Marcelo Auler
Republico aqui no blog o artigo de Gilberto Miranda Junior publicado na Revista Krinos. O texto não precisa apresentação. (os grifos são da minha edição e responsabilidade)
O argumento ontológico abdutivo de Dallagnol
Ou a falácia do uso da conclusão como premissa
O autor: Gilberto Miranda Junior
O termo “ontológico” atribuído ao argumento sobre a existência de Deus foi cunhado por Kant, que entendia ontologia como uma filosofia transcendental à priori, ou seja, aquela que dispensa a experiência sensível ou empírica para definir o próprio saber. Anselmo de Canterbury (santo católico que viveu entre 1033 a 1109) possui o argumento ontológico mais famoso, estudado e comentado ao longo dos tempos. Anselmo parte da premissa (mesmo que não fique tão evidente em seu texto original apresentado nos capítulos II e III de seu “Proslogium”, escrito em 1078) de que a existência é superior a inexistência. Desse ponto, segundo sua definição de Deus (como o SER mais perfeito e superior do universo), conclui que Ele tem, necessariamente (uma necessidade lógica), de existir. Uma lógica impecável, obviamente: se seres existentes são superiores a seres inexistentes, e se Deus é o ser superior a todos, logo ele necessariamente tem de existir. Não aceitar essa conclusão é incorrer em contradição.
Todo o problema desse tipo de argumento centra-se no fato de se usar aquilo que se quer concluir como premissa. Para que Deus seja visto como superior a todos os seres, é preciso já admitir sua existência, para depois afirma-la como conclusão. Esse tipo de argumento funciona como um jogo de cartas marcadas, onde se manipula com uma marca a carta que precisa ser encontrada no final para se ganhar o jogo. No limite, é um raciocínio capcioso, uma empulhação, uma desonestidade intelectual. Isso não significa que Deus não exista. Significa apenas que as razões dadas para sua existência, nesse caso, não são suficientes.
Nota-se que em geral, todo raciocínio de cunho religioso carrega essa distinção argumentativa. Primeiro dispensa-se a necessidade de qualquer demonstração empírica do que se quer demonstrar. Em seguida, munidos de uma premissa que já pressupõe a conclusão a que se quer chegar, declara-se a conclusão como se o fato dela não ter sido diretamente mencionada nas premissas, fosse algo novo e necessariamente lógico. Podemos, ao ouvir, ficar com uma sensação incômoda de que fomos enganados, mas se caso a conclusão for ao encontro do que já cremos, essa sensação é logo abafada e passamos a reproduzir a forma de pensar sem maiores problemas.
Pensadores como Descartes, Spinoza e Leibniz fizeram variações do argumento ontológico, porém a estrutura do raciocínio sempre foi a mesma. Descartes em suas Meditações Metafísicas dedicou-se a esse tema e tentou provar a necessidade da existência de Deus para que faça sentido a própria existência do mundo externo ao nosso pensamento. Em resumo: se é possível imaginar um ser perfeito em todos os sentidos e que, na perfeição, a existência é um atributo lógico, então Deus, que é perfeito em todos os sentidos, necessariamente, existe.
Talvez não pelo fato de ser membro da Igreja Batista (embora esse fato possa ter influenciado), o promotor Deltan Dallagnol usa do mesmo tipo de raciocínio para desenvolver a acusação contra Lula. No entanto, olhando seu Currículo Lattes, constatamos que o mesmo se especializou na Harvard Law School em um curso chamado “The Best Explanation of Circumstantial Evidence”. Ou seja, sua especialidade parece ser a de determinar a melhor explicação possível para evidências circunstanciais. Ao lermos a peça acusatória fica claro que, se usada sua expertise acadêmica naquilo que apresentou na denúncia, podemos concluir que, para o promotor, a melhor explicação para um conjunto de evidências circunstanciais será amealhar aquelas que possam confirmar uma crença anterior na culpa de alguém. Isso é problemático demais e equivale a usar um argumento ontológico para a existência da culpa.
No ano em que cursou Harvard, Dallagnol apresentou um projeto de pesquisa sobre “Melhor explicação da prova indiciária”, com ênfase em provas indiretas e diretas através das “lógicas que guiam o raciocínio probatório”. No curso que fez e no projeto de pesquisa que apresentou há estudos sobre dedução, indução, analogia e inferência para a melhor explicação (chamada IME, mas conhecida também por abdução). No projeto ele conclui que “a prova, inclusive a circunstancial, é melhor compreendida a partir de óculos abdutivos, isto é, via argumentos guiados pela inferência para a melhor explicação”. Mas a questão que se abre é até que ponto a compreensão de uma prova circunstancial lhe daria materialidade para uma condenação?
O pensamento abdutivo que foi clarificado por Charles Peirce se constitui a essência de seu pragmatismo. Hoje, compõe um dos três tipos de raciocínio lógico para o estabelecimento de hipóteses científicas junto com o raciocínio dedutivo e o indutivo. No entanto seu uso tem elementos característicos. Enquanto o pensamento dedutivo infere casos particulares a partir de um todo conhecido e o pensamento indutivo infere um todo a partir da generalização de casos particulares conhecidos, Peirce considera a abdução como um juízo intuitivo que serve como primeiro estágio de toda investigação científica. Ou seja, a abdução vai reunir elementos novos que podem, hipoteticamente, ser a explicação para um fenômeno, de forma que essa ligação possa ser submetida à indução ou dedução como forma de especificação causal do fenômeno. Cientificamente, no entanto, todo esse aparato racional só será validado a partir da corroboração empírica das hipóteses. O circunstancial deixa margem para dúvidas e, no caso de dúvidas, a vantagem sempre é do réu, conforme reza os princípios do direito.
Ao se dispensar a necessidade de corroboração material ou empírica e transformar a hipótese abdutiva como a essência do fenômeno, Dallagnol propõe que aceitemos algo como um argumento ontológico abdutivo, por mais que isso encerre uma clara contradição entre termos.
Ele quer nos fazer crer que todo o esquema de corrupção na Petrobrás, necessariamente, precisaria ter um chefe maior, e se Lula era o presidente à época e pode ser visto como um elemento comum entre os envolvidos com o esquema (por favor, esqueça aquele Power Point), logo Lula, necessariamente, é o chefe maior do Petrolão.
Curiosamente, porém, Lula não é acusado por esse suposto crime, embora tenha sido demonstrado por argumento ontológico que o crime não existiria sem Lula. Porém, com base nele, o nosso ilustre promotor chega à conclusão que o tríplex no Guarujá, sendo da OAS e despertando em 2014 o interesse de compra de Lula, então se trata de um bem doado ilicitamente fruto da corrupção. Não importa que não haja prova material dessa afirmação.
Importa é que ela é logicamente necessária para se confirmar a metafísica que dá condições para que a realidade atenda os desejos do procurador. O fato de não haver como provar a propriedade do bem atribuída ao acusado, para o promotor, se constitui em prova de que houve a intenção de escondê-la. Carl Sagan estaria se revirando ao túmulo por ver deturpada sua famosa frase: “ausência de evidências não significa evidência da ausência”.
Se o envolvimento de Lula no Petrolão só é atribuível a partir de um argumento ontológico que insere a conclusão nas premissas, e se a ligação de Lula com o tríplex, a partir desse argumento base, é fruto de um raciocínio abdutivo, ainda estamos diante de uma hipótese a ser corroborada materialmente. Jamais seria considerado fato em qualquer pesquisa científica ou pensamento epistemológico, mas no direito brasileiro é. Nossa análise, obviamente, centra-se na argumentação do promotor e não na pertinência jurídica da peça.
O grande problema de tudo o que foi apresentado é que no âmbito jurídico é o Juiz quem decidirá qual tipo de instrumento probatório é mais conveniente para ele, de acordo com suas convicções. Não há, na Lei brasileira, hierarquia de provas. Distinto do direito em outros países, a materialidade da prova não é, necessariamente, superior a uma abdução, pois é o juiz quem decide que prova acatar. Mesmo com a obrigatoriedade de justificar sua escolha, a ausência de provas materiais sobre um fato não tira a capacidade probatória de uma abdução, mesmo que ela seja baseada em um argumento ontológico, como nesse caso.
Embora os promotores não tenham dito na mesma sentença a frase que tem sido fruto de diversos memes na internet (“Não tenho provas, mas tenho convicção”), ela reflete mesmo o que está em jogo. A confissão de ausência de prova cabal e a convicção inabalável na versão construída dos fatos foram ditas ao longo do discurso da promotoria.
A questão a ser respondida é se essa convicção foi construída a partir do raciocínio abdutivo (inferência da melhor explicação — IME) ou se o raciocínio abdutivo foi construído a partir de uma convicção já existente. A resposta está no flagrante uso da falácia embutida no argumento ontológico, onde, necessariamente, a conclusão faz parte das premissas, gerando uma tautologia disfarçada.
Essa brecha para meras convicções em nossas Leis nos deixa à mercê de elementos ideológicos e políticos nos julgamentos, ou seja, à mercê da subjetividade de alguém cujas motivações estão ocultas, embora no caso de Sérgio Moro, estejam mais do que reveladas. A crescente politização do pensamento religioso não está apenas em projetos como o Escola Sem Partido, mas está presente maciçamente no Congresso e em nosso Judiciário. Laico, nosso estado apenas é no papel. O próprio sistema que molda e sequestra nossas instituições a seu favor tem como elemento substancial a ética protestante, como nos denunciou Max Weber já há mais de 150 anos.
Portanto, podem esperar, apesar do Power Point tosco e da mera convicção dos procuradores, que não só a acusação contra Lula seja aceita, como sua condenação após rápido julgamento. As cartas estão marcadas desde há muito, independente de sua culpa, o que jamais deixará de ser uma possibilidade concreta.
2 Comentários
Se muitos leram, apenas eu comentei. E volto a fazê-lo porque o parágrafo final escrito por Gilberto Miranda júnior é uma profecia que se realizará plenamente e que vale a pena citar, repetindo-a.
“Portanto, podem esperar, apesar do Power Point tosco e da mera convicção dos procuradores, que não só a acusação contra Lula seja aceita, como sua condenação após rápido julgamento. As cartas estão marcadas desde há muito, independente de sua culpa, o que jamais deixará de ser uma possibilidade concreta.”
Como complemento a essa afirmação, de um realismo aterrador, acrescento o que expus no comentário anterior.
“Em comentários que fiz sobre postagens anteriores, eu afirmei que sérgio moro já tem escrita a sentença de condenação do ex-presidente Lula; há meses ele apenas aguarda a denúncia formal, para dar os retoques finais no texto final. E não duvidem de que essa sentença já tenha sido entregue aos veículos do PIG/PPV.”
Caro Marcelo Auler, caros leitores.
O parágrafo que fecha o artigo é de uma crueza e realismo mórbido impressionantes. E os precedentes que indicam se tratar de uma profecia cuja realização pode ser dada como certa são ainda mais aterradores e sombrios. Vou citar apenas um, captado pelo olhar atento de Marcelo Auler. O juiz sérgio moro, num dos muitos crimes que vem cometendo sob a complacência dos tribunais superiores -sobretudo do STF – antecipou ao jornal OESP uma sentença de condenação contra José Dirceu; em 25 de abril de 2016, o jornal afirmou categòricamente, em manchete, que José Dirceu seria condenado no mês seguinte. Criminosamente sérgio moro vazou a sentença de condenação de JD, 28 dias antes dela ser prolatada, o que só ocorreu no dia 23 de maio de 2016.
Em comentários que fiz sobre postagens anteriores, eu afirmei que sérgio moro já tem escrita a sentença de condenação do ex-presidente Lula; há meses ele apenas aguarda a denúncia formal, para dar os retoques finais no texto final. E não duvidem de que essa sentença já tenha sido entregue aos veículos do PIG/PPV.
Um tema que os jornalistas independentes ainda não exploraram adequadamente é a grande quantidade de viagens que sérgio moro faz aos EUA. Não seria possível desmascarar o torquemada paranaense, como foi feito com gilmar mendes, por um repórter brasileiro radicado na Suécia em encontro de que participava o ministro (sic) do STF, em Estocolmo? Miguel do Rosário nos prestou um serviço inestimável com aquela entrevista em que o militante tucano do PSDB-MT no STF foi pego com as caças na mão. Não daria para fazer o mesmo como sérgio moro?