Carlos Alberto Libânio Christo, 75 anos, o dominicano internacionalmente conhecido como Frei Betto, conhece Francisco Buarque de Hollanda, o também internacionalmente conhecido Chico Buarque, desde a adolescência. Amizade que se estendeu às duas famílias. São seis décadas de convivência, entre o mineiro e o carioca que foram se encontrar no bairro de Perdizes, em São Paulo. Dos anos 60 para cá a amizade se estreitou, ainda que em determinados momentos tenham estado afastados, longe um do outro. Período, por exemplo, em que Betto esteve preso e Chico se autoexilou.
Neste sábado (20/06), com a inspiração que lhe é peculiar, Betto presenteou o amigo que aniversariou na sexta-feira com um brilhantíssimo texto que circulou em algumas redes sociais, uma vez que ele próprio é avesso a tais redes – quando muito mantém WhatsApp. Um texto em que repassa episódios que vivenciaram juntos, desde os anos 60, quando a amizade surgiu.
No texto/homenagem, que com sua autorização reproduzimos abaixo, Betto, como bom mineiro, conta causos e lembra histórias. Como a chegada de dois baianos ao grupo que, por intermédio de João Gilberto, namorado de Miúcha, irmã de Chico, aderia à Bossa Nova. Eram Caetano Veloso – ex-banqueiro -, trazido pelas mãos de sua irmã, a “Bethânia do Carcará”, e um “tal de Gilberto Gil”, ex-funcionário da Gessy-Lever. “Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura”, narra Betto.
Ao final, prevê: “Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre” Como bem definiu uma amiga em comum, Chico e Betto se merecem. Abaixo o texto/homenagem.
Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra poética: emoção, economia de palavras, agudo senso estético. Dentro dele faz muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida.
Entre amigos, o vozeirão grave atropela as sílabas, como se temesse a gagueira inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca tapa a fervura d’alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de piano entre o sim e o não.
Diante do olhar canibal dos fãs, Chico quase olha para trás, convencido de que não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro, exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e identificado, no amor ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou, fraseou e cantou.
Francisco Buarque de Hollanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos de 1960. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São Paulo, trocou a régua e o compasso, da Faculdade de Arquitetura, pela toada intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia, neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação Primeira de Mangueira, com todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.
Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil. Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No teatro Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual Chico Buarque, cantor de plateias estudantis, fez sua estreia para o grande público. Havia também uns baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará, um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil…
Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico, comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas mulheres de Atenas. Rostos macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os algozes de Antonio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos…
Chico foi para a Europa, no autoexílio inevitável. Fez espetáculos em favor dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Com Vinicius, foi para São Bernardo do Campo apoiar os metalúrgicos que, liderados por Luiz Inácio Lula da Silva, teimavam em sonhar um Brasil diferente.
Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem “militonto”, que pula de palco em palco acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e, quando faz noite, sua voz suave, de timbre acentuado e agudo, quase feminino, traduz paixões e feridas, rupturas e arroubos. Porque canta o que sentimos sem encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de sonhar acordado.
Chico é ele e suas mulheres – Silvia, Helena e Luiza, e as netas e os netos. Ele é feito de detalhes – o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progressistas, expõem suas ideias e acolhem críticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim.
Para Chico, o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim, seresteiro, poeta e cantador, olhos nos olhos, ele se chama Mané e dobra a Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Nunca esteve à toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente sofrida que quer despedir-se da dor.
Larápio rastaquera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor, Chico é apenas um artista brasileiro.
Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas trilhas, sofre de pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol, jamais se “americanizou”. Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.
Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.
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2 Comentários
Fiquei com uma baita inveja! Do escritor e do homenageado! O Chico me persegue faz muito tempo. Lembro que na prova de Português no meu vestibular, já se vão mais de 40 anos, dois textos para análise foram do “Romanceiro da Inconfidência”, da Cecília Meireles, e “Roda Viva” do Chico. Isso em plena ditadura militar! Acho que os censores não liam as provas dos vestibulares!
“Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração”
Na minha adolescência tive o privilégio de acompanhar e viver toda essa história, o tempo passou de repente.
Hoje, na quarentena, além da minha amada companhia, vivo com as lembranças desse passado nesse presente tão desamado e procurando força para ver se a gente consegue , pelo menos, um futuro melhor.