Sexto de uma família de sete filhos, durante os meus 61 anos de idade convivi com meu irmão mais velho, José Francisco, uma pessoa especial. Faria 69 anos na próxima semana, mas faleceu em julho. Viveu bem, feliz, com apoio da família, de muitos amigos, de algumas instituições que juntos lhes proporcionaram até mesmo uma vida social intensa.
Ao longo da minha vida sempre pensei na coragem de meus pais que, mesmo após descobrirem que o primogênito tinha problemas, encararam mais seis filhos pela frente. Se assim não o fizessem, jamais eu teria vindo ao mundo.
Trago este depoimento no momento em que o procurador geral da República, Rodrigo Janot, assume um posições a favor do aborto para gestantes que contraíam Zika. Ele, conforme consta do site da Procuradoria Geral da República (PGR), enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) parecer no qual diz defender a ampliação de direitos de pessoas com microcefalia e outras consequências decorrentes da epidemia do vírus Zika.
A questão principal por ele defendida é a possibilidade de interrupção de gravidez, somente para os casos diagnosticados de infecção pelo vírus da Zika, por decisão da gestante.
É justamente nesta questão, da autorização do aborto para gestantes que tenham detectado o vírus, que mora o perigo ou, quem sabe, o preconceito. Janot está autorizando a chamada Eugenia, muito em prática na Alemanha nazista.
Independentemente de questões religiosas, o aborto deve ser autorizado pelo Estado a todas as mulheres que o desejarem fazê-lo. Elas devem ser apoiadas na liberdade de decidirem sobre o próprio corpo, de acordo com suas consciências e com o que preconizam suas crenças e seitas. Trata-se, acima de tudo de uma questão de saúde pública pois a hipocrisia de uma lei que criminaliza tal prática acaba gerando muito mais mortes e problemas a grávidas do que aconteceria com a liberação e o devido acompanhamento médico e psicológico, inclusive por hospitais e postos de saúde públicos.
Autorizar o aborto apenas para as gestantes que detectam o vírus é, como afirmou Luís Nassif em artigo no JornalGGN – Procurador Janot e a eugenia para crianças com deficiência – mostrar duas facetas negativas de Janot: a discriminação e o sentimento de eugenia.
Discriminação por manter a criminalização do aborto para as demais gestantes quando a elas também deveria ser dado o direito de optarem de acordo com suas consciências. Eugenia, no momento em que o aborto valeria apenas para evitar o nascimento de crianças com necessidades especiais. No caso, vale questionar, por que apenas para as mulheres que detectam o vírus da Zika? E gestantes que descobrem outros tipos de anomalias em seus fetos? Não estariam na mesma situação?
Ao longo da vida, não apenas por conta do meu irmão, convivi com diversas pessoas com necessidades especiais. Ainda criança, adorava frequentar o Instituto Brasileiro de Reeducação Motora (IBRM) inicialmente em um pequeno sobrado na Rua Conde de Bonfim, na Muda da Tijuca Hoje, funcionando no Andaraí, graças à força de vontade e dedicação da minha madrinha, a fonoaudióloga Ruth Pereira, já falecida há tempos, que dedicou sua vida e seus recursos ao atendimento de crianças com poliomielite, entre outras com necessidades especiais.
Eram e/ou são (muitos ainda devem estar vivos) seres humanos que conviviam com grandes dificuldades as quais, não raras vezes, conseguiam superar. Mesmo os que tinha muitas limitações, alegravam-se com questões pequenas. Sofriam, é verdade, mas nem por isso desejavam o fim da vida. Aliás, pessoas que não possuem necessidades especiais, por outros tipos de sofrimentos, pregam o fim da vida. Basta lembrar que estamos no mês dedicado à prevenção aos suicídios.
Ao longo da vida, assisti as mudanças que vários setores da sociedade promoveram ao lidar com pessoas especiais. Não apenas no caso do meu irmão ou de amigos deles, cujas limitações não eram das maiores. Exemplo claro, são os portadores de síndrome de down que antes sofriam tremenda discriminação e hoje, cada vez mais, estão integrados na sociedade.
Surpreende mais ainda que esta decisão venha a público justamente quando o país recebe a Para-Olimpíada, na qual pessoas com necessidades especiais demonstram como é possível superar suas limitações.
O que sempre existiu e continua existindo – e isto Janot como fiscal da lei deveria cobrar – é a omissão do Estado. Alguns ainda prestam atendimento, mas muito menos do que deveriam prestar. Outros, nem isso fazem. Deixam que iniciativas privadas por meio de ONGs, ou de instituições religiosas, busquem o amparo necessário a esses cidadãos.
A decisão de Janot, portanto, é discriminatória sim e preconceituosa. Pode ser entendida como a busca por um sociedade perfeita, tal como pretendiam os nazistas. Limita o direito de as mulheres decidirem a interrupção da gravidez àquelas que são portadoras do vírus da Zika, quando, na verdade, isto deveria valer a todas.
Além disso, omite-se no principal, que é a exigência de que o Estado preste o devido atendimento às futuras mães e/ou a seus filhos, independentemente da opção que elas façam. Seja no reconhecimento do direito da mulher a decidir sobre seu próprio corpo em qualquer situação de gravidez indesejada, exigindo do Estado o apoio médico e psicológico às que pela interrupção da gravidez optarem livremente. E assim, retira-las do mercado paralelo e nefasto das clínicas clandestinas, evitando que se tornem vítimas nas mãos de aborteiros despreparados. Seja para prestar a mesma assistência médica e psicológica às famílias que gerarem crianças especiais, exigindo que o Estado lhes garanta adequada atenção.
2 Comentários
Hoje passei o dia no Parque Olímpico vendo nadadores e nadadoras paralímpicos e esgrimistas em cadeira de rodas mostrando que tudo é possivel.
Cheguei em casa e li o texto do Marcelo. Meu dia ficou completo.
Prezados jornalista e leitores.
Esta boa e corajosa reportagem aborda tema delicado e polêmico. Concordo com o ponto de vista defendido pelo repórter e subscrevo as críticas que ele faz ao PGR. A hipocrisia e o cinismo do PGR se revelam também nesse posicionamento preconceituoso e eugenista demonstrado por ele quanto ao direito das mulheres a interromper a gravidez. Maior mérito ainda tem o repórter por citar o caso do irmão que possuía uma deficiência. Como último de uma família e 12 irmãos, eu não estaria a escrever essas linhas se minha mãe tivesse seguido os conselhos daqueles e daquelas que recomendam às mulheres não terem muitos filhos. Mas mesmo assim sempre defendi e defendo o direito das mulheres decidirem quantos filhos desejam ter, assim como o direito delas a interromper a gravidez.