“Informação pessoal? É um colega de vocês da imprensa, é um sargento no Batalhão de Operações Especiais no Rio, é um capitão do Exército, é um policial civil em Manaus, é um amigo que eu fiz que gosta de informações, liga pra mim, mantem contato no zap”. (Jair Bolsonaro)
Mais do que qualquer argumento utilizado pelo ex-ministro Sérgio Moro sobre o interesse do presidente Jair Bolsonaro em interferir na Polícia Federal, a própria declaração do presidente da República, na noite de sexta-feira (22/05), na porta do Palácio do Planalto, justifica o que o general Augusto Heleno classificou como uma “afronta à autoridade máxima do Poder Executivo”, ou seja, a apreensão e perícia no celular utilizado pelo presidente.
Esta declaração, associada ao discurso feito pelo presidente na fatídica reunião ministerial de 22 de abril – “o meu [sistema de informações] particular funciona” – e ainda a sua defesa veemente de armar a população – “Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme!” – evidenciam que a família Bolsonaro monta uma milícia. É uma ameaça concreta ao Estado Democrático de Direito.
Logo, mais do que os indícios levantados pelo ex-ministro Moro – que não se evidenciam no vídeo – tais fatos demonstram que o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao presidir a condução do Inquérito (Inq.) Nº 4831, deve se debruçar sobre esse detalhe nada insignificante sobre as fontes particulares que abastecem com informações o presidente da República. Afinal, na versão do próprio presidente, são agentes públicos – “um sargento, um capitão, um policial civil” –, que lhes adiantaram até uma possível operação de Busca e Apreensão contra um de seus filhos.
Ou seja, Bolsonaro confessou que lhe vazaram uma operação policial. Exatamente o que o Inq. 4831 pretende descobrir se ocorreu entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2018, como delatou Paulo Marinho na entrevista à Monica Bérgamo, da Folha de S.Paulo.
A perícia dos celulares do presidente, de seu filho 02, o Carluxo, do próprio Moro, do ex-diretor-geral do DPF, Maurício Valeixo, e da deputada federal Carla Zambelli Salgado, foi solicitada através de duas notícias-crimes impetradas junto ao STF. Uma delas é de autoria da presidente do PT, Gleisi Hoffmann. A outra é assinada conjuntamente pelos presidentes do PSB, Carlos Roberto Siqueira de Barros, do PDT, Carlos Roberto Lupi, e do PV, José Luiz de França Penna.
As duas notícias-crimes tiveram por base as acusações feitas por Moro contra o presidente. Na sexta-feira (22/05), o ministro Celso de Mello encaminhou tais pedidos para a apreciação de Augusto Aras, procurador-geral da República, a quem cabe a decisão a respeito.
Tal como narramos na reportagem Celso de Mello aplica um xeque-mate em Aras, muito embora o decano do STF não tenha determinado tais apreensões, no decorrer de seu ofício ele deixa claro que isso pode ser feito. No seu entendimento, “o Ministério Público e a Polícia Judiciária, sendo destinatários de comunicações ou de revelações de práticas criminosas, não podem eximir-se de apurar a efetiva ocorrência dos ilícitos penais noticiados”.
Indo além, mas ainda se referindo às denúncias sobre a as pretensões de Bolsonaro em interferir na Polícia Federal – o que tem ficado claro por fatos diversos, independentemente de não ter sido explicitado na fatídica reunião ministerial como disse Moro – Celso de Mello apontou como obrigação do MPF e da PF a apuração de fatos suspeitos que lhes são informados. No despacho, expôs:
“Transmitido às autoridades públicas o conhecimento de suposta prática delituosa perseguível mediante ação penal pública incondicionada, a elas incumbe, por dever de ofício, promover a concernente apuração da materialidade e da autoria dos fatos e eventos alegadamente transgressores do ordenamento penal”.
Se as denúncias de Moro não forem suficientes para que Aras acate o pedido de periciar o celular do presidente, as declarações de Bolsonaro indicam que este caminho é mais do que necessário. Afinal, como ele confessou, é pelo WhatsApp que recebe os informes da sua “rede particular” de informantes.
O discurso de Bolsonaro na reunião ministerial e suas declarações na porta do palácio indicam sim, que ele e seus filhos alimentam e são alimentados por uma rede de milicianos espalhadas pelo Brasil. Certamente os mesmo para os quais ele gostaria de liberar munição, como pediu aos ministros da Justiça e da defesa naquele fatídico encontro ministerial.
Algo que pode caracterizar um crime até de proporções maiores que a interferência de um presidente na gestão (ou nas investigações) da Polícia Federal, por si só gravíssimo.
Já a organização e manutenção de milícia, ainda por cima armada, precisa ser encarada como uma ameaça ao Estado Democrático de Direito.
Portanto, esse possível crime não pode ser desconhecido por Aras ou pela delegada federal Christiane Correa Machado, chefe do Serviço de Inquéritos da Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal (SINQ/DICOR/DPF), encarregada da investigação. Afinal, como o próprio decano deixou claro no encaminhamento dos pedidos a Aras, autoridades não podem se omitir diante de uma informação de possível crime:
“Ao tomar conhecimento de notícia de crime de ação penal pública incondicionada, a autoridade policial é obrigada a agir de ofício, independentemente de provocação da vítima e/ou qualquer outra pessoa. Deve, pois, instaurar o inquérito policial de ofício, nos exatos termos do art. 5º, I, do CPP, procedendo, então, às diligências investigatórias no sentido de obter elementos de informação quanto à infração penal e sua autoria. Para a instauração do inquérito policial, basta a notícia de fato formalmente típico (…)” [grifos do original do ministro].
A perícia não deve se limitar aos celulares de Bolsonaro. Será necessária também nos aparelhos de Moro, do ex-diretor do DPF, Valeixo e da deputada Carla, que trocou mensagens sobre este assunto com quase todos envolvidos.
Nem se alegue que o ex-ministro já forneceu informações a respeito. Na verdade, ele as tem repassado à imprensa, bem ao seu feitio; a conta-gotas, escolhendo a quem entrega. Como um dos investigados – situação em que ele se encontra no inquérito –, não lhe é dado o direito de decidir o que deve ou não se informado à Polícia Federal. Esta é que deve captar o que encontrar, analisar cada troca de mensagens e descartar o que não tiver relação com a investigação. Seja no aparelho do ex-ministro, do presidente ou de quem mais estiver sob o foco da investigação.
Bolsonaro, na sexta-feira, em entrevista ao programa “Os Pingos nos Is”, da rádio Jovem Pan, declarou que “jamais entregaria um celular numa situação dessa. Só se fosse um rato para entregar o telefone”. Não deve passar de bravata.
Afinal, como lembrou Celso de Mello ao liberar o vídeo da reunião ministerial, recorrendo até à ironia, o presidente da República não se absteve de atender à decisão judicial e entregar a gravação que lhe foi solicitada. O despacho do decano do STF é aberto com este sarcástico comentário, a respeito de alguém que, como é público, não tem o hábito da leitura, nem é conhecedor da História recente ou antiga:
“O Senhor Presidente da República, certamente atento à lição histórica de Alexander Hamilton (N. da R. ex-Secretário do Tesouro dos EUA – 1755/1804), e mostrando-se fiel servidor da Constituição Federal, cumpriu ordem judicial emanada desta Corte e apresentou ao Supremo Tribunal Federal, por intermédio do eminente Senhor Advogado-Geral da União, a gravação que lhe havia sido requisitada (…)
Vale assinalar que o Senhor Chefe do Poder Executivo da União, ao assim proceder, submeteu-se, como qualquer autoridade pública ou cidadão deste País, à determinação que lhe foi dirigida pelo Poder Judiciário, cujas decisões – como todos sabemos – devem ser fielmente atendidas por aqueles a quem elas se dirigem, cabendo observar, neste ponto, por relevante, que eventual inconformismo com ordens judiciais confere a seus destinatários o direito de impugná-las mediante recursos pertinentes, jamais se legitimando, contudo, a sua transgressão, especialmente em face do que prevê o art. 85, inciso VII, da Constituição Federal, que define como crime de responsabilidade o ato presidencial que atentar contra “o cumprimento das leis e das decisões judiciais”.
Com efeito, o inconformismo com as decisões judiciais tem no sistema recursal o meio legítimo de impugnação das sentenças e decisões emanadas do Poder Judiciário.
Contestá-las por meio de recursos ou de meios processuais idôneos, sim; desrespeitá-las por ato de puro arbítrio ou de expedientes marginais, jamais, sob pena de frontal vulneração ao princípio fundamental que consagra o dogma da separação de poderes.
No caso ora em exame, como se viu, o Senhor Presidente da República, seguramente consciente da lição de MARCO TÚLIO CÍCERO (106-43 a.C.), grande tribuno, político, Advogado, Senador e Cônsul da República romana, sujeitou-se, obediente, à estrita execução do que lhe havia sido determinado pelo Supremo Tribunal Federal, naturalmente relembrado da advertência desse grande jurisconsulto romano, para quem “omnes legum servi sumus ut liberi esse possimus” (“somos servos da lei, para que possamos ser livres”).”
Também não deverão assustar ao decano do STF as bravatas e vilipêndios do general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. Este, em interpretação totalmente desprovida de nexo, classificou o pedido de perícia no celular como uma “interferência inadmissível de outro Poder, na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional do País”.
Antes mesmo de conhecer a despropositada nota do ministro do GSI acusando-o erroneamente de mandar apreender o celular – determinação que ainda não aconteceu -, Celso de Mello, no despacho que elaborou durante a madrugada daquela sexta-feira ainda no caso da liberação do vídeo da reunião ministerial, pontuou de forma distinta o que pode se caracterizar como “interferência de poderes”:
“É importante ter presente que o Judiciário, quando intervém para conter os excessos do poder e, também, quando atua no exercício da jurisdição penal ou como intérprete do ordenamento constitucional, exerce, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular exercício da função jurisdicional, por tal razão, projetando-se no plano da prática hermenêutica – que constitui a província natural de atuação do Poder Judiciário –, não transgride o princípio da separação de poderes.
No Estado Democrático de Direito, por isso mesmo, não há espaço para o voluntário e arbitrário desrespeito ao cumprimento das decisões judiciais, pois a recusa de aceitar o comando emergente dos atos sentenciais, sem justa razão, fere o próprio núcleo conformador e legitimador da separação de poderes, que traduz – vale sempre insistir nessa asserção – dogma essencial inerente à organização do Estado no plano de nosso sistema constitucional.”
Sendo ainda mais explícito, com respaldado em longa doutrina, deixou claro que mesmo um presidente da República está sujeito a uma investigação criminal, como qualquer outro cidadão. Não podendo se furtar a entregar provas que lhe sejam pedidas. No despacho sobre a liberação do vídeo, expôs:
“Daí a inquestionável possibilidade constitucional de submeter-se o Presidente da República, não obstante a sua elevadíssima posição na estrutura hierárquica da República, a atos de investigação criminal, quer na esfera dos organismos policiais competentes, quer no âmbito do próprio Ministério Público, instituição esta que dispõe, segundo decidiu o Supremo Tribunal Federal, de poderes investigatórios (…), o que justifica, plenamente, a submissão do Chefe do Poder Executivo da União, como a de qualquer cidadão da República, a atos de caráter probatório, como, p. ex., as requisições judiciais de material impregnado de relevante conteúdo informativo”.
Para reforçar sua tese, ele buscou o exemplo do que ocorreu no famoso caso do Watergate, em 1974, envolvendo o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, que se viu obrigado a entregar fita com a gravação de uma reunião do Partido Republicano:
“(…) extrai-se desse importante julgado da “High Court” americana e, sobretudo, de relevantíssimos precedentes do Supremo Tribunal Federal valiosa lição, que cumpre ser rememorada, no sentido de que o interesse público na busca pela verdade real, em contexto de investigações criminais, tem irrecusável precedência sobre a cláusula do privilégio executivo, em ordem a impedir a recusa, a desobediência ou o descumprimento, pelo Chefe de Estado, de requisições judiciais que lhe tenham sido dirigidas, evitando-se, desse modo, que se comprometa o convívio harmonioso que deve reger, por imposição constitucional (CF, art. 2º), as relações institucionais entre os Poderes da República”.
Impossibilitado de determinar por mote próprio a perícia do celular, o decano do STF depende agora de uma decisão do procurador-geral da República, que poucos acreditam que terá coragem de tomar. Há, ainda, uma possibilidade remota – mas real – de o pedido partir da delegada que preside o inquérito. Nesse caso, não será a primeira vez que o relator de um processo pode atender a um pedido da polícia, mesmo sem a manifestação favorável do Ministério Público.
De qualquer forma, a decisão final do caso dependerá exclusivamente de Aras, pois é o procurador-geral quem poderá apresentar uma denúncia criminal contra o presidente da República. Ao contrário das denúncias por crime de responsabilidades, que geram o famoso processo de impeachment, que podem ser apresentadas por qualquer cidadão junto à Câmara dos Deputados.
Enquanto um processo por crime de responsabilidade é político, por isso julgado pelo Senado Federal, uma ação penal contra o presidente é julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas tanto um como outra dependem da autorização da Câmara dos Deputados para prosseguirem. Ou seja, no caso de um processo penal, após ser superada a barreira de Augusto Aras, restará superar Rodrigo Maia que tem sentado em cima das mais de 30 acusações de crime de responsabilidade já impetradas contra Bolsonaro. Sendo uma acusação do PGR ele terá que agir diferente. Por fim, a aprovação do pedido para o Supremo processá-lo dependerá da concordância de um mínimo de 242 parlamentares. Só assim o caso chegará ao plenário do Supremo. Chegará?
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