“O fato é que não podemos – nem devemos – retroceder neste processo de conquista e de reafirmação das liberdades democráticas. Não se trata de preocupação retórica, pois o peso da censura – ninguém o ignora – é algo insuportável e absolutamente intolerável (…)
A liberdade de manifestação do pensamento, que representa um dos fundamentos em que se apoia a própria noção de Estado Democrático de Direito, não pode ser restringida, ainda que em sede jurisdicional, pela prática da censura estatal, sempre ilegítima e impregnada de caráter proteiforme”… (Ministro Celso de Mello, no julgamento do Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclamação 31.117, em abril de 2019 – grifos do original)
A decisão do desembargador Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), na terça-feira (07/01), de censurar a sátira natalina do Porta dos Fundos – derrubada na noite de quinta-feira (08/01), pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) – não foi a única adotada no TJ-RJ a contrariar a Constituição. Da mesma forma como contrariou todo o entendimento dos ministros do STF sobre o tema. Afinal, há uma década – desde o julgamento da famosa ADPF 130, em 2009 -, aquela corte reafirma a impossibilidade de atos de censura. Venham de quem vier e com que pretexto for.
Antes de o desembargador Abicair tentar impedir a veiculação do vídeo do Porta dos Fundos, também em decisão monocrática, seu colega Edson Vasconcelos, da 17ª Câmara Cível do mesmo TJ-RJ, em 29 de novembro, determinou a censura ao Portal Eu-Rio. Obrigou-o, sob pena de multa diária, a retirar do site reportagens que denunciavam possíveis erros médicos ocorridos na Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro.
Com isto atendeu à reclamação do chefe de equipe médica, Francesco Mazzarone, o mesmo que, procurado pela repórter do site – assim como a Santa Casa – não se pronunciou antes das reportagens serem postadas. Com a publicação, ingressou com ação civil pedindo a censura e cobrando R$ 100 mil de indenização por danos morais. Atropelando a Constituição, o desembargador Vilella atendeu ao pedido que a juíza de primeiro grau rejeitara.
As duas decisões dos desembargadores – a par de outras que ocorrem no Judiciário em diversos pontos do país, nem sempre conhecidas, pois muitas delas decretadas sob o manto do segredo de justiça – simplesmente corroboram a preocupação manifestada pelo ministro Celso de Mello no voto do qual extraímos os textos em epígrafe, com o que acontece em setores do Judiciário. É dele a explicação:
“Preocupa-me, por isso mesmo, o fato de que o exercício, por alguns juízes e Tribunais, do poder geral de cautela tenha se transformado em inadmissível instrumento de censura estatal, com grave comprometimento da liberdade de expressão, nesta compreendida a liberdade de imprensa e de informação. Ou, em uma palavra, como anteriormente já acentuei: o poder geral de cautela tende, hoje, perigosamente, a traduzir o novo nome da censura!” (grifos do original).
Salta aos olhos o fato de que as duas censuras decretadas por desembargadores do TJ-RJ foram anteriormente negadas por juízes de primeira instância. Magistrados que demonstraram bom senso e respeito à Constituição. O que parece ter faltado a Vilela, juiz de carreira, e a Abicair, que ingressou no Tribunal pelo quinto dos advogados.
Vilela, ao determinar a censura de reportagens em que quatro mulheres, possíveis vítimas de erros médicos, se queixavam do desprezo da Santa Casa de Misericórdia às suas reclamações, apegou-se a uma subjetividade não prevista na lei para impedir a veiculação das denúncias: o conceito do que é uma matéria de “cunho jornalístico”.
Na decisão, expôs: “Neste contexto, as entrevistas veiculadas pela ré, por si só, não retrata matéria de cunho jornalístico, considerando que não há qualquer conteúdo investigativo na reportagem que corrobore os abusos relatados pelas entrevistadas”.
Não especificou também que tipo de “reportagem investigativa” esperava, uma vez que todas as pacientes se identificaram, apresentaram documentos e algumas mostraram as sequelas das cirurgias. Se algo há a investigar, certamente não será pela jornalista, mas pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj).
Também ignorou, talvez por não ter sido dito pelo autor da ação, que a autora das matérias tentou por diversas vezes ouvir a Santa Casa e os médicos, sem ser atendida.
Tudo conforme é explicado em uma nova e corajosa m do Portal Eu-Rio, com depoimentos das vítimas, um esclarecimento da Defensoria Pública que estápostage assumindo a defesa das pacientes, nota do Cremerj admitindo que abriu investigação sobre o caso e até conversa com o advogado da Santa Casa, que novamente prometeu explicações mas não as deu.
No caso do desembargador Abicair, a censura que ele decretou contrariou seu próprio entendimento anterior quando, em nome da Liberdade de Expressão, votou pela absolvição de Jair Bolsonaro, tal como O Globo mostrou em Desembargador que vetou obra do Porta dos Fundos se disse contra a ‘censura’ ao votar por absolvição de Bolsonaro em acusação de homofobia. Quando do julgamento de Bolsonaro, em 2017, o entendimento do desembargador não foi encampado pelos seus colegas.
Decisões conflitantes como estas duas, vindas de um mesmo juiz, alimentam suspeitas, em especial entre leigos, de que os julgamentos não se pautem apenas com base em entendimento jurídico.
No caso da censura ao Porta dos Fundos, a justificativa para atender ao pedido foi estranha à legislação que rege a Liberdade de Expressão. Como o desembargador expôs, a decisão considerou aquilo que ele, magistrado, entendeu ser “mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã”. Respaldado nesse argumento é que decidiu recorrer “à cautela, para acalmar ânimos” e concedeu a liminar determinando a proibição do vídeo.
A falta de sustentação jurídica de sua argumentação ficou demonstrada não apenas nas críticas ao seu ato – vinda de várias partes. Inclusive do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, que a caracterizou como “censura”, ao colunista Bernardo Mello Franco.
Esta falta de sustentação jurídica ficou ainda patenteada na decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, que suspendeu os efeitos da liminar menos de 30 horas depois dela ter sido anunciada. Ao fazê-lo, relembrou toda a posição da mais alta corte contra qualquer espécie de censura.
Queiram ou não seus autores, decisões judiciais que cerceiem a Liberdade de Expressão, por não terem respaldo constitucional, acabam igualando os magistrados aos policiais federais e aos militares que na ditadura civil-militar imposta ao país por 21 anos, impediam o livre pensamento e a livre veiculação de informações. Principalmente quando tomadas liminarmente, sem respeito ao contraditório.
Os magistrados de primeiro grau negaram os pedidos de censura fundamentando suas decisões com a lembrança clara que a nossa Carta Magna não a contempla.
No caso do Portal Eu-Rio, a censura pedida pelo chefe de equipe médica da Santa Casa foi rejeitada de plano pela juíza Maria Cecilia Pinto Goncalves, da 52ª Vara Cível no processo 0283951-36.2019.8.19.0001. Ao deixar claro o descabimento do pedido para retirar as reportagens do portal, ressaltou preceitos constitucionais e conceitos objetivos – informações de fatos reais:
“A veiculação de informações baseadas em fatos reais, objeto de reclamações de inúmeras pacientes junto à jornalista deve ser permitida, a fim de evitar a vedação à liberdade de expressão, sendo que as imagens devem ser analisadas à luz da liberdade de manifestação de pensamento”. Ela ainda acrescentou:
Os fatos narrados foram divulgados pelo réu, não tendo sido emitido juízo de valor, tendo sido entrevistadas inúmeras pacientes, que se limitaram a relatar as experiências vividas, conforme verificado junto aos links apontados pelo autor.
Já no pedido de censura contra o Porta dos Fundos – Processo nº: 0332259-06.2019.8.19.0001 -, uma ação movida pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. coube à juíza Adriana Sucena Monteiro Jara Moura, da 16ª Vara Cível do TJ-RJ, rejeitar a solicitação. O fez em uma bem fundamentada decisão, onde entre outras explicações, deixou claro que aos magistrados não cabe julgar a qualidade das peças, mas a sua legalidade. No caso da sátira feita pelo grupo humorístico não houve desrespeito à legislação:
“Contudo, há que se ressaltar que o juiz não é crítico de arte e, conforme já restou assente em nossa jurisprudência, não cabe ao Judiciário julgar a qualidade do humor, da sátira, posto que matéria estranha às suas atribuições. Em que pese a manifesta independência entre o âmbito cível e penal e em análise perfunctória, típica desta fase processual, não constatei a ocorrência de qualquer ilícito, nem mesmo o do tipo previsto no artigo 208 do Código Penal (…) Também não verifiquei violação aos Direitos Humanos, incitação ao ódio, à discriminação e ao racismo, sendo que o filme também não viola o direito de liberdade de crença, de forma a justificar a censura pretendida (…) Ademais, também considero como elemento essencial na presente decisão que o filme controverso está sendo disponibilizado para exibição na plataforma de streaming da ré Netflix, para os seus assinantes. Ou seja, não se trata de exibição em local público e de imagens que alcancem àqueles que não desejam ver o seu conteúdo. Não há exposição a seu conteúdo a não ser por opção daqueles que desejam vê-lo. Resta assim assegurada a plena liberdade de escolha de cada um de assistir ou não ao filme e mesmo de permanecer ou não como assinante (…) Assim sendo, neste momento, não vislumbro estarem presentes os requisitos legais para à concessão da liminar requerida na presente Ação Civil Pública.”
Mas o que não se tem comentado é que a juíza Adriana não foi a única a rejeitar a censura. Sequer a primeira. Na sua decisão, de 19 de dezembro, demonstrando que pesquisou sobre o assunto, ela cita outros três colegas que rejeitaram o mesmo pedido. Todos de São Paulo.
Marcos Blank Gonçalves, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível – Foro Regional III Jabaquara (Processo 1071622-58.2019.8.26.0002), negou a censura no dia 13 de dezembro; Luciana Antonio Pagano, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível – Vergueiro (Processo 1016645-74.2019.8.26.0016), assim como Marian Najjar Abdo, 1ª Vara do Juizado Especial Cível – Foro Regional II Santo Amaro (Processo 1072015-80.2019.8.26.0002) o fizeram no dia 17.
Esta última – Marian Abdo – ao rejeitar o pedido deu um despacho esclarecedor, copiado por Adriana, para justificar a impossibilidade de solucionar o caso liminarmente:
“Uma das principais lições ensinadas por Jesus é a da tolerância, sobretudo em relação aos pobres de espírito (e também aos ´espíritos de porco´).
Embora o autor – como cristão – esteja se sentindo ultrajado em seu sentimento religioso pelo programa televisivo produzido pela corré Porta dos Fundos e seus integrantes, e veiculado pela corré Netflix, entendo ausente o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.
A liberdade de expressão, no presente caso, parece, de fato, ter sido utilizada de forma desvirtuada e abusiva, mas, em princípio, basta que o autor não assista ao programa em questão e até mesmo não mais mantenha contrato com a corré Netflix, em sinal de sua indignação. (…) Diante disso, indefiro o pedido de antecipação dos efeitos da tutela“.
Ou seja, nessas cinco decisões – da juíza que analisou o caso do Portal Eu-Rio e dos quatro casos conhecidos de magistrados que rejeitaram a censura ao Porta dos Fundos – verifica-se que na chamada primeira instância o bom senso e o respeito à Constituição prevaleceram.
Nem sempre ocorre isso. Este Blog, por exemplo, foi obrigado a suspender postagens por ordens judiciais de Belo Horizonte e de Curitiba. Recorrentemente temos denunciado estas arbitrariedades não só conosco, como nas postagens Juízo de MG desrespeita STF e censura Blog atendendo PMs acusados e Juíza censura em “segredo” e imprensa se cala. Há mais casos. Provavelmente, alguns até desconhecidos. Praticados por juízes de diferentes comarcas e jurisdições.
No Paraná, a pedido do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Joel Ilan Paciornika, que se sentiu atingido na honra por matéria da Rádio Jovem Pan de São Paulo sobre os proventos que recebeu bem superiores ao teto estipulado, ocorreu dupla falta de respeito à Constituição.
A censura decretada em primeira instância (15ª Vara Cível de Curitiba), determinando a retirada de vídeos do site da rádio, foi chancelada pela 8ª Câmara Cível da capital paranaense, cidade de origem do ministro.
Ambas decisões revistas de pronto tão logo ingressou no Supremo a Reclamação 31117. Inicialmente coube à então presidente, ministra Cármen Lúcia, respondendo pela corte durante o recesso em julho de 2018, conceder a liminar suspendendo a censura.
Sorteado relator do caso, Celso de Mello, ao confirmar a decisão da presidente do STF, no longo despacho proferido (do qual diversos trechos reproduzimos nesta postagem), enfatizou até o direito de a imprensa ser “crítica, mordaz, irônica e até impiedosa”:
“Não induz responsabilidade civil, nem autoriza a imposição de multa cominatória ou “astreinte” (…) a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública – investida, ou não, de autoridade governamental –, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender“. (grifo nosso)
Prosseguindo, explicou que aos magistrados não cabe determinar o que jornalistas podem publicar, classificando expressamente como “arbitrária” a repressão à crítica jornalística:
“Mostra-se incompatível com o pluralismo de ideias, que legitima a divergência de opiniões, a visão daqueles que pretendem negar aos meios de comunicação social (e aos seus profissionais) o direito de buscar e de interpretar as informações, bem assim a prerrogativa de expender as críticas pertinentes. Arbitrária, desse modo, e inconciliável com a proteção constitucional da informação a repressão, ainda que civil, à crítica jornalística, pois o Estado – inclusive seus Juízes e Tribunais – não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais da Imprensa“
Na mesma manifestação, o decano do Supremo relaciona incontáveis decisões idênticas de diversos ministros insistindo na impossibilidade de a Justiça censurar publicações ou impedir a liberdade de expressão.
São públicas, notórias, algumas muito divulgadas, outras menos, mas estão à disposição de qualquer magistrado para que, tal como sugeriu a Folha de S.Paulo, no irretocável editorial Estupidez primitiva, de 9 de janeiro, ocorra a “completa alfabetização constitucional dos aplicadores da lei”. A começar pelas decisões de Celso de Mello, como esta na Reclamação 31117. Aliás, elitura obrigatória para todos os jornalistas também, motivo pelo qual publicamos sua integra abaixo.
Decisão de Celso de Mello na Reclamação feita pela Jovem Pan
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