde o início o STF deixou claro que não entraria no mérito da questão, que era da competência exclusiva do Legislativo. Disse isso várias vezes, todas as vezes que o Cardozo em seus recursos tentou suscitar questões de conteúdo.
Ora, aí é que está precisamente a questão: houve ou não crime, foi ela ou não que cometeu. Não entrando, declaradamente, nessas questões de mérito, o Supremo não convalidou nada. O ônus é do Senado.
O que o Supremo fez foi disciplinar o rito: prazos, condições, essas coisas. Havendo desvios em relação a isso, ele, uma vez acionado, disciplinaria a matéria. Se não, não. E foi o que aconteceu.
O fato de o presidente do Supremo ter presidido as sessões de julgamento, também tão invocado, não significa nada em termos de convalidação do processo e do resultado. A presença dele lá não dá juridicidade ao processo. Tem um motivo só: quando os vice-presidentes eram eleitos separadamente do presidente (o que foi criado na Constituição de 1946 e durou até 1964), eram eles que presidiam o Senado. Em caso de impeachment não poderiam presidir, porque eram os beneficiários diretos da cassação. Por isso o presidente do órgão máximo do outro poder, o Judiciário, passou a assumir a presidência do julgamento. Não para fazê-lo mais jurídico.
7 – Desempenho do Lewandowski – Aliás, nesse caso, se ele fez alguma coisa foi menos. A separação da pena em duas, como se fossem autônomas e a segunda acessória à primeira, foi totalmente inconstitucional. Perda do mandado com inabilitação para o exercício de função pública é o que a Constituição diz. Não dá pra interpretar o que está totalmente claro.
Tratar a decisão como se fosse a votação de um projeto de resolução, fazer destaque, que uma resolução admite, destacar uma parte da pena da outra, aprovar uma e (por uma questão de quorum invertido) rejeitar a outra foi uma artimanha. Um ‘contragolpe…”
O Supremo, aposto, não vai se manifestar sobre isso. Vai dizer que é decisão irrecorrível do Senado. E deixar passar uma inconstitucionalidade gritante. Politicamente, acho bom que a Dilma conserve possibilidades de participar do jogo. Mas, juridicamente (portanto, no plano da verdade, que nem sempre é o mesmo do interesse) foi errado. E o presidente do Supremo estava lá. Aliás, só deu pra fazer porque ele estava lá. Não é garantia de nada.
(*) Marcio Tavares d’Amaral – é professor Emérito da UFRJ (História da Filosofia), escritor e colunista semanal do jornal O Globo
5 Comentários
[…] por ele ao grupo de amigos do qual faço parte. Como bom mestre que é, na postagem – Didaticamente, em sete itens, a explicação sobre o golpe do impeachment – demonstrou porque o impeachment de Dilma Roussef é considerado um golpe, apesar dos […]
Prezados,
Concordo com o comentário do João Paiva e acrescento:
– filosófica e juridicamente não tem motivo igualar a postura dos senadores contra e a favor do impeachment. O princípio In Dubio Pro Reo obriga a quem esteja convencido da condenação que a substancie. Os contrários ao golpe, se não convencidos, não eram obrigados a fazer o papel da defesa. Aliás, o advogado Cardozo, as testemunhas da defesa e a brilhante defesa de Dilma, pessoalmente, no Senado, já foram mais que suficientes para o debate jurídico.
– Concordo que o STF não interferiu no processo do impeachment e que deveria deixar o ônus ao Senado. Problema da corte superior foi ter interferido “por fora”. Vetou a nomeação de Lula como ministro enquanto deixou livremente a turma de michel tomar posse. Lula era a tábua de salvação e qualquer um com mais de 2 neurônios sabia disso, por isso a pressa em retê-lo, ainda que contra qualquer argumento jurídico.
Sempre tenho receio quando alguém tenta fazer uma observação “neutra”. Tenta ser “racional” e acaba por trair a própria causa.
Parabéns pelo blog!
Abraços
Se a maioria da população esta negativada com o nome na Serasa ou coisa parecida a Culpa disso tudo se da ao próprio presidente que abriu Linhas de créditos a perder de vistas com ofertas de móveis, eletro domésticos em geral,carros,construção terrenos e depois retirou essas linhas de créditos de uma só vez, elevando as alta de juro.Assim como dar doce a uma criança e tomar bruscamente causando um trauma.
É preciso mesmo que o governo toma uma posição sobre isso protegendo o nome dos brasileiros perdoando essas dúvidas porque o maior responsável por isso foi o próprio governo.
Além do mais o governo tem perdoado dívidas milionárias de governos do exterior porque não fazer isso com seus próprios compatriotas comparando as dívidas perdoadas do exterior isso não e nada é uma ninharia ..E pensando bem com a alta dos juros os brasileiros já pagaram essas dúvidas à muito tempo.
Esse golpe é Igual o MUNDIAL do parmera, só eles acreditam.
Prezados,
Não sou profissional do Direito, mas este artigo não me convenceu; pior: me pareceu mal fundamentado. Em 1992, Fernando Collor foi julgado exclusivamente quanto à perda ou manutenção dos direitos políticos, pois havia renunciado. Portanto a perda dos direitos políticos de Collor decorreu de um julgamento exclusivo em que essa questão era o objeto. Criou-se, então, jurisprudência; tanto assim que certo professor de Direito constitucional, de nome Michel Temer, em obra intitulada “Elementos do Direito constitucional, 22a edição, 2a tiragem, páginas 167-171” afirma no item 6, em que trata de “Crimes de Responsabilidade”, que a perda dos direitos políticos não é pena acessória à perda do mandato, ou seja, o presidente da república está sujeito ao processo de impedimento, o qual pode implicar na perda do mandato e/ou perda dos direitos políticos. Em suma: a perda dos direitos políticos não decorre diretamente da perda do mandato. O articulista parece se esquecer desses aspectos, pois se os direitos políticos da presidenta Dilma fossem cassados, a defesa dela certamente interporia recurso no STF, baseado no precedente jurídico de Collor e nos estudos do ‘professor’ michel temer, o que desmoralizaria ainda mais o golpe.