A malfadada, a partir do nome, “Operação Esperança Equilibrista”, pela qual a Polícia Federal de Minas Gerais, como beneplácito da juíza substituta da 9ª Vara Federal, Raquel Vasconcelos Alves de Lima, conduziu coercitivamente e com truculência, a cúpula da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para prestar depoimento sobre gastos com o Memorial da Anistia Política – MAP, gera um fiapo de esperança de que se torne um divisor de águas na sanha punitivista que se instalou no país após a Operação Lava Jato.
Um tema que já provocou duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal. A primeira delas (ADPF 395) ajuizada em 11 de abril de 2016 pelo advogado Thiago Bottino do Amaral, em nome do Partido dos Trabalhadores. A ADPF 444 foi impetrada, em março de 2017, em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por, entre outros, o advogado paranaense Juliano José Breda, presidente da seccional daquele estado.
Embora tenham sido agendadas para a seção de 11 de maio passado, as ADPFs (que tramitam anexadas) foram retiradas da pauta pela ministra Carmen Lucia e esquecidas por ela. Diante dos últimos acontecimentos, e sem perspectiva de que a presidente do STF leve ao debate estas ADPFs antes do recesso de final de ano, os advogados de ambas apresentarão, nesta próxima semana, ao relator, ministro Gilmar Mendes, um novo pedido de liminar suspendendo esta prática.
Sinais importantes – Dois sinais importantes surgiram na operação de Minas Gerais mostrando que há divergências nos métodos que polícia, muitos procuradores e até mesmo juízes passaram a adotar, a partir de uma iniciativa da Força Tarefa da Operação Lava Jato. Os questionamentos sobre a condução coercitiva de quem nunca tinha sido intimado a prestar esclarecimento se ampliam.
O primeiro sinal foi a discordância do procurador da República da área criminal em Belo Horizonte, Bruno Nominato de Oliveira. Ele rejeitou tal pedido, bem como o de prisão temporária apresentados pela Polícia Federal. Aparentemente, pelo delegado federal Leopoldo Lacerda, que coordenou a “Operação Esperança Equilibrista”. O parecer de Nonimato é desconhecido. A rejeição aos pedidos foi narrada pela juíza, em sua decisão, como mostramos na postagem UFMG: PF quis prender; MPF foi contra condução coercitiva. Para ele, as buscas e apreensões seriam suficientes neste momento da investigação.
O sinal subsequente foi a nota da Procuradoria Federal do Direito do Cidadão PFDC, que hoje tem à frente a subprocuradora da República Deborah Duprat. A nota reafirma a importância da construção do Memorial da Anistia Política – MAP, defende a investigação sobre possíveis desvios que tenham ocorridos, considera infeliz a denominação dada à operação policial ao utilizar um “hino da luta por liberdades e direitos no País, especialmente daqueles que foram mortos, torturados ou desapareceram por força da repressão política durante a ditadura militar” e faz um convite à reflexão, conforme noticiou o JornalGGN em PFDC reforça importância do Memorial da Anistia e repudia exagero de medidas:
“Finalmente, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão convida a uma reflexão sobre o eventual uso exagerado de medidas coercitivas, especialmente no ambiente da academia, a qual goza de autonomia constitucional. Evidentemente que essa autonomia não impede a apuração de crimes, porém seu rompimento deve ser reservado às situações de gravidade que, em um juízo de ponderação, justifiquem a presença de forças policiais no ambiente da universidade, a qual traz tristes memórias, oriundas justamente do período autoritário sobre o qual o Memorial da Anistia Política irá se debruçar”.
A nota da PFDC certamente causou mal estar em alguns setores do próprio MPF que defendem a condução coercitiva como medida necessária às investigações. Algo como o argumento utilizado pela juíza substituta da 9ª Vara Federal, Raquel Vasconcelos Alves de Lima.
Ela, apesar do parecer contrário do procurador Nominato, admitiu a condução coercitiva da cúpula da UFMG. Alegou se “mostrar indispensável à investigação, de modo a possibilitar que sejam ouvidos concomitantemente todos os investigados, para impedir a articulação de artifícios e a subtração das provas quanto à materialidade e autoria das pretensas infrações”.
Verdade que a Procuradoria Geral da República, através de Rodrigo Janot, ao se manifestar na ADPF impetrada por Bottino, defendeu a medida usando como um dos argumentos exatamente o que disse a juíza:
“Tem por finalidade neutralizar riscos para o processo, mais especificamente para a aplicação da lei penal, a investigação ou instrução criminal ou a ordem pública. Em geral, é decretada para evitar que imputados estabeleçam versão concertada sobre fatos ou, especialmente, para impedir que destruam provas“.
E prosseguiu:
“Em outras palavras, ainda que sem previsão legal específica, a condução coercitiva é meio de garantir eficácia (e afastar prejuízos) à produção de provas no processo penal. Deve, para tanto, ser executada, sempre, mediante prévia justificação de necessidade, evitando que se lance mão de medidas mais gravosas de restrição de liberdade, como a prisão temporária ou preventiva”.
Ele também argumentou na defesa de tal medida com a necessidade de se identificar o investigado, como se isso em época de comunicação on line, arquivos eletrônicos, redes sociais e que tais não soasse falacioso:
“Pode revelar-se a condução coercitiva medida essencial, nesse contexto, para identificação do imputado, ou seja, para saber quem é a pessoa potencialmente autora do delito e proporcionar certeza
sobre sua identidade. Após a individualização da pessoa suspeita da prática do delito, busca-se saber quem ela é. A identificação não serve para apontar “qual é o plausível autor da infração penal” –
função da investigação criminal –, mas para responder à pergunta ‘quem é tal pessoa?’” (veja integra da manifestação abaixo)
Manifestaram-se na mesma ADP a favor desta medida gravosa, a Advocacia Geral da União – AGU, já sob o governo usurpado por Michel Temer, e as duas Casas Legislativas. Na manifestação do advogado geral da União, Fábio Medina Osório, é reproduzida a opinião do Departamento de Polícia Federal. Mais uma vez fala-se da qualificação de um investigado, como se medida de tamanha gravidade fosse necessária para isso:
“Assim, conclui-se que é perfeitamente possível a condução coercitiva de investigado para fins de interrogatório ou indiciamento, uma vez, como visto, estes atos não se resumem ao seu interrogatório, Nota-se que o indiciado/acusado poderá fazer uso do seu direito ao silêncio e não fazer prova contra si mesmo durante sua oitiva, revalidando o nemo tenetur se detegere, mas não poderá ocultar sua qualificação, uma vez que urge repisar, conduta esta pode, inclusive, caracterizar contravenção penal ou crimes supra referidos“.
Uma tese que pode ser questionada na medida em que, pelo que se tem visto, a condução coercitiva tem um objetivo escuso: da pressão psicológica no investigado. Também não é de todo modo aceitável a justificativa de não interferência nas buscas e apreensões, já que habitualmente o contingente policial usado nelas é algo fora do comum. Nitidamente intimidador e ameaçador.
Em Belo Horizonte, por exemplo, foram 85 agentes da policia federal, que normalmente estão fortemente armados, além de auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria Geral da União (CGU). Não raro, usam das ameaças e da violência.
Basta se ter claro o que ocorreu, por exemplo, na quarta-feira (06/12), em Belo Horizonte. A truculência usada por policiais é descrita no vídeo abaixo por Cristina Del Papa, da Coordenação do SINDIFES – o Sindicato dos Trabalhadores nas Instituições Federais de Ensino, em Minas Gerais. Ela relata o que as vítimas das conduções coercitivas falaram, quinta-feira (07/12), na reunião do Conselho Universitário da UFMG:
Em Belo Horizonte, neste domingo, 10/12, Dia Mundial dos Direitos Humanos, uma manifestação em Defesa do Memorial da Anistia Política -MAP e da Universidade Federal de Minas Gerias está convocada para às 10h00, no próprio MAP, no bairro Santo Antônio.
As expectativas, porém, é que a repercussão do caso, sirva para que finalmente se reveja estas práticas consideradas abusivas por muitos.
Na Procuradoria Geral da República não é apenas a PFDC que questiona o recurso à condução coercitiva.
O vice-procurador-geral, Luciano Mariz Maia tem posição semelhante. Ao Blog, deixando claro que fala abstratamente e não sobre nenhum caso específico, lembra que o investigado, constitucionalmente, tem três direitos básicos: a presunção de inocência, o direito de não produzir provas contra si e o direito de permanecer calado, ou até de mentir.
“Logo, condução coercitiva apenas para obter informações dos investigados não se justifica. A exceção pode se dar quando ela é feita para evitar que atrapalhe uma busca e apreensão, ou que venha a influenciar testemunhas, o que se torna obstrução de Justiça“.
Mariz Maia vai além e fala do caso de testemunhas:
“Mesmo em caso de testemunhas e peritos, por exemplo, que devem prestar informação e não podem mentir ou se calar diante de fatos que tenham conhecimento, a condução coercitiva, como prevê o Código de Processo Penal, só deve ocorrer após a recusa ao atendimento a uma intimação. Antes, deve ser dado o direito de comparecer por seus próprios meios“.
Esta, em síntese, tem sido a posição que pessoalmente defende junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) onde costuma atuar e que, antes, como adjunto da Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão (PFDC), defendeu em debates junto ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Dentro do Ministério Público Federal, esta questão pode ser normatizada – em busca de uma orientação, visando um alinhamento comum a todos os procuradores da República -, pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que cuida da área criminal. Hoje ela é coordenada pela subprocuradora da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen. Mariz Maia desconhece se existe algo nesse sentido.
Resta, portanto, a pressão junto ao STF para que leve a julgamento as ADPFs interpostas pelo Partido dos Trabalhadores e pela OAB.Ou, ao menos, a esperança que Gilmar Mendes atenda ao pedido a ser interposto pelos advogados e conceda a liminar, anteriormente negada, suspendendo tal prática.
Na ADPF impetrada em nome do PT, Bottino defende que o artigo 260 do Código de Processo Penal não foi acolhido pela Constituição de 1988, ao admitir a condução coercitiva de investigados para interrogatórios e relembra seu papel de pressão psicológica:
“Quando tratada como medida cautelar autônoma, a condução coercitiva se assemelha, embora seja uma medida menos gravosa, à prisão temporária e à prisão preventiva. Sua natureza comum reside no uso da força para deslocar uma pessoa e submetê-la à autoridade do Estado. Quando utilizada com a finalidade, exclusiva ou não, de tomar-lhe o depoimento, essa medida cautelar revela-se como meio de isolar o indivíduo, ainda que temporariamente, do mundo exterior, criando uma atmosfera de intimidação que fragiliza a autonomia e vontade do indivíduo.
Nesse cenário de privação de liberdade, ainda que provisória, cria-se um estado psicológico no qual o exercício do direito ao silêncio é propositalmente dificultado“.
Ele mostra que a condução coercitiva, ou mesmo outras medidas cautelares que visem o interrogatório do suspeito/investigado, acaba sendo uma pressão, não admitida no sistema jurídico que faz do interrogatório do suspeito uma prova de sua defesa:
“(…) a utilização de medidas cautelares restritivas da liberdade – prisão preventiva, prisão temporária e condução coercitiva – com a finalidade de obtenção de depoimento revelam-se práticas inconstitucionais, porque destinadas exclusivamente a restringir a liberdade do acusado de modo a incitar sua colaboração autoincriminatória. As condutas de
(1) retirar o cidadão de sua casa com emprego de força policial;
(2) conduzi-lo para um local desconhecido previamente;
(3) dificultar sua comunicação com a família e advogado;
(3) realizar o interrogatório imediatamente após a prisão;têm por finalidade fragilizar o interrogado psicologicamente e assim tornar mais fácil a obtenção da prova autoincriminatória.
Contudo, foi justamente para impedir esse tipo de prática autoritária que se estabeleceu como cláusula pétrea o direito ao silêncio. A finalidade da garantia é claramente dotar o indivíduo de um status de intangibilidade pelo Estado no exercício de sua autodefesa.
No mesmo sentido do que defendeu Bottino na ADPF é o artigo que a desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) e professora de Direito Processual Penal da Unirio, Simone Schreiber, publicou nas redes sociais e foi reproduzido na Revista Fórum – O arbítrio começa a assustar: desembargadora critica abusos do judiciário:
“A condução coercitiva é uma violência que não pode ser corrigida por habeas corpus, dada sua instantaneidade. A pessoa é conduzida pela polícia para prestar depoimento. Encerrado o propósito da diligência policial, é liberada. Contudo, é um ato violentíssimo e ilegal.
Ilegal, pois a pessoa investigada não está obrigada a prestar depoimento, pode simplesmente invocar seu direito de não responder perguntas. E é evidente que se ainda não sabe nada sobre a investigação, e ainda não conseguiu conversar com um advogado sobre o tema, não deve responder a nenhuma pergunta.
Então a condução coercitiva só tem razão de ser por sua dimensão de espetáculo. Espetáculo de humilhação da pessoa investigada. Não serve para rigorosamente mais nada, só para a polícia federal fazer sua propaganda institucional, mostrando sua “eficiência no combate ao crime”.
Ao contrário de Mariz Maia, ela aborda o episódio da UFMG ainda que se citá-la diretamente:
“Cada um de nós deve refletir sobre que modelo de processo penal deseja em um Estado Democrático, ao invés de se impressionar com o “escândalo da vez”. Há irregularidades nos contratos firmados por determinada Universidade Pública? Investiga-se sem fazer disso um espetáculo! Caso os fatos sejam confirmados após o processo, após produzidas as provas em contraditório judicial e exercida a ampla defesa, as penas previstas em lei são aplicadas. É assim que a justiça funciona ou deveria funcionar. E nós juízes deveríamos ser os primeiros a zelar pelo devido processo legal”.
Por fim, relembra ainda o suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier que deveria ter servido de exemplo:
“Nem o suicídio do Reitor Cancellier serviu para fazermos uma autocrítica! Está mais do que na hora de refletirmos sobre nossos atos, sobre o papel que a Justiça Federal tem desempenhado nessa crise institucional e para onde estamos indo!”
A pressão da sociedade, sem dúvida, será essencial para provocar a mudança de tais práticas consideradas autoritárias. Seja através do convencimento dos juízes e magistrados, para deixarem de autorizá-las, seja junto ao Supremo Tribunal Federal, no sentido de decretar sua inconstitucionalidade.
Abaixo a integra da ADPF 395 e as manifestações da PGR e da AGU:
2 Comentários
Parabéns pela didática e esclarecedora reportagem.
Com o aprofundamento cada vez maior da ditadura midiático-judicial não dá pra acreditar em nenhuma melhora com relação aos Direitos Humanos Fundamentais. Estes neofascistas incrustados nas instituições públicas não têm nenhuma intenção de acatar a Constituição ou a legislação infraconstitucional. São delinquentes.