Indígenas em Brasilia reivindicam respeito aos seus direitos e às demarcações de terra. (Foto Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Em uma longa – 35 laudas – e dura Nota Técnica – n.º 01/2025 – encaminhada ao ministério da Justiça e Segurança Pública, sete procuradores do Ministério Público Federal (MPF) exortam o governo a, de forma “urgente e essencial”, assinar “as portarias declaratórias das Terras Indígenas Tupinambá de Olivença, Tupinambá de Belmonte e Barra Velha do Monte Pascoal”, todas no sul da Bahia, entre os municípios de Porto Seguro, Prado e Itamaraju, onde habitam indígenas Pataxós e Tupinambás.
Os procuradores que compõem a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, na qual funciona o Grupo de Trabalho Demarcação Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, bem como o dois procuradores de Salvador que respondem pelos Ofícios Estaduais Resolutivos para Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal na Bahia, cobram agilidade do governo, até por conta do nível da violência que a situação tem gerado. Alertam, inclusive, que não bastará a declaração da demarcação em si. Será preciso garantir a posse, a não invasão por estranhos e a garantia de políticas públicas.
Na Nota Técnica consta:
“(…) mais que DECLARAR a posse dos indígenas sobre seus territórios tradicionais, é também fundamental a adoção de medidas planejadas (e com duração de médio ou longo prazo) para PROTEGER as áreas (com manutenção de forças de segurança especializadas na região) e para REPARAR os danos socioambientais, assegurando as mais diversas políticas públicas do Governo Federal em favor dos povos originários para que possam viver e se desenvolver, com a adequada preservação ambiental, de forma a contribuir (como sempre contribuíram) com o equilíbrio ecológico na Bahia, no Brasil e no Planeta Terra”.
A região é alvo de uma longa e sangrenta disputa na qual fazendeiros e grileiros atacam os povos originários, querendo tomar-lhe as terras. Somente esse ano, em 25 dias (entre 11 de março e 04 de abril), quatro indígenas foram executados na região.
Vitor Braz, de 53 anos foi morto dia 11, na comunidade da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, no município de Prado. Cinco dias depois (16/03), a vítima foi Célio Santana Neves, de 33 anos, executado na aldeia Boca da Mata, dentro da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, município de Porto Seguro. O Pataxó Uanderson Braz Monteiro, de 28 anos foi executado em 28 de março, na mesma Aldeia Boca da Mata. No último dia 4 de abril, o pataxó João Celestino Lima Filho, 50 anos, foi baleado na Terra Indígena Comexatiba, também em Prado. Faleceu dois dias depois, no hospital.
Nesse contexto de disputas e perseguições, no último dia 20 de março, uma pretensa ação das Polícias Civil e Militar da Bahia, denominada “Operação Pacificar”, realizada, segundo as autoridades, para reprimir supostas práticas delitivas em território situado no interior da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal. Mas ela visava exclusivamente os indígenas, mostrando a tendencia das polícias e autoridades daquela região.
A ação proposta pela Polícia Civil e respaldada pelo Ministério Público Estadual – embora terras indígenas sejam da jurisprudência federal – sob a alegação de que os indígenas que reocuparam a área anteriormente invadida por fazendeiros, que praticaram crimes civis.
Conforme noticiou Leandro Barbosa em Governo da Bahia usa tropa e até balaclava em ação contra os Pataxó, no Repórter Brasil, a “promotoria afirma na representação que as retomadas foram perpetradas por crimes como roubo, cárcere privado, esbulho possessório, incêndio criminoso, formação de milícia privada e até tortura.”
O MP “afirma ainda que as ações ocorreram em grupo, com uso de armas de fogo e táticas de intimidação, e atribui aos Pataxós o objetivo de expulsar fazendeiros da região por meio do terror. As fazendas São Jorge, São José, Caprichosa, Nedila e Santa Clara são algumas citadas como epicentro das tensões.”
A reportagem relata que “a Polícia Civil da Bahia acusa os grupos envolvidos nas retomadas de saquear produções agrícolas, roubar móveis e veículos, e até restringir a liberdade de proprietários e trabalhadores das fazendas ocupadas”. O relatório de investigação criminal aponta também que o armamento utilizado seria fornecido por integrantes de facções criminosas, sendo pago “pelo volume de bens subtraídos durante as invasões”. Nada fala sobre os fazendeiros, grileiros e até possíveis milicianos.
Na realidade, a operação visava a uma liderança Pataxó. Os mandados da operação, autorizados pelo juiz Gustavo Vargas Quinamo, da Vara Criminal de Itamaraju, tinham como alvo Nilson Berg Fonseca, o ‘Binho’, cacique da aldeia Vale da Palmeira. Ele é conhecido também como ‘Bacurau’, nome inspirado na ave de hábitos noturnos. Ameaçado de morte por liderar as retomadas, evita sair de dia por já ter sido baleado três vezes em ataques.
Não por outro motivo, quando a policia invadiu a aldeia Vale da Palmeira, no final da madrugada do dia 20, inclusive com a participação de homens encapuzados que mais se assemelhavam a milicianos/pistoleiros, o barulho de tiros e do motor do helicóptero fez Maria de Fátima, 31 anos, acordar assustada. Estava com três crianças em casa e ouviu os golpes na porta, mas nem precisou se apresentar. Os policiais arrombaram-na, armados de fuzis.
“Cadê o Binho? Tem armas aqui?”, gritavam, enquanto reviravam tudo.
Em Brasilia, milhares de indígenas deram início na segunda-feira (07/04) o 21º Acampamento Terra Livre (ATL). Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Não encontraram quem procuravam, mas acabaram prendendo por pretensos flagrantes nove jovens indígenas dois deles, filhos do cacique procurado. Foram acusados do porte de armas. Mas nenhuma das armas apresentadas na delegacia como apreendidas, na realidade foi pega com qualquer um dos presos.
Essa constatação foi um dos motivos que levou a desembargadora Ivone Bessa Ramos, do Tribunal de Justiça da Bahia, na tarde de terça (08/04) a conceder liminar em dois Habeas Corpus libertando sete dos jovens presos pelo suposto flagrante. Permaneceram dois detidos a partir de mandados de prisão preventiva.
Ao fazê-lo, ela advertiu que o juízo não pode desconsiderar o contexto em que as disputas ocorrem. Na decisão, especifica: “por sua natureza complexa e multicausal, impõe ao julgador uma abordagem que transcenda o mero exame da tipicidade penal formal, demandando a consideração da realidade fática e histórica que permeia o litígio agrário em questão, sob pena de se incorrer na indevida criminalização de condutas eventualmente associadas à luta por direitos coletivos, cuja proteção encontra assento no texto constitucional.”
Ela lembra o direito dos indígenas à luta pelo seu território: “os fatos investigados derivam de um cenário de reivindicação territorial em área submetida a processo demarcatório, a envolver direitos originários constitucionalmente protegidos. Dessa maneira, e sem prejuízo de reavaliação futura, constata-se, em exame preliminar, que a segregação cautelar ora imposta aos pacientes revela-se excessiva e possivelmente dissociada da complexidade do contexto fático e jurídico que permeia a controvérsia”. Justificando assim a libertação dos mesmos.
A Nota Técnica do MPF surge estrategicamente quando as atenções se voltarão à Brasília por conta do 21ª Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente pelos povos indígenas no mês em que se comemora o Dia dos Povos Indígenas (19/04), esse ano terá como tema “Apib Somos Todos Nós: Em Defesa da Constituição e da Vida”.
São milhares de indígenas que acorreram à capital federal, E lá já estão os Pataxós. Eles, na segunda-feira (07/04), entraram na área do acampamento denunciando a violência que os atinge com um canto:
“Vamos dançar Pataxó / Pelo parente que morreu / Agradecemos ao pai Tupã / Pela vista que nos deu”,
Quem assina – Nesta Nota Técnica, o procurador regional da República Luís de Camões Lima Boaventura e os procuradores da República, Eduardo Jesus Sanches, Felício de Araújo Pontes Júnior, Thaís Santi Cardoso da Silva, Vítor Vieira Alves. Que compõem a 6ª Câmara, mais os seus colegas Marcos André Carneiro da Silva e Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de Almeida, de Salvador, alertam que os estudos sobre a demarcação dessas três terras indígenas estão prontos há vários anos.
Nos processos administrativos foram encontradas as minutas das Portarias Declaratórias das Terras Indígenas, que simplesmente não deixaram de ser assinadas por diversos governos, notadamente os de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, mas também pelo de Lula. As minutas foram relacionadas por eles:
Ou seja, para as três terras indígenas, foram encontradas seis Minutas de Portarias Declaratórias, três delas de 2023, ou seja, preparadas no Governo Lula, que até agora não as assinou. Consta ainda que desde setembro de 2023, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) encaminhou os processos administrativos ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para análise e para embasar a edição das portarias declaratórias. Mas estão todos ali engavetados.
Essas minutas destacam os procuradores, foram todas encaminhadas antes da aprovação da Lei 14.701/2023. O texto, pretensamente feito para regulamentar as demarcações de terras indígenas, tenta, na realidade, boicotar esse direito constitucional dos povos originários. Gerou um debate que se arrasta no Supremo Tribunal Federal sobre a validade dessa lei e a questão do Marco Temporal.
Mas como advertem os procuradores autores da Nota Técnica, isso não atinge os processos demarcatórios das três terras indígenas do sul da Bahia, que já estavam encaminhados quando a lei foi aprovada no Congresso.
Na visão do MPF o Executivo precisa vencer essa omissão, “seja como Estado (comprometido com a ordem constitucional e internacional) seja como Governo (que assumiu e declarou compromissos para com os povos originários)”.
O atraso, advertem os procuradores, “poderá resultar em responsabilização internacional, já que o país é signatário de tratados que protegem os direitos dos povos indígenas e tem sido recomendado por sua inércia por organismos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.
Há, porém, outra questão que deve preocupar o governo Lula: a COP30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025), a ser realizada no Brasil. A Nota Técnica relembra que o Estado brasileiro precisa agir de forma diferente quanto a estas terras indígenas, antes da conferencia, para não passar por novos constrangimentos.
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1 Comentário
excelente matéria! esclarece fatos que a mídia convencional não traz. Onde está o ministério dos povos indígenas? Será apenas figurativo?