A prevalecer a decisão da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo), o Brasil será alijado dos acordos de cooperação bilaterais que, no caso da Operação Lava Jato, por exemplo, têm se mostrado essenciais para os avanços das investigações sobre a corrupção na nossa política. Até agosto, já se contabilizava 53 pedidos de cooperação internacional apenas nesta operação comandada pelo ministro Teori Zavascki, no Supremo Tribunal Federal (STF) e o juiz Sérgio Moro, na 13ª Vara Federal Criminal, em Curitiba (PR).
Foi com base em um desses acordos que a Procuradoria Geral da República (PGR) recebeu informações preciosas sobre a movimentação financeira que o presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), mantinha no exterior sem nunca ter declarado à Receita Federal ou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E as colaborações internacionais se estenderam em diversos outros casos da Lava Jato, permitindo a repatriação de valores depositados no exterior.
Mas, no entendimento dos desembargadores Ivan Athié e Paulo Espírito Santo, do TRF-2, estes acordos podem ser considerados ilegais. No último dia 30 de setembro, em sessão secreta, e com o voto vencido da desembargadora Simone Schreiber, eles entenderam que não pode haver a cooperação direta.
A turma julgava um Habeas Corpus impetrado por Kleber Leite e pela sua empresa de marketing esportivo, Klefer Produções e Promoções Ltda. Os advogados questionavam a validade das decisões do juízo de primeira instância.
Ao entenderem da impossibilidade da cooperação direta, os dois desembargadores suspenderam a decisão pela qual o juízo da 9ª Vara Federal Criminal, a partir de maio passado, atendeu aos pedidos da promotoria federal de Nova Iorque, na investigação da corrupção no âmbito da FIFA, com desdobramentos junto a CBF.
A Klefer, de Kleber Leite, é suspeita de pagar propinas aos dirigentes da CBF por conta de sua participação na organização do Brasileirão
.A primeira decisão atendendo ao pedido norte-americano foi do titular da 9ª Vara, José Eduardo Nobre Mata, ao decretar a quebra de sigilo bancário e o bloqueio de bens de cerca de quinze pessoas (físicas e jurídicas). Atingiu, entre outros, Ricardo Teixeira, seus familiares, Kleber Leite e a Klefer.
Embora o processo corra em segredo de justiça a pedido das autoridades norte-americanas, a quebra dos sigilos foi noticiada pela coluna Radar da Veja, em 14 de julho. Na nota, o nome do autor da decisão apareceu trocado: o citado “juiz Marcelo Pereira”, há alguns anos já é desembargador do TRF-2, na área cível.
Depois, ainda em maio, o juiz substituto da 9ª Vara Federal, Pedro Esperanza Sudário concedeu mandado de busca e apreensão para a sede da Klefer, em Botafogo, zona Sul do Rio.
Em agosto, ao impetrarem um Mandado de Segurança – o terceiro – as defesas de Kleber Leite e da Klefer conseguiram, do desembargador Athié, uma liminar liberando parte do dinheiro bloqueado pelo titular da 9ª Vara. Nesta época, a também juíza substituta Débora Valle Brito ratificou o bloqueio dos valores que sobraram nas contas.
No final de setembro, Athié e Espírito Santo entenderam que algo estava errado e atenderam de forma ampla e irrestrita os pedidos das defesas. Com um Habeas Corpus, os advogados reivindicavam a anulação de todas as decisões da 9ª Vara. Com um Mandado de Segurança, buscavam a liberação das verbas ainda bloqueadas.
Ao decretarem a nulidade das medidas adotadas pela 9ª Vara Federal, os desembargadores determinaram a devolução dos documentos apreendidos na busca realizada, em maio, no escritório da Klefer e a imediata liberação dos recursos O fato foi tornado público, no blog do jornalista Ancelmo Góis, pelos advogados de defesas, em 30 de setembro.
Um ofício remetido pelo relator do processo, Athié, comunicou a decisão da 1ª Turma a 9ª Vara Federal. À juíza Débora Brito restou apenas cumpri-la, Assim, viu-se obrigadas a liberar os recursos cujo bloqueio ela mesma ratificara; devolver o sigilo bancário das contas das cerca de 15 pessoas atingidas; e encaminhar ofício ao Coordenador do DRCI (veja ao lado) solicitando os documentos apreendidos. Junto, anexou o Acórdão do TRF-2, deixando claro de quem era a decisão.
Acabou vítima do jornal O Estado de S. Paulo que, em reportagem no dia 6 de novembro (veja abaixo), com uma cópia do ofício remetido ao DRCI, acusou-a de estar “barrando a cooperação do Brasil com o FBI nos EUA para investigar os dirigentes do futebol, no âmbito do escândalo envolvendo a FIFA”.
Fazendo uma certa confusão, provavelmente pelo sigilo das decisões e desconhecimento de como o Judiciário funciona, a reportagem credita ao Ministério Público o bloqueio dos bens de diretores de empresas, em agosto de 2015. A medida que só cabe a um magistrado determinar, foi adotada em maio.
Exigência do Exequatur – Ao tomarem esta decisão, os dois desembargadores sustentaram não ser possível a cooperação direta entre autoridades brasileiras e estrangeiras – mesmo havendo acordos bilaterais neste sentido – sem a utilização do instrumento jurídico conhecido como Exequatur. Trata-se de uma espécie de autorização de um tribunal superior – Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou o Supremo Tribunal Federal (STF). Isso, apesar de Teori Zavascki, quando ministro do STJ, criar jurisprudência a respeito, ao concordar com a cooperação direta, tal como procedeu a 9ª Vara Federal do Rio,
Pelo entendimento de Zavascki, que passou a prevalecer, um pedido do Ministério Público de outra nação, passa pelo DRCI e vai à Procuradoria da República. A esta cabe apresentá-lo a um juiz de primeira instância que o analisará à luz da legislação brasileira, decidindo se deve conceder as medidas previstas.
Já segundo o entendimento dos desembargadores, é preciso que o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica (DRCI) do Ministério da Justiça submeta todo e qualquer pedido – mesmo os que não vierem de uma autoridade judicial – ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Isto cria uma demora no atendimento, o que prejudicará as investigações.
O curioso é que em julho, a mesma primeira turma analisou dois mandados de segurança impetrados também pelas defesas da Klefer e de Kleber Leite, relatados por Athié, sem que ele contestasse a relação direta entre a promotoria de Nova Iorque, o Ministério Público Federal brasileiro e o juízo da 9ª Vara Federal Criminal do Rio.
Após a autorização da busca e apreensão na Klefer, os advogados de defesa pediram vistas dos autos, o que foi negado em juízo de primeira instância. Para atender à manifestação feita pela promotoria de Nova Iorque, a 9ª Vara Federal Criminal do Rio decretou o sigilo absoluto. Os advogados, Ary Bergher, Julio Cezar Borges Leitão, Daniela Senna, Raphael Mattos e Fábio Dias, reclamavam o direito à ampla defesa de seus clientes.
Insatisfeitos com a recusa, bateram à porta do TRF-2. Ao apreciar o caso, porém, o desembargador apoiou a decisão do juízo de primeira instância, inclusive repetindo parte do despacho do magistrado:
“O direito de defesa de Kleber Fonseca de Souza Leite, e mesmo da empresa de que é sócio, só poderá ser exercido no âmbito do processo penal que tramita perante a Justiça Norte-Americana, sendo certo que será lá que deverá ser pleiteado o direito de vista dos autos e acesso a documentos da investigação”.
No seu voto, adotado por unanimidade na 1ª Turma Especializada do TRF-2, Athié, fez constar:
“Ressalvo, por oportuno, que as medidas solicitadas pelo estado estrangeiro, e o modo de sua operacionalidade em nosso território, não ofende , à primeira vista, princípios insertos em nossa constituição, tampouco viola alguma norma referente à autonomia de nosso sistema jurídico, nem qualquer norma desse sistema”.
Ao mesmo tempo, porém, como querendo se prevenir com relação a possível mudança de entendimento, ressalvou:
“Isso posto, denego a segurança, ressalvando a possibilidade de eventual novo pedido, acaso em continuidade das possíveis investigações e diligências rogadas, haja violação de alguma norma jurídica interna”.
Naquela ocasião, não houve qualquer questionamento com relação à cooperação direta entre as autoridades dos dois países e nem se falou na necessidade do Exequatur. Isto só surgiu mais de três meses depois e, como já se disse, não teve o apoio da desembargadora Simone quando votou no Habeas Corpus, convocada que foi para completar o quorum da turma, uma vez que o desembargador Abel Gomes estava em Brasília.
Simone, porém, na apreciação do mandado de segurança, fazendo a ressalva que discordava da exigência do Exequatur, apoiou a decisão da devolução do dinheiro por entender que a Klefer comprovou ter feito um empréstimo bancário em valor superior ao bloqueado e por ela, desembargadora, não ter visto na decisão de primeira instância a fundamentação necessária.
Com a decisão dos dois desembargadores e o pedido de devolução dos documentos, que a esta altura já estão em Nova Iorque, as autoridades americanas ficam um tanto quanto encurralada. Embora já conheçam o teor dos mesmos, se os usarem, prejudicarão o processo pois as defesas os classificará como prova inválida. Além de colocarem em risco o próprio acordo bilateral.
Tornando-se prova inválida, tais documentos não servirão nem no Brasil caso se queira abrir uma investigação em torno dos envolvidos nos escândalos do futebol.
A decisão foi tão surpreendente que levou o desembargador Abel Gomes, outro membro da 1ª Turma mas que não participou do julgamento por estar em Brasília, fazer publicar na página do TRF-2 uma nota esclarecendo que ele não votou nesta questão. Algo inusitado na história do tribunal.
A Procuradoria Regional da República no Rio (PRR-2) está recorrendo das duas decisões. No caso do Mandado de Segurança que liberou os valores bloqueados, ela ingressará com um Embargo de Declarações junto ao próprio TRF-2. Este instrumento jurídico é uma espécie de pedido a quem julgou para rever certos aspectos da decisão e ocorre, principalmente, quando se verifica alguma omissão, contradição ou obscuridade na sentença.
Com relação ao Habeas Corpus que não reconheceu a cooperação direta, a PRR-2 apresentará um Recurso Especial junto ao Superior Tribunal de Justiça confiando que a corte fará valer a decisão anterior do ministro Zavascki, quando ele ainda se sentava naquele plenário.
Para os procuradores que atuaram no caso, a decisão não tem como prosperar nos tribunais de Brasília. “É uma pratica comum (a cooperação direta). Uma pratica que mais se vem utilizando para facilitar a colaboração entre países. Afinal, a criminalidade também é globalizada. Hoje em dia não existem mais fronteiras, não existem mais limites (geográfico) dos países para a prática de crime. Então os países têm que se auxiliar”, declarou um deles.
Novos mecanismos de colaboração – A decisão dos dois desembargadores choca-se com posições adotadas pelo Congresso Nacional, endossadas pela Presidência da República. Poucos dias depois deles mandarem devolver os documentos apreendidos, em 19 de outubro, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei n.º 13.170.
Ela cria mecanismos para o Brasil decretar a indisponibilidade de bens, valores e direitos de posse ou propriedade, das pessoas físicas ou jurídicas submetidas a sanções por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas – CSNU. Ou seja, na medida em que o CSNU determinar sanções a pessoas físicas ou jurídicas envolvidas em crime organizado ou atos de terrorismo, o Brasil tomará providências, 24 horas depois ser comunicado, para adotar as mesmas sanções em seu território contra aquelas pessoas. Tudo na primeira instância judicial, sem passar pelo crivo dos tribunais superiores.
Fica claro que, enquanto a legislação aperfeiçoa e facilita o combate a este tipo de crime, no meio do caminho interpretações diversas – como a dos dois desembargadores – criam barreiras para a punição dos criminosos. O resultado pode ser o descrédito do país quando se trata de Acordo de Cooperação Bilateral. Além da impunidade, é óbvio.
4 Comentários
[…] S. Paulo condenou a ação movida por integrantes da força-tarefa da Lava Jato contra o jornalista Marcelo Auler, que determinou a retirada do ar de algumas de suas reportagens. Confira […]
[…] divulgamos isto – “Tribunal barra investigação: e se fosse a Lava Jato?” -, questionamos o que acontecerá com a Operação Lava Jato caso prevaleça tal […]
Caro Marcelo e leitores,
Neste caso discordo da condução da reportagem e do entendimento do juízo de primeira instância, assim como dos procuradores do MP. Essa ânsia e essa volúpia dos operadores do MP e do Judiciário (sabemos que a vaidade e o ego dessas categorias não conhecem limites) em ‘queimar etapas’ , ‘acelerar’ investigações e processos, acaba resultando em falhas, que podem colocar tudo a perder. No caso da Lava Jato, procuradores do MP brasileiro foram à Suíça, para conseguir diretamente das autoridades de lá, documentos que seriam usados para obter provas contra pessoas investigadas no âmbito daquela operação. As autoridades suíça alertaram os procuradores brasileiros que qualquer documento, para ser usado em processo criminal, deveria ser solicitado oficialmente pelo Ministério da Justiça, como estabelecido no acordo de cooperação internacional. A defesa de pessoas acusadas na LJ deve estar atenta e deve pedir a nulidade de provas obtidas por meio dessa ‘cooperação direta’, a qual viola o acordo de cooperação entre os países.
Sou garantista e neste caso é correta a decisão dos desembargadores. Os advogados de Kleber Leite e sua empresa devem ter estudado a fundo a legislação, o teor e as bases do dos acordos de cooperação. Ademais, é vergonhoso e vexatório para o Brasil entregar seus cidadãos para serem processados e julgados noutro país, no caso os EUA.
Até que sejam julgados, considerados culpados e condenados – em última instância – por prática ilícita ou criminosa, Kleber Leite, Ricardo Teixeira ou qualquer outro cidadão devem ser considerados inocentes; a CF é que assim estabelece. Se há suspeitas de que essas e outras pessoas tenham participado de esquemas de corrupção e/ou outras práticas criminosas, que as instituições responsáveis (PF e MP) investiguem – sempre respeitando os limites impostos pela Lei -, ofereçam denúncia fundamentada e a apresentem ao Poder Judiciário, para que faça o julgamento.
Além da legislação confusa, todo o trâmite investigatório, de cooperação internacional e judiciário contribuem para criar impasses e confusões. O entendimento de Teori Zavascki, que teòricamente cria jurisprudência para a ‘cooperação direta’ NÃO anula a lei que estabelece que os acordos de cooperação devam se dar entre o Ministério da Justiça e órgão judiciário (ou de investigação) estrangeiro (Promotoria Federal, no caso dos EUA e o equivalente ao MP, na Suíça).
Janio de Freitas escreveu excelente artigo que aborda essa questão das provas obtidas por meio de ‘cooperação direta’, as quais podem vir a ser anuladas, no caso da Lava Jato.
Com sempre alerto nos meus comentários: no exercício do jornalismo não se pode deixar que desejos e expectativas contaminem os levantamentos e fatos objetivos apurados. Não tenho nenhum apreço, simpatia ou vínculo com Kleber Leite ou Ricardo Teixeira. Pessoalmente considero que eles fizeram mal ao futebol brasileiro e ao País. Mas daí eu apoiar ‘queima de etapas’, ‘cooperação direta com a promotoria federal dos EUA’ e entregar cidadãos brasileiros para serem processados e julgados no estrangeiro, infringindo os termos de um acordo internacional, há imensurável distância.
Qualquer cidadão, filiado ou simpatizante do PT é culpado, até prova em contrário.