Manda a prudência que não se arrisque previsões sobre julgamentos ainda por ocorrer. Um velho ditado alertava que de cabeça de juiz tudo se pode esperar.
Mas no caso do Habeas Corpus (HC 164.493) impetrado pela defesa de Luiz Inácio Lula da Silva para discutir a falta de isenção do então juiz, hoje ministro da Justiça, Sérgio Moro nos processos movidos contra o ex-presidente na 13ª Vara Federal de Curitiba, é possível sim arriscar um resultado. Ele tende a ser desfavorável ao ex-magistrado, apesar de já contar com dois votos rejeitando o pedido inicial. Ou seja, contra a tese de que o juiz foi parcial.
Protocolado em novembro de 2018, bem antes portanto de surgirem, em 9 de junho, os diálogos de procuradores e magistrado revelados pelo The Intercept, este HC poderá anular todos os processos que correram contra Lula junto à 13ª Vara Federal de Curitiba. Anulando-os, devolverá, inclusive, os direitos políticos de Lula, inclusive o de se candidatar nas futuras eleições. Para isso serão necessários três dos cinco votos dos ministros que compõem a 2ª Turma do STF.
Em dezembro passado, ao apreciarem o processo, os ministros Edson Fachin, relator, e Cármen Lúcia, presidente da Turma, votaram pelo não conhecimento do HC. Um pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes paralisou o julgamento. Nada impede, porém, que ao voltarem a analisar o caso, os votos anteriormente proferidos sejam modificados.
Poucos acreditam em mudanças de posição dos ministros que já se posicionaram, mas trata-se de algo possível de ocorrer por conta do surgimento da Vaza Jato, com transcrições das conversas de procuradores da República e o então juiz Moro. São diálogos reportados nas 22 fases da Vaza Jato, publicadas pelo The Intercept e outros órgãos de comunicação (leia aqui). Indiscutivelmente estas revelações mudaram a visão do que foi o trabalho da Força Tarefa da Lava Jato de Curitiba. Demonstraram a falta de isenção do juiz. Mais ainda, o jogo político que motivava os seus operadores.
Quando a inicial do HC foi protocolada, os advogados de Lula, Cristiano Zanin Martins, sua esposa, Valeska Teixeira Zanin Martins, Alfredo Ermírio de Araújo Andrade, Luís Henrique Pichini Santos, Kaíque Rodrigues de Almeida e Marcelo Pucci Maia relacionaram fatos públicos que já apontavam para uma perseguição ao ex-presidente.
Entre estes estavam sua condução coercitiva para depor sem antes ser devidamente intimado; a interceptação dos telefones dos advogados do ex-presidente, ferindo um direito constitucional da defesa; a divulgação de diálogos de Lula com a então presidente Dilma Rousseff, mesmo tendo o grampo ocorrido após decisão suspendendo a interceptação telefônica e o juiz não ter autoridade para revelar conversas de autoridades com privilégio de foro.
Acrescentaram ainda medidas tomadas fora do processo, sem que Moro tivesse autoridade para tal, como sua interferência junto à Polícia Federal para não cumprir a liminar concedendo a liberdade de Lula deferida pelo desembargador Rogério Favreto, do TRF-4.
Ou ainda decisões meramente políticas, como o vazamento, indevido, que o juiz fez de parte da delação premiada do ex-ministro Antônio Palocci, para atingir o PT na reta final da campanha eleitoral. Também citaram manifestações de Moro sobre atos políticos e os episódios que levaram o então juiz a abandonar a toga para servir ao presidente Jair Bolsonaro, cuja eleição é vista como consequência direta do impedimento de Lula participar do pleito.
Foi com base nessas alegações que Fachin e Cármen Lúcia negaram conhecimento do Habeas Corpus impetrado. Mas, a partir da divulgação das conversas que o procurador Deltan Dallagnol teve pelo Telegram, reveladas pelo The Intercept, os argumentos da defesa ganharam mais peso. Ainda em 13 de junho a defesa de Lula levou ao conhecimento do Supremo, oficialmente, os primeiros vazamentos dos diálogos do procurador Dallagnol. Na petição, Zanin e seus companheiros de defesa alertaram:
“que as recentes publicações veiculadas pelo Portal “The Intercept” cujo conteúdo é público e notório (CPC, art. 374, I7, c.c. art. 3º do CPP), revelam a conjuntura e minúcias das circunstâncias históricas em que ocorreram os fatos comprovados nestes autos e sublinhados durante a sustentação oral realizada pelo primeiro subscritor em 04.12.2018 — tudo a demonstrar situações incompatíveis com a “exigência de exercício isento da função jurisdicional” e que denotam o completo rompimento da imparcialidade objetiva e subjetiva, como exposto na peça vestibular, com as consequências ex vi legis“.
Naquela data, porém, só foi possível levar ao conhecimento dos ministros do Supremo as primeiras reportagens da Vaza Jato. Outros diálogos divulgados depois reafirmaram a falta de isenção do juiz, bem como mostraram os procuradores extrapolando suas funções legais nos processos contra o ex-presidente.
Um exemplo foi a “colaboração” do magistrado com a acusação. Algo impensável em um devido processo legal no qual o juiz não pode tomar partido de qualquer dos lados.
Ou ainda a confissão do próprio Dallagnol de que as provas contra Lula eram fracas e não demonstravam perfeitamente bem que o ex-presidente tivesse recebido propinas. Evidências que se constata nos títulos das reportagens publicadas no The Intercept, que reproduzimos no quadro ao lado.
Para reforçarem a tese que sustenta a necessidade de isenção do juiz, os advogados recorreram a um voto do então ministro do STF, Cézar Peluso, no HC 94.641, de 2008:
“A imparcialidade da jurisdição é exigência primária do princípio do devido processo legal, entendido como justo processo da lei, na medida em que não pode haver processo que, conquanto legal ou oriundo da lei, como deve ser, seja também justo – como postula a Constituição Federal -, sem o caráter imparcial da jurisdição. Não há, deveras, como conceber-se processo jurisdicional – que, como categoria jurídica, tem por pressuposto de validez absoluta a concreta realização da promessa constitucional de ser justo ou devido por justiça (due process) -, sem o predicado da imparcialidade da jurisdição”. (grifo do original do HC).
Há, em Brasília, quem acredite que as publicações do The Intercept podem afetar, inclusive, o posicionamento da ministra Cármen Lúcia. Teria sido influenciada até pelos comentários de procuradores da República da Força Tarefa de Curitiba a respeito de seus posicionamentos e comportamento no dia a dia do Supremo Tribunal Federal, seja como presidente da corte ou mesmo na condição de ministra.
Basta ver que para o procurador Athayde Ribeiro Costa ela era “uma frouxa”. Já no entendimento de Dallagnol, tratava-se de uma “Amiguinha da esposa do Gilmar Mendes”, como revelaram os diálogos mantidos por eles via Telegram e publicados pela Vaza Jato, no The Intercept.
Independentemente do posicionamento de Cármen Lúcia, a definição do julgamento do Habeas Corpus que discutirá a falta de isenção por parte do juiz Sérgio Moro ao comandar os processos contra o ex-presidente Lula, pende muito mais em torno do voto a ser proferido pelo ministro Celso de Mello, o decano do Supremo.
Como se disse, por ser travado na 2ª Turma, este julgamento dependerá de apenas três votos para que o HC seja acatado. Dois deles já estariam definidos a favor da tese apresentada pelos defensores de Lula. São os votos de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Por tudo o que eles têm manifestado ao longo de diversos julgamentos, ninguém duvida que abraçarão a tese da falta de isenção do juiz.
Da mesma forma que não há dúvidas que o ministro Fachin permanecerá atrelado à sua posição de que os processos da Lava Jato transcorreram dentro da normalidade. Do contrário, estará atestando, no mínimo, sua própria displicência, ao não reparar antes as ilegalidades que sobressaíram ao longo do tempo.
Se há dúvidas com relação a uma nova posição da ministra Cármen Lúcia – embora muitos duvidem que ela mude seu voto – ao que parece, a posição do decano se dará dentro da coerência com seus posicionamentos anteriores.
Há 30 anos naquele plenário, Celso de Mello – que em 1 de novembro de 2020, ao completar 75 anos, se aposentará compulsoriamente – algo que não se discute nos seus votos é a coerência ao lidar com as interpretações dos textos legais.
Não por outro motivo que a defesa de Lula, na inicial do Habeas Corpus, reproduziu seu posicionamento em um Habeas Corpus (HC 95.518/PR) julgado em maio de 2013, no qual também se discutiu a falta de isenção do mesmo juiz curitibano, em processo criminal de 2004, dez anos antes da Lava Jato..
Como consta do relatório do então ministro Eros Graus, no HC questionava-se “a atuação de SÉRGIO FERNANDO MORO, Juiz Federal titular da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR, na condução do processo n. 2004.70.00.012219-8, processo no qual é imputada ao paciente a prática de crimes contra o sistema financeiro nacional, crimes tipificados na Lei n. 7. 492/86“.
O Habeas Corpus foi negado. Mas o que atraiu a atenção da defesa de Lula foi o voto contrário de Celso de Mello que encontrou motivos para aceitar a suspeição do juízo, como registra o inteiro teor do acórdão, onde consta a manifestação do decano copiada abaixo, mantidos os grifos do original:
“Peço vênia para deferir o pedido e, em consequência, invalidar o procedimento penal, pois tenho por gravemente ofendida, no caso em exame, a cláusula constitucional do devido processo legal, especialmente se se tiver em consideração o comportamento judicial relatado na presente impetração.
Na realidade, a situação exposta nos autos compromete, segundo penso, o direito de qualquer acusado ao “fair trial”, vale dizer, a um julgamento justo efetuado perante órgão do Poder Judiciário que observe em sua conduta, relação de equidistância em face dos sujeitos processuais, pois a ideia de imparcialidade compõe a noção mesma inerente à garantia constitucional do “due process of law”.
São essas as razões que me levam a dissentir da corrente majoritária. É o meu voto.”
O direito a julgamentos isentos e imparciais foi realçado mais recentemente quando ele se manifestou em torno da presunção de inocência dos réus condenados, defendendo a não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença. Naquele julgamento o decano do STF voltou a defender, por diversas vezes, o devido processo legal e a necessária isenção dos magistrados. Do voto que proferiu em 7 de novembro, extraímos trechos que demonstram sua defesa da obrigatoriedade da isenção do magistrado e o respeito ao devido processo legal:
“(…) o Supremo Tribunal Federal, ao decidir os litígios penais, quaisquer que sejam, respeitará, sempre, como é da essência do regime democrático, os direitos e garantias fundamentais que a Constituição da República assegura a qualquer acusado, observando, em todos os julgamentos, além do postulado da impessoalidade e do distanciamento crítico em relação às partes envolvidas no processo, os parâmetros legais e constitucionais que regem, em nosso sistema jurídico, os procedimentos de índole penal.
(…) o Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional e máximo guardião e intérprete da Constituição da República, garantirá, de modo pleno, às partes de tais processos, na linha de sua longa e histórica tradição republicana, o direito a um julgamento justo, imparcial e independente, em contexto que, legitimado pelos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, repele a tentação autoritária de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se culpado fosse aquele em favor de quem milita a presunção constitucional de inocência.
(…) o Supremo Tribunal Federal não pode demitir-se, mesmo que o clamor popular manifeste-se contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.
(…) Na realidade, a resposta do poder público ao fenômeno criminoso – resposta essa que não pode manifestar-se de modo cego e instintivo – há de ser uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração, perante juízes isentos, imparciais e independentes, de um processo que neutralize as paixões exacerbadas das multidões…” (grifo do original).
Diante destes posicionamentos, ainda que se deva levar em conta a imprevisibilidade de cada novo julgamento, não é difícil arriscar que, mantendo sua coerência de três décadas como ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello tenderá a concordar com a parcialidade do juiz Sérgio Moro nos processos contra o ex-presidente Lula. Tal como considerou, em 2013, portanto, antes do início da Operação Lava Jato, ao julgar um HC sobre um processo de 2004.
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1 Comentário
O problema é que, antes de ficar na dependência de Celso de Mello, Lula está à mercê do jogo desonesto de Gilmar Mendes – de não levar à mesa da segunda turma o seu voto na suspeição de Moro enquanto não consegue benefícios políticos para o seu grupo político público, notório e descarado (FHC, Serra, Temer, Aécio et caterva), numa enfumaçada chantagem sobre o ex-presidente Lula para que este ceda em seus direitos políticos, o principal dizendo respeito a uma renúncia à disputa presidencial prevista para 2022.
E, nesse jogo, uma das desonestidades visíveis é a de (Gilmar Mendes) não votar ‘enquanto’ Celso de Mello não se mostrar convencido da suspeição de Moro, dando a entender que, assim, ‘está’ jogando a favor de Lula, para infeliz crença de parte da esquerda, onde já chega a ser tratado como o ‘novo paladino da justiça’. Ora, Celso de Mello vai votar como quiser e não por ‘se deixar convencer’ por Gilmar Mendes, o ‘seletivo garantista dos seus’.
Gilmar vai é continuar empurrando com a barriga a suspeição de Moro, ainda mais agora que se safou do constrangimento da prisão de Lula, o que o obrigava – Gilmar Rolando Lero – a ficar dando trocentas entrevistas praticamente iguais, com exceção de um aspecto: primeiro, a decisão saía em setembro, depois em outubro/novembro e, da última vez, no jornal Clarin, até o fim do ano, ou seja, em dezembro, isto é, com o recesso seguido de férias dos marajás do supremo, a decisão não sai antes de fevereiro de 2020.
Com Celso de Mello já faltando a sessões, por várias vezes, por motivo de saúde, vai que, até a decisão , renuncia ao cargo, fica impossibilitado de exercê-lo, ou, pior, faz alguma viagem fatídica nas férias, repetindo a história (ele que se cuide). Casos em que Gilmar diria ‘que pena, chegou o terrivelmente evangélico’, conseguiria o seu intento político e, ainda assim, sairia como herói para a parte da esquerda que nele bota fé.
E, last but not least, não esquecendo que, no início da sua carreira no STF, a Celso de Mello foi dado, por Saulo Ramos, um apelido pouco lisonjeiro – shit judge, se não me engano. Será que, se Gilmar Mendes deixar ele votar na suspeição de Moro, Celso de Mello não vai querer ser coerente mesmo é com o seu início de carreira? Afinal de contas ele não estava propriamente infeliz com a prisão de Lula quando deu o voto decisivo para mantê-lo na cadeia em 25/06/2019, cinco meses atrás.