Através de uma “inspeção anual ordinária”, o novo titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, juiz Eduardo Fernando Appio, decidiu desarquivar o processo nº 5053382-58.2016.4.04.7000.
Esses autos tratam de um inquérito policial (IPL 0005/2016) no qual o ex-juiz Sérgio Moro, atendendo ao pedido do Ministério Público Federal (MPF), tratou de arquivar, açodadamente, no inicio de 2017. Desde então o caso estava sob sigilo em grau máximo que Appio derrubou recentemente.
A investigação foi aberta em 2016 para investigar a suspeita relação que a Força Tarefa da Lava Jato de Curitiba manteve com Meire Bonfim Poza, ex-contadora do doleiro Alberto Youssef. Ela, no início da Operação Lava Jato (abril de 2014) funcionou como informante dos policiais.
A decisão do titular da 13ª Vara teve por base uma reportagem que publicamos aqui no Blog, em 6 de março de 2021 – “Lava Jato/PR no Telegram: “Que p… é essa?“-, reproduzida no mesmo dia no Brasil 247. Nela mostramos os diálogos dos procuradores da República de Curitiba no Telegram, divulgados na chamada Vaza Jato. Estavam preocupados com o fato de a ex-contadora, por iniciativa do editor desse Blog, ter prestado depoimento ao procurador da regional da República Osório Barbosa, em São Paulo.
Quando noticiamos, em junho de 2016, esse depoimento na reportagem – Enfim, a contadora e informante infiltrada da Lava Jato foi ouvida oficialmente – o procurador identificado no Telegram como Paulo (provavelmente Paulo Galvão, do MPF do Distrito Federal) mostrou-se surpreso:
“Meire ouvida por Osório??? Que p… é essa?“
Em seguida, acrescentou no aplicativo de conversas:
“Claro que ela não tem nada… praticamente nada, pq tem a historia da busca, que é meio esquisita mesmo… como não está repercutindo, talvez nem se manifestar mesmo… mas salvo engano foram três edições seguidas da carta capital já” (sic)
No entendimento do juiz Appio, as conversas dos procuradores da República através do aplicativo Telegram noticiadas pelo nosso Blog e pelo 247 podem ser consideradas um fato novo que justifique a re-análise do inquérito arquivado. Algo que antes não foi feito pelo desinteresse, tanto pelo juízo como pelo MPF, de que a investigação prosseguisse.
Appio oficiará à Superintendência do Departamento da Polícia Federal do Paraná (SRDPF-PR) pedindo o reexame do caso. A decisão caberá ao atual superintendente, delegado Rivaldo Venâncio, um dos perseguidos pela turma da Lava Jato de Curitiba.
A derrubada do sigilo no processo nº 5053382-58.2016.4.04.7000 trouxe a público detalhes de uma estranha história dos bastidores da Lava Jato do Paraná. Os autos guardados a sete chaves tratam do inquérito no qual o MPF – que por dever constitucional controla as atividades da Polícia Federal – impediu que a Corregedoria do Departamento de Polícia Federal (COGER/DPF) investigasse possíveis ações criminosas de seis delegados, dois agentes e um escrivão da Polícia Federal. Era o cérebro da Força Tarefa de Curitiba deflagrada em 17 de março de 2014.
Em outras palavras, o órgão que deve fiscalizar o cumprimento da lei e a atividade policial – MPF – impediu uma ação da corregedoria que pretendia justamente investigar ações suspeitas de policiais. Ou seja, fazer a fiscalização que caberia ao próprio MPF providenciar. Esse estranho impedimento contou ainda com o respaldo do então juiz federal que alardeava que na capital paranaense a lei valia para todos. No caso da Lava Jato paranaense isso não aconteceu.
A proibição de se investigar os policiais federais ocorreu no início de 2017 após o delegado Marcio Magno Xavier, então na Coordenadoria de Assuntos Internos (COAIN) da Corregedoria do Departamento de Polícia Federal (COGER/DPF), depois de realizar investigações preliminares, requisitar autorização judicial para a quebra de sigilos telefônicos e telemáticos “de cerca de uma dúzia de delegados e agentes policiais federais que trabalharam na Operação Lavajato em Curitiba, entre fevereiro de 2014 a agosto de 2016”, como consta do documento assinado pelo delegado.
Foram relacionados mais de 40 números de celulares e cerca de 30 endereços de e-mails de onze alvos: seis delegados, dois agentes de polícia, um escrivão e dois civis.
A Operação Lava Jato teve início em 17 de março de 2014 com a prisão dos doleiros Alberto Youssef, Carlos Habib Chater e Raul Srour. A também doleira Nelma Kodama foi presa dois dias antes, ao tentar embarcar para Milão.
O delegado Magno Xavier, portanto, queria acessar as trocas de mensagens e mapear os telefonemas trocados pelos operadores da Lava Jato desde um mês antes do início da operação até dois anos e meio depois. Pretendia investigar justamente a cúpula da Superintendência da Polícia Federal no Paraná, assim como os principais “cabeças” da Força Tarefa de Curitiba, a saber:
Rosalvo Ferreira Franco, então superintendente da PF no estado; Igor Romário de Paula, o Delegado Regional de Combate ao Crime Organizado; Márcio Adriano Anselmo e Erika Mialik Marena, os principais responsáveis pela operação; e ainda os delegados Eduardo Mauat da Silva e Felipe Eduardo Hideo Hayashi; os Agentes de Polícia Federal (APFs) Rodrigo Prado Pereira e Luiz Carlos Milhomem e o escrivão (EPF) Mario Nunes Guimarães. Também eram alvos Meire e seu auxiliar Marcelo Ananias Notaro.
O interesse era aprofundar as investigações em torno do heterodoxo relacionamento que esses policiais federais tiveram com Meire. Ela, com medo de ameaças feitas por Youssef quando ameaçou abandoná-lo, tomou a iniciativa de procurar a Polícia Federal para denunciá-lo. Queria repassar documentos que o comprometiam. Isso ocorreu antes mesmo de ela saber que haveria uma operação envolvendo doleiros acusados de lavar dinheiro proveniente possivelmente de corrupção,
Acabou conhecendo o delegado Adriano Anselmo e o agente Prado nas idas dos dois a São Paulo. Mas o que poderia ser uma colaboração formal foi mantido como um relacionamento totalmente informal, com inúmeras irregularidades que soaram como possíveis crimes na Corregedoria do DPF. Irregularidades essas relacionadas por Magno Xavier no pedido de quebra de sigilo apresentado à Justiça de São Paulo em setembro de 2016:
A apresentação do pedido ao juízo em São Paulo foi uma opção que Magno Xavier entendeu correta uma vez que o relacionamento da contadora com os policiais federais da chamada República de Curitiba ocorreu no território paulista. O argumento, porém, não foi encampado pela procuradora da República Priscila Pinheiro de Carvalho. Tampouco pela juíza federal titular da 5ª Vara Federal de São Paulo, Maria Isabel do Prado, que terminou por declinar a competência do caso para a 13ª Vara Federal de Curitiba.
Em seu despacho, porém, a procuradora reconheceu que os possíveis crimes que o delegado queria investigar poderiam afetar a Operação Lava Jato em si:
“De fato vislumbra-se possível conexão entre o que se pretende apurar neste expediente e o objeto da operação policial, estando claro que eventual comprovação dos crimes ora levantados repercutiria diretamente na prova de diversas das infrações investigadas na referida operação”, registrou Priscila, em 3 de outubro de 2016.
Na República de Curitiba o impedimento do prosseguimento da investigação partiu, inicialmente, do procurador regional da República Januário Paludo. Em parecer anexado aos autos cinco meses depois (05/03/2017), ele não enxergou crimes a serem investigados nos fatos citados pelo delegado. Tentou justificar todas as atitudes dos policiais, rebatendo as evidências levantadas que, no entender de Magno Xavier, mereciam aprofundamento. Afinal, concordar com o delegado seria reconhecer erros (crimes?) da operação que eles próprios do MPF estavam apoiando.
O impedimento também contou com o respaldo do então juiz Sérgio Moro, aquele que publicamente posava como bastião da moralidade. Essa proibição foi noticiada em agosto de 2017 aqui no Blog – MPF-PR e Moro barram investigações contra PF-PR. Ao sentenciar pela interrupção da investigação ele não escondeu seu temor de que a apuração proposta pelo delegado atrapalhasse a Lava Jato. Seu despacho de 27 de março de 2017 registra:
“… não se justifica prosseguir em investigações, que podem colocar em risco o sigilo de investigações da Operação Lavajato”.
Para explicar sua posição, recorreu ao velho hábito de desacreditar as informações recebidas. Alegou que não se tinha “fatos claros que justifiquem a investigação”. Mesmo sendo um magistrado que condenou diversas pessoas com base em delações premiadas de outros réus – muitas delas, falsas –, impediu o aprofundamento do trabalho dos policiais. Para tal, desmereceu a origem das denúncias Argumentou que a sua autora – Meire – já era “acusada por crimes e com rancor contra os agentes da investigação”.
O temor de Moro poderia ser outro. Certamente residia no potencial explosivo que as descobertas da investigação gerariam. A eventual comprovação dos crimes relacionados por Magno Xavier certamente colocaria em risco a legalidade do trabalho da Força Tarefa de Curitiba. Ou seja, era uma ameaça não apenas ao sigilo da operação, como Moro alegou, mas a toda a operação em si.
Curiosamente, a referida autora que o juiz destacava ser “acusada por crimes e com rancor contra os agentes da investigação” era exatamente a pessoa na qual os policiais federais e o próprio Moro se respaldaram na busca de informações que pudessem incriminar Youssef, os demais doleiros, ex-diretores da Petrobras e até políticos, na fase inicial da Operação.
O Inquérito Policial nº 0005/2016 foi instaurado na COAIN/COGER a partir de denúncias que Meire, após perder a confiança nos policiais federais de Curitiba, exaustivamente repetiu em livro, na imprensa e em um depoimento oficial ao procurador regional da República de São Paulo, Osório Barbosa.
Giravam sempre em torno da sua relação heterodoxa com esses policiais, desde que se encontrou, no final de abril de 2014, com o delegado Márcio Anselmo. Nessa sua relação com a República de Curitiba, ela ora aparecia como informante da polícia, ora como colaboradora, ou mesmo como informante do juízo.
Como informante da polícia, logo no início da Lava Jato repassou ao delegado Marcio Anselmo documentos da contabilidade do doleiro que tinha acesso pelo vínculo profissional que manteve com o mesmo. Tudo informalmente e sem conhecimento e/ou autorização do cliente, que já estava preso. Os levou à superintendência do DPF em São Paulo onde foram guardados na mala do Range Rover Evoque que o delegado utilizava. Tratava-se do carro apreendido com o ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, que Márcio Anselmo passou a usar. Ele recebeu os documentos sem se preocupar em fazer um registro oficial da apreensão.
Embora residisse em São Paulo, Meire passou a visitar a Polícia Federal em Curitiba com constância, viajando por sua conta. Nessas viagens, como colaboradora ou “infiltrada”, forma como se definiu, ajudou a pressionar Youssef, os demais doleiros e os empregados deles, para aderirem à delação premiada. Como informante do juízo prestou depoimento, a convite de Moro, em alguns dos processos da Lava Jato, sem que o magistrado duvidasse do que afirmou como ocorreu depois, ao embargar a investigação.
Tal como noticiamos em junho de 2016 – Enfim, a contadora e informante infiltrada da Lava Jato foi ouvida oficialmente – a relação dela com os participantes da Força Tarefa de Curitiba foi “uma relação extremamente heterodoxa, sem registros oficiais. Mas muito intensa. A tal ponto que delegados e agentes federais queriam instalar um microfone subcutâneo para ela gravar todas as conversas, sem necessidade de transportar aparelhos escondidos. Ela recusou a proposta por medo.”
Pelos documentos encontrados no processo cujo sigilo foi levantado agora se percebe que a intimidade chegou ao ponto de um agente da PF lhe passar informações da busca que realizava, naquele momento, na adega da casa do ex-diretor da Petrobras, Costa. Ou quando trocou mensagens com o delegado Marcio Anselmo, em viagem de férias na Europa.
Para legalizarem os documentos que a contadora entregou na superintendência da PF de São Paulo sem que fosse oficializada aquela entrega, a equipe da Força Tarefa de Curitiba inventou uma “busca e apreensão” no escritório dela – Arbor Contábil. Foi o que o procurador Paulo classificou no Telegram como “meio esquisita mesmo”.
A autorização dessa busca foi assinada por Moro em 12 de junho de 2014, quase 45 dias depois de parte dos documentos terem sido entregues. Uma operação para inglês ver. Sem falar que alguns documentos e o HD do computador da contadora só foram remetidos à Polícia Federal – por mensagens ou por Sedex – dias depois da busca realizada. Mas tudo constou do mesmo auto de apreensão.
No início das relações da contadora com a Força Tarefa curitibana, procuradores da República chegaram a lhe propor um termo de delação premiada. Os delegados federais foram contrários por entenderem que seu depoimento como testemunha teria mais força. Ela se fiou nas promessas de que jamais a indiciariam, embora em determinadas conversas tenha admitido que se achasse ré. Como não foram colocadas em papel, as promessas não foram cumpridas e ela acabou denunciada – depois processada e condenada – levando-a a sentir-se traída. Acrescente-se o misterioso incêndio que ocorreu em seu escritório, fazendo-a suspeitar de algo criminoso. Tudo junto e misturado provocou o “rancor” citado por Moro.
O medo e o “rancor” a levaram a dar entrevistas e o depoimento ao procurador regional Barbosa. Seu advogado, Haroldo Nater, através de um deputado amigo chegou ao então ministro da Justiça, Eugênio Aragão, ao qual entregou documentos e cópias das mensagens que a contadora trocou com policiais federais. Surgiu daí a investigação inicial da COAIN/COGER/DPF, que resultou no inquérito no qual o delegado pediu as quebras dos sigilos telefônicos e telemáticos.
Aconselhada pelos policiais, tinha até um e-mail para as conversas com policiais: [email protected]. Curiosamente, porém, nas mensagens enviadas com esse endereço ao final ela assinava com seu próprio nome: Meire.
Nessas trocas de mensagens aparece, por exemplo, as informações dando conta do acordo de forjarem a apreensão de documentos que já estavam como os delegados, como se vê nos diálogos do dia 5 de maio de 2014 (veja ilustração) quando o delegado Márcio Anselmo revela o tipo de documentos que ela deveria separar para serem apreendidos.
As suspeitas de Magno Xavier iam além da questão da “busca e apreensão” forjada para esquentar papéis já em poder dos policiais. Na realidade a “colaboração” de Meire no início da investigação da Lava Jato foi muito além. Ela pressionou os doleiros seus conhecidos a aceitarem a delação premiada. Junto a eles, sem nada revelar, recolhia informações do interesse dos policiais.
Fez isso, inclusive, por meio de celulares, apesar de oficialmente os presos estarem recolhidos na carceragem da Polícia Federal de Curitiba onde tais aparelhos são proibidos. Usavam, na verdade, celulares repassados pelo agente Paulo Romildo, vulgo “Bolacha”, que chefiava a carceragem. Desconheciam que os aparelhos lhes foram repassados com conhecimento dos delegados interessados em monitorar as conversas dos doleiros presos.
Essas conversas telefônicas com os presos foi motivo de preocupação de Meire quando o delegado Mauat avisou que o celular dela, também apreendido, não seria devolvido. O receio surgiu com a possibilidade de descobrirem as ligações que fez para os presos, como revelou ao delegado em mensagens enviadas em 29 de outubro de 2014, às 12h53 e às 12h54 (veja ilustração):
29/10/14 12:53:18: Meire: Mauat boa tarde! Fiquei pensando no caso do celular e fiquei preocupada… Lá está a gravação referente ao celular usado na carceragem.
29/10/14 12:54:14: Meire: Putz. Não To na condição de te pedir nada, né? Mas se vcs usarem eles vão saber que foi um ato anterior ao meu depoimento e isso pode ser um problema para mim…
Àquela altura, Meire já começava a se sentir abandonada. “Descartada”, tal como expôs em uma dessas trocas de mensagens. Percebia que depois de ter colaborado informalmente com a Força Tarefa da Lava Jato de Curitiba, não estava tendo seu trabalho reconhecido. Tanto assim que foi denunciada pelos mesmos procuradores que antes a tinham como informante importante. A acusaram de ter ajudado Youssef a viabilizar a lavagem de R$ 2,3 milhões que o então deputado Andre Vargas foi acusado de receber como propina.
Ainda em 2014 ele desabafou em uma mensagem encaminhada ao delegado Mauat:
“Acho que vocês me descartaram depois que esclareci tudo o que precisavam e isso me faz ter dúvidas em relação a ter feito a coisa certa.
Enfim… continuo como comecei: sozinha.”
Quatro anos depois, em agosto de 2018, Moro a condenou pelo crime denunciado. Mas na sentença levou em consideração sua colaboração informal, o que fez com que os 4 anos e 6 meses de condenação fossem reduzidos para 2 anos e 3 meses de prestação de serviços comunitários, em regime aberto, além de multa.
Isso desagradou aos procuradores da República da Força Tarefa de Curitiba que recorreram ao TRF-4, em Porto Alegre, no intuito de uma condenação de 4 anos. Ali, porém, como ocorreu na maioria das vezes, a decisão de Moro beneficiado Meire foi mantida.
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2 Comentários
Muito bom e completo o artigo, Marcelo! Parabéns!
Todas as práticas ilegais dessa operação lesa pátria, devem ser revistas, investigadas e seus autores punidos com rigor. Foi uma imensa destruição deixada por esses falsos heróis. todo apoio ao juiz Appio.