“Você é mãe. Pobre, preta, e aquela fila dura horas.
Sacola de plástico com um pedaço de bolo dentro. É debaixo de sol, de chuva e da saraivada de humilhação no olhar de quem passa te olhando pela janela do ônibus. Você não tem nenhuma culpa. Você o criou com o melhor que você podia. Ser mãe não é crime.
Barraco de lona, suor condensado pingando do teto, ninguém estava lá para saber como foi. Mas você estava. Todo dia. Alimentando ele com o que você tinha e também com o que não tinha. Você botou na escola, rezou por ele e bordou uniforme. Você tem a carta de elogio da primeira professora e a foto do catecismo na igreja até hoje, amassadas na mesma gaveta.
Ele é gente sim. Ele é gente e você sabe. As outras da fila também sabem. Você sabe que ele tem de pagar pelo que ele fez. Mas ele é gente.
Quando a fila chega ao fim, a entrada não guarda nenhuma cortesia. Alguém te empurra, manda baixar a cabeça e andar logo. Ninguém nunca te deu bom dia naquele inferno. Aí vem a sala fechada.
Um homem de cada lado. “Tira a roupa”. Você tira toda. “Abre as pernas”. Você abre. “Não tem nada escondido na buceta não?” Você nega. “Então agacha três vezes”. Você agacha. No caminho pro pátio, os corredores cheiram a bosta e mijo. Você nunca entendeu porque não limpam aquilo.
Quando ele te vê, ele muda o jeito de andar e esconde o sorriso dos outros. “Oi mãe”.
A voz dele é doce quando fala com você. Baixa a cabeça e pede benção, terço nas mãos, entrelaçado entre as suas. Com você ele fala do que ele tem medo. Não há tempo pra muita conversa nem pra choro.
Pergunta como estão os meninos. Leva o bolo na sacola. É o favorito dele. Ele é gente sim. Na volta você traz o medo do que pode acontecer com ele. E é assim todo mês, todo ano, todo o tempo da pena que você aceita, planejando estar viva e feliz pra abraçá-lo no dia que sair.
Mas chega um dia em que não há mais fila. O que há é a notícia da rebelião e o seu pânico.
O que há depois disso, rapidamente na tela do seu próprio telefone, é a foto dele, bermuda rasgada, cabeça separada do corpo, circulando nos grupos de WhatsApp.
O que há é algo pior do que a sua própria morte. O que há é a grade de segurança a um quarteirão de distância, a barreira policial, a fumaça dos colchões queimados no céu e uma câmera de televisão muito próxima do teu rosto, capturando o grito das suas lágrimas.
O que há é a alegria mal disfarçada no olhar das mesmas pessoas que passam de ônibus, e a chegada das bacias do IML para recolher os pedaços dos corpos deles.
O que há é a sua miséria ajoelhada com a cara no asfalto, rosnando sozinha e mordendo o meio fio, querendo que pelo menos não percam a cabeça dele no meio das outras.
O que há é um governador dando entrevista dizendo que ele também “não era nenhum santo” antes de almoçar no melhor restaurante da cidade.
O que há são milhões de pessoas que comemoram a foto dele esquartejado no Face Book e um Secretário Nacional de Juventude dizendo que deveria haver uma chacina dessas por semana, pra matar mais jovens pretos.
O que há é a sua necessidade de encontrar na bolsa dinheiro trocado pra pagar o ônibus e voltar pra casa. Sozinha.”
(*) Texto original na página do Face Book do jornalista Artênius Daniel, diretor cultural do Sindicato dos Jornalistas de Belo Horizonte, compartilhado por 2.173 pessoas entre elas o advogado Humberto Barrionuevo Fabretti.
Acrescento: O inacreditável é que na sociedade hipócrita que estamos vivenciando, muitos culpam mães, parentes e amigos destes presos pelos crimes que eles cometeram sem que nenhum deles tenha sido submetido a julgamento ou haja alguma prova deste envolvimento. Fazem isto e esquecem o papel do estado, omisso, quando permite que crianças fiquem sem escolas, jogadas nas ruas, ao Deus dará, submetida a toda sorte de “sedução”, provocada por uma sociedade de consumo onde o principal não é ser, mas ter. Lembro aqui a famosa previsão de Darcy Ribeiro quando lançou a escola de tempo integral:
O pior é que não se construíram nem escolas e nem presídios, o que só incentivou o aumento da delinquência.
8 Comentários
Falando da barbárie ocorrida nos presídios da região Norte. Pessoas sendo mortas e até decapitadas. Então, logo em seguida, surgiram boatos a respeito dos Direitos Humanos, dizendo que as famílias dos mortos receberiam rapidamente altas indenizações. Eram boatos para desmoralizar os Direitos Humanos e nós saímos retransmitindo sem o menor pudor, espalhando assim o ódio. De maneira tão rápida esquecemos os preceitos cristãos e passamos a achar que presidiários mereceriam o ocorrido. São vidas. Como poderemos lutar contra o aborto e a eutanásia, se concordamos com mortes e decapitações? Só falta dizermos que se a mulher que aborta for negra, pobre e morar em uma comunidade, será um infrator a menos. Uma moralidade falsa e perversa.
Se não temos discernimento para saber o que divulgar, é melhor que deixemos de lado o Whatsapp e o Facebook. Diz a Palavra de Deus, Caso teu olho direito te leve a pecar, arranca-o e lança-o para longe de ti, pois é preferível que se perca um de teus membros do que todo o teu corpo seja laçado na geena (Mt 5, 29-30). Melhor então deixarmos de lado o ativismo digital nas redes sociais. Pensemos no próximo e na nossa salvação.
As redes sociais estão cheias de perfis e propagandas neonazistas, racistas, misóginas, homofóbicas, machistas e intolerantes. O fascismo tem a grande necessidade de produzir um inimigo comum. Estamos sendo manipulados pelo pensamento hegemônico e a opinião publicada. Cuidado.
Voltando aos presidiários mortos, por acaso nós rezamos pela salvação daquelas pessoas? Rezamos uma missa por eles? Precisamos conhecer melhor o nosso Senhor Jesus Cristo. Ele com certeza se compadeceu daquelas pessoas.
Muito bom o seu artigo
Nem toda esta barbárie mencionada pelo J.Paiva, além da entrega do patrimônio público a estrangeiros, de traidores da pátria ocupando altos cargos da “república”, da extinção dos mais comezinhos direitos do trabalhador, de toda a manipulação da globo e muito mais, nada disso consegue tirar a apatia e a indiferença não só da população (que teme o atual “governo”) mas das lideranças populares que deveriam estar organizando grandes protestos pelo menos nas capitais. Onde se esconderam os dirigentes da CUT, do MST, MTST, da FBP, da FBSM, dos partidos de Esquerda? Estão conformados com a atual ditadura? Acham que está tudo bem? Estão de férias? Estão refugiados dentro de esconderijos para não serem cobrados? A situação é deprimente e desoladora.
Desde sempre, sou contra prisão. Homem não foi feito para ficar preso. Não sei o que fazer com aqueles que romperam com todos os códigos. Sei apenas que o preso é o “esgoto” que a sociedade fabrica e depois expele… O presídio é a plataforma sem trem nem trilho.
O retrato acima revela a cruel mentira da lei ao determinar que a pena não passará da pessoa do réu… A falácia construída pelo sistema penal ignorou a família, a mãe do preso, submetida a tratamento indigno.
Pior será constatar, em breve, que essa tragédia será esquecida até ocorrer outra barbarie…
Prezado jornalista Marcelo Auler, prezados leitores.
Não podemos compactuar com a barbárie que está instalada no Brasil, sobretudo após o golpe de Estado. Os ovos da serpente fascista eclodem por todo o País. A mídia criminosa que disseminou o ódio, embrião do fascismo, tem grande parcela de culpa por essa barbárie. As polícias corruptas e criminosas, bem como todo o aparelho repressor do Estado (aí inclusos os MPs e o Judiciário) têm culpa e responsabilidade direta pelos massacres cada vez mais freqüentes nesses campos de extermínio de pretos, pobres, e excluídos socialmente, que são os presídios brasileiros. Combato sem tréguas esse discurso do ódio; não me calo diante de qualquer provocação. Analfabetos políticos, esses nazifascistóides não resistem a 5 min de argumentação. Eles xingam e ofendem exatamente porque não têm razão nem argumentos para defender o nazifascismo e o ódio que lhes domina.
Hoje fiquei sabendo de um boato, segundo o qual o Estado está sendo processado e as famílias dos presos chacinados, por meio de advogados, pedem uma indenização de R$90 mil. Os nazifascistas, os devotos do ódio e os manipulados expressam ‘falsa indignação’, alegando que a família ‘cidadão de bem’ que é vítima de assalto e homicídio não recebe o mesmo tratamento ‘benevolente’. Quando alguém que se classifica como ‘cidadão de bem’ lhes contar um boato como esse, demonstrando falsa indignação, hipocrisia e ódio, devolvam-lhes a ‘bola’, questionando:
_ Se alguém da sua família tivesse cometido um crime, como porte de drogas ou furto, fosse apenado e colocado num presídio como esses de Manaus e Roraima e após uma rebelião ou conflito de facções fosse assassinado e decapitado, você acha que seria exagero ou privilégio exigir do Estado uma indenização?
Mais ainda:
_Você trocaria a vida de um familiar que estivesse preso por R$ 90 mil?
Nem adianta o sujeito apelar para argumentos como os usados por boçalnaro ao ser questionado poe Preta Gil sobre o que faria se um filho dele se apaixonasse por uma mulher negra, pois qualquer pessoa pode vir a cometer crimes e se houver processo justo, ela pode ser condenada e até mesmo privada de liberdade; afinal os filhos da classe média e da elite também cometem crime bárbaros que, se julgados de acordo com a Lei, podem ensejar na prisão dos réus.
finalizo este comentário publicando uma carta do jornalista José Eduardo Gonçalves, publicada ontem no DCM, mas que já não aparece mais nos destaques da página de entrada do portal. O endereço é http://www.diariodocentrodomundo.com.br/minha-vida-na-prisao-por-jose-eduardo-goncalves-jornalista-editor-e-escritor/. Segue abaixo a carta.
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Minha vida na prisão. Por José Eduardo Gonçalves, jornalista, editor e escritor
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Postado em 08 Jan 2017por : Diario do Centro do Mundo
FOTO PRISÃO
Publicado por José Eduardo Gonçalves, jornalista, editor e escritor, em seu blog Palavra Afiada.
Leio o noticiário dos massacres em Manaus e Roraima e, emocionado e atordoado, decido que chegou a hora de contar o que nunca contei. Essa história tem 40 anos e jamais veio a público. Acho que está na hora de dizer o que vivi, o que vi, o que senti durante os três meses em que estive preso, em 1977, no então presídio do Cassôco, em São João del-Rei.
Fui um preso comum. Preso em flagrante por porte de um cigarro de maconha, juntamente com outros cinco colegas. Eu tinha 19 anos, estudava jornalismo na PUCMINAS e estava em minha cidade natal para aproveitar o feriado da Semana Santa. Naquela sexta-feira da Paixão, na praça da Biquinha, fomos presos à tardinha. Depois de horas detidos na delegacia e de um longo sermão, fomos liberados. Já era noite, a procissão que eu tanto queria ver já tinha passado.
Meses depois, na primeira semana de aulas do semestre, fui chamado a depor em São João. O caso fora reaberto em função de uma briga política entre o juiz da cidade e o promotor. Fui com a roupa do corpo, certo de que seria algo de poucas horas. Ledo engano, do depoimento fui levado direto para a prisão. Não me sai da cabeça a cena de minha entrada na cadeia, o corredor, o cadeado da cela se abrindo, aquele tanto de olhos me vasculhando.
Nós seis fomos distribuídos em três celas, em duplas. As duas meninas ficaram em uma cela separada, só delas. Na minha cabiam oito pessoas, havia o dobro. Homicidas, assaltantes, traficantes. Nos finais de semana a cota aumentava substancialmente. Dois presos disputavam o comando – Preto, um assassino confesso, valentão e boquirroto, e o Ligeirinho, ladrão carioca, corpo coberto de marcas, bom no uso da faca. Ali vivi o meu inferno.
Camas e colchões grudados uns nos outros pra caber todo mundo. Uma televisão pequena e velha, sem cores, dependurada num canto bem alto. A luz acesa 24 horas. Uma janela gradeada que dava para o pátio. Um lugar chamado “boi” que era só um buraco no chão, em cima o chuveiro. Ali se cagava, se masturbava, a porta era uma tira de plástico. As roupas ficavam penduradas em varais que cruzavam a cela. Sim, você já viu essa cena no cinema. Eu a vivi.
Minha segurança eu garanti logo de cara, com muito papo e oferta de cumplicidade e serviço. Privilegiado, eu recebia diariamente muita coisa que eu compartilhava: comida, frutas, revistas de mulher pelada. Também mostrei que podia ser útil, escrevia cartas para os detentos, fazia comunicados aos advogados. Na greve de três dias por alguma coisa que nem me lembro mais, me encarregaram das negociações entre o grupo e os policiais (meu pai pagou o conserto do chuveiro, acho que isso ajudou a por fim ao imbróglio).
Eu vi muita coisa.
Eu vi uma mulher negra, inteiramente nua, correndo pelo corredor com o corpo coberto de bosta.
Eu vi um homem trôpego gritando que lhe devolvessem o rato, pois ele tinha fome.
Eu vi um jovem mulato, um ex-escoteiro, gay, sob as cobertas, sendo estuprado pelo chefão da cela.
Eu vi as peladas de quarta-feira, quando desafetos fingiam correr atrás da bola para quebrar as pernas de uns e outros.
Eu vi como os presos se divertiam aos sábados. Os guardas traziam os bebuns presos e os colocavam encostados nas grades, então os detentos na cela se amontoavam ali e espancavam os caras. Uma vez, insuflado pelo grupo, eu dei com uma sandália Havaiana nas costas de um desses bêbados. Não sei definir o que senti, aquilo ainda me dói.
Eu ouvia os espancamentos dos policiais, especialmente às sextas e sábados, com os gritos de dor entrando na cabeça da gente pra nunca mais sair.
Eu vi uma festa na cela à base de cachaça contrabandeada e de comprimidos surrupiados de um epiléptico que acabara de ser preso por matar a mãe a facadas. A coisa degringolou, virou briga entre os dois grupos da cela, com ripas de estrado transformadas em facas pontudas. Giletes cortavam o ar, vi juras de morte, sangue e dor. (Eu escrevia uma carta para a namorada e ouvia Lumiar, de Beto Guedes, quando a briga explodiu). Ninguém morreu, mas vi a morte bem perto. Às 4 da manhã, todos aparentemente dormiam, os dois líderes pularam de suas camas e ameaçaram começar tudo de novo. Eu pulei entre os dois. Não era um ato heróico, era puro desespero.
Eu vi as duas amigas, na cela em frente, gritando feito loucas quando a briga estourou em nossa cela.
Eu vi quando levaram o Ligeirinho para uma temporada de dias na solitária. Eu vi quando ele voltou, faltava-lhe um dente.
Eu vi a cidade lá fora quando saía, escoltado, para as sessões no Fórum (por morar em cidades diferentes, fomos acusados pelo promotor de fazer parte de uma rede internacional de tráfico) ou cuidar de um canal dentário.
Eu vi homens fortes, parrudos e brigões chorando de saudade de seus filhos.
Eu vi os olhos de meu pai me olhando do outro lado das grades – e ele nunca me perguntou o que eu tinha feito para merecer aquilo. Sua única pergunta era: você precisa de alguma coisa?
Acho que não consigo escrever mais nada. Eu só queria dizer que isso acontecia em um prisão mequetrefe do interior de Minas, um lugar pequeno, com menos de 50 presos – e já era bem ruim. Por isso sou tomado de indignação ao ver os acontecimentos dos últimos dias.
Me enoja o tratamento que é dado aos encarcerados. Me enoja o discurso de quem aceita a barbárie como punição a bandidos. Me enoja a leviandade, a omissão e a insensibilidade das autoridades. Tudo isso me enoja porque eu estive lá dentro. Eu vi a miséria, a degradação, a violência, a indiferença, o desamor.
Morre-se muito facilmente em uma cela. Eu poderia estar em Manaus ou em Boa Vista, preso provisoriamente, aguardando julgamento. Junto a criminosos de alta periculosidade. Em meio a briga de facções, sendo espancado ou servindo de madame pra algum fortão. Eu sobrevivi ao inferno. Casei, descasei, casei de novo, tive filhos, construí uma carreira, sou dono de minha vida. Quantos, nesse exato instante, estão perdendo essa chance?
Uma passagem em alguns blogs ou sites de notícias nestes dias tem nos mostrado um mundo pavoroso de pessoas pedindo mais mortes, repetindo que “bandido bom é bandido morto” ou fazendo cálculos macabros, como este aqui
“56 mortos em Manaus + 33 em Roraima = 89.
89 x 4 mil/mês = 356 mil X 12 meses = 4.272.000,00
Economizamos uma boa grana. Com esse dinheiro dá pra construir 4 creches.”
Como se não bastasse, ainda temos 4 deputados incentivando o ódio e o crime. E chama a atenção, por exemplo, o face do Olímpio (SD/SP) pelo número de vezes que “Deus” é citado. A escória. Quem, afinal, é o bandido?
Se voltarmos um pouquinho no tempo, veremos os mesmos ataques aos beneficiários do bolsa família e, não fora o risco de processo, certamente os negros e homossexuais estariam sendo linchados em praça pública.
Certamente são as mesmas pessoas que se dizem chocadas com o estado islâmico ou que lotam alguns tempos de certas denominações. São os que bradam contra a corrupção e pedem a prisão do Lula
Onde tudo isto vai nos levar? Será que ainda podemos ter esperança?
BRITO, logo logo os coxinhas virão dizer que defendemos bandidos. É normal, visto que não entendem o que se discute.
BRITO, logo logo os coxinhas virão dizer que defendemos bandidos. É normal, visto que não entendem o que se discute.