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Marcelo Auler(*)

No alerta de Claudio Fonteles, três ministros da 1ª Turma do STF substituíram os 594 parlamentares do Congresdso Nacional )Fotos: Rosinei Coutinho SCO/STF e Jefferson Rudy/Agência Senado

No alerta de Cláudio Fonteles, três ministros da 1ª Turma do STF substituíram os 594 parlamentares do Congresso Nacional (Fotos: Rosinei Coutinho SCO/STF e Jefferson Rudy/Agência Senado)

Meu respeito e admiração pelo ex-Procurador-Geral da República, Cláudio Lemos Fonteles, é total. Por conhecê-lo e a sua irrefutável fé, entendo muito bem seus posicionamentos, sobre os quais discordamos de alguns. Como na questão do aborto em que ele é radicalmente contra e eu entendo que os preceitos de qualquer religião não podem ser impostos à sociedade como um todo. Sou pela descriminalização, por entender que se trata de uma questão de saúde pública – no que ele discorda. Entendo que, a legalização desta prática irá salvar vidas, ao mesmo tempo em que não significará obrigatoriedade em praticá-la. Cada qual, diante da situação, se posicionará conforme sua consciência e sua fé. Mas, ao trazer ao blog seu artigo sobre o assunto, o faço por dois motivos. Inicialmente, por entender que democraticamente as opiniões devem circular, mesmo aquelas que discordamos. Para isso que sempre desfraldamos a bandeira da Liberdade de Opinião, causa pela qual todos devem defender intransigentemente.

Fonteles, como explicou em mensagem que nos enviou após a postagem desta matéria, destaca que sua condenação ao aborto não tem um viés meramente religioso, mas sim humanitário:

“O que subjaz e se manifesta em toda minha linha de argumentação é o compromisso com a concepção filosófica do humanismo integral, ou seja, a afirmação de que o existir não o é para si, mas para o outro, consoante tão bem ensina Emmanuel Mounier no seu livro: O Personalismo”

 

Noticia da decisão da 1ª Turma do STF que Fonteles critica.

Noticia da decisão da 1ª Turma do STF que Fonteles critica.

Anomalia – Ao abordar o problema do aborto, porém, Fonteles levanta uma questão que considero de suma importância. Neste momento conturbado da vida política do país, em que o Legislativo caiu em desgraça e em descrédito generalizado por méritos próprios, mas também com a ajuda do Executivo e mais ainda por ser o foco principal de setores do Judiciário, a judicialização da política tem gerado uma aberrante anomalia. Como ele descreve com respaldo jurídico, apegando-se à questão do aborto, três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), cargo para o qual foram nomeados sem passarem pelo crivo do voto popular, substituíram os 594 parlamentares (513 deputados e 81 senadores) eleitos para legislarem. É Fonteles quem adverte:

“Com efeito, órgão fracionado – a turma – do Supremo Tribunal Federal e – é de se pasmar -, pelo pronunciamento escassíssimo de três (3) de seus componentes, revoga preceito do Código Penal, legalizando a prática do aborto até o terceiro (3º) mês da gestação. 

É da índole da democracia que (…) “tema vital ao convívio na formação de valores a definir a razão de ser da sociedade brasileira” tenha no Parlamento a sede natural de amplos debates e definição. Jamais em uma sala circunscrita às considerações de magistradas e magistrados, cujo número não atinge os dedos, sequer de uma de nossas mãos, por mais iluminados que acreditem ser”.

Exemplos múltiplos – Fonteles apegou-se à questão do aborto, até pela proximidade do Natal, festa cristã que comemora o Renascimento de Cristo. Mas, no tão propalado combate à corrupção iniciado pela Operação Lava Jato, há vários casos em que o Judiciário “legisla”, na medida em que interpreta as leis de acordo com a sua conveniência, ainda que contrariando o que o Parlamento aprovou.

O exemplo mais evidente é a chamada condução coercitiva que pelo Código de Processo Penal, debatido e submetido ao crivo de deputados e senadores eleitos especificamente para criarem as leis, os juízes – com a omissão conivente dos tribunais superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal, que tem por missão zelar pela Constituição – só deveria ocorrer depois de não atendida à segunda intimação. Mas o juiz Sérgio Moro  inaugurou a fase das conduções coercitivas sem intimações anteriores e isso virou regra, ainda que desrespeitando a lei. Ou melhor, juízes criaram uma nova lei, mesmo sem mandatos para tal.

Nelma Kodama e a namorada, depois de colanborarem com a Polícia, foram mantidas na cela da Polícia Federal; Eduardo Cunha denuncia que foi mandado ao presídio por não querer fazer delação. Fotos Reproduções

Nelma Kodama e a namorada, depois de colaborarem com a Polícia, foram mantidas na cela da Polícia Federal; Eduardo Cunha denuncia que foi mandado ao presídio por não querer fazer delação. Fotos Reproduções

Pode-se citar ainda o caso das prisões temporárias ou preventivas usadas, na verdade, como forma de pressionar os réus para aceitarem a deleção premiada. Mesmo que as justificativas para decretá-las, sejam as previstas em lei, o objetivo na prática é outro.

Nestes casos, magistrados passam por cima das leis e acabam regulamentando a Delação Premiada da forma que lhes convém: quem colabora é solto ou ganha benefício, quem não fala vai para a masmorra.

Para quem não acreditava que isto ocorria, está aí o exemplo do deputado cassado Eduardo Cunha, que nesta terça-feira (20/12) foi transferido para um complexo penitenciário para, como alegou sua defesa junto ao STF, ceder às pressões para delatar.

O inverso ocorreu no início de 2015, quando Nelma Kodama, após concordar em dar depoimentos acusando policiais federais e seu próprio advogado de prepararem dossiês contra a Lava Jato – jamais encontrados – foi mantida no cárcere da Superintendência da Polícia Federal do Paraná. Foi um benefício pela “colaboração” prestada e, como é possível supor, provavelmente obtido graças a prováveis chantagens, com ameaça de contar o que sabia dos bastidores da Lava Jato.

Recente exemplo foi o “jeitinho brasileiro” acertado pelo Supremo Tribunal Federal, no caso do afastamento do presidente do Senado da linha sucessória da Presidência das República. Por sete votos a três, na prática, o STF mudou a Constituição, ao interpretar que Renan Calheiros pode ficar na presidência da chamada Câmara Alta, mas não pode ocupar o gabinete presidencial no Planalto, como determina a Carta Magna. De quebra, ao que tudo indica, os magistrados conseguiram barrar a aprovação de uma lei específica que regulamentaria o teto dos salários deles e dos membros do Ministério Público. Na verdade, os salários superiores que tais servidores recebem já é um desrespeitos às normas legais vigentes, graças a interpretações canhestras do próprio Judiciário. Algo nada compatível com o Estado Democrático de Direito no qual, como lembra Fonteles:

“Todo o tema está, e se esgota “na formação de valores a definir a razão de ser da sociedade brasileira”.

Isso é constitucionalmente reservado ao Parlamento na definição de políticas públicas a serem implementadas pelo Executivo”.

Abaixo o artigo de Fonteles:

DEIXEM A LUZ NASCER; DEIXEM A VIDA VIVER

Cláudio Lemos Fonteles

Claudio Fonteles na Igreja de São Francisco de Assis - Reprodução revista Isto é Gente

Claudio Fonteles na Igreja de São Francisco de Assis – Reprodução revista Isto é Gente

“Tempos de exacerbada centralização egoística, tempos de falar desenfreado, deseducado e ofensivo, tempos, assim, que produzem lamentáveis desacertos.

Eis, muito a propósito, que tema vital ao convívio na formação de valores a definir a razão de ser da sociedade brasileira é decidido por modo absolutamente incompatível com o primado da democracia.

Com efeito, órgão fracionado – a turma – do Supremo Tribunal Federal e – é de se pasmar -, pelo pronunciamento escassíssimo de três (3) de seus componentes, revoga preceito do Código Penal, legalizando a prática do aborto até o terceiro (3º) mês da gestação.

É da índole da democracia que, repito o que disse acima, “tema vital ao convívio na formação de valores a definir a razão de ser da sociedade brasileira” tenha no Parlamento a sede natural de amplos debates e definição. Jamais em uma sala circunscrita às considerações de magistradas e magistrados, cujo número não atinge os dedos, sequer de uma de nossas mãos, por mais iluminados que acreditem ser.

O ministro Luis Roberto Barroso – e aqui o menciono porque capitaneou a formação da maioria dos três (3) votos – em palavras transcritas pelo jornal Correio Braziliense, na edição do dia 1º do mês em curso, página 6, disse:

“É uma decisão para que se adotem políticas públicas melhores do que a criminalização para evitar o aborto”.

E em outra passagem de sua entrevista:

“O Estado não deve tomar partido nessa briga. Ele deve permitir que cada um viva a própria crença”.

Essas afirmações não procedem.

Políticas públicas,sim, mas que retratem o compromisso real de defesa da vida o que – e isso é óbvio – significa, no caso brasileiro, dar o passo seguinte àquele dado em relação à violência conjugal contra a mulher, com a promulgação, em boa hora, da lei “Maria da Penha” e, assim,imperativo faz-se promulgar a lei “Maria do Abandono” justamente para que a mulher, que engravidou, e por isso queda por todos abandonada, receba dos serviços públicos acolhida completa e concreta, ela e sua filha, ou filho. Se não o desejar, que seja orientada a entregá-lo para adoção porque tantos são os casais que estão nessa angustiosa fila de espera para concretizar maternidade e paternidade tão maravilhosa e importante quanto a natural. Se com todas essas opções que lhe são oferecidas, decidir por matar sua filha, ou filho, então há de responder, por si ou com terceiros, pelo crime de aborto porque tudo se lhe concedeu e tudo, conscientemente, menosprezou.

Como se vê – e agora respondo à segunda afirmação do ministro Luis Roberto Barros – não há briga alguma, assim como a questão nada tem a ver com: “que cada um viva a sua própria crença”.

Todo o tema está, e se esgota – também já o disse linhas atrás -, “na formação de valores a definir a razão de ser da sociedade brasileira”.

Isso é constitucionalmente reservado ao Parlamento na definição de políticas públicas a serem implementadas pelo Executivo.

O Natal aproxima-se.

Natal é nascer.

Na língua que nós, brasileiras e brasileiros, falamos há expressão tão bonita e plena de sentido a apresentar, com exatidão, a gravidez: Dizemos, assim: “a mãe está para dar a luz”.

Sim, “dar a luz”.

Não há mais a escuridão do nada, a escuridão da ausência.

É apropriado, penso eu, realçar, aqui e agora, as palavras de Tomás de Celano, biógrafo de São Francisco de Assis, bem a propósito do significado do Natal e sobre o pedido do Santo de Assis à comunidade de Greccio para fazer um presépio:

“Fizeram um presépio, trouxeram palha, um boi e um burro. Greccio tornou-se uma nova Belém, honrando a simplicidade, louvando a pobreza e recomendando a humildade. A noite ficou iluminada como o dia:era um encanto para os homens e para os animais. O povo foi chegando e se alegrou com o mistério renovado em uma alegria toda nova. O bosque ressoava com as vozes que ecoavam nos morros”. (leia-se: Tomás de Celano – Vita Prima – em Fontes Franciscanas nº 85 – pg. 242).

Deixem a luz nascer; deixem a vida viver.

Feliz Natal!”

(*) Reeditada às 8:30 de quarta-feira (21/12) para acrescentar uma explicação de Claudio Fonteles enviada ao blog.

2 Comentários

  1. João de Paiva disse:

    Prezados,

    Tenho grande respeito pelo ex-PGR, Cláudio Fonteles, uma pessoa cuja ética e integridade é por todos conhecida. Mas discordo dele em relação a questões religiosas, sobretudo as que dizem respeito ao direito das mulheres interromperem a gravidez.

    Assim como o jornalista Marcelo Auler, considero que não se podem misturar questões religiosas com as de Estado; este deve ser laico.

    O que me surpreendeu neste artigo de Fonteles é que ele usa como argumento o fato de que a suprema côrte, por meio de três ministros, decidiu uma questão deixada em aberto por 594 parlamentares, em tese representantes do povo no parlamento. Fosse Cláudio Fonteles um líder religioso, um líder político tradicionalista e conservador, tal argumentação soaria lógica. Mas vindo de um jurista, que sabe ser o papel do PJ ser contra-majoritário, isso causa negativa surpresa. Fico decepcionado com essa argumentação porque as bancadas fundamentalistas da Câmara e do Senado, as quais defendem ponto de vista similar ao de Fonteles nessa questão da interrupção da gravidez são as mesmas que apóiam a redução da maioridade penal, criminalização dos usuários de drogas, pena de morte e outras pautas obscurantistas contra os direitos humanos. Vejo aí um curto-circuito e um dilema insanável. Portanto, mesmo que no íntimo e por princípios religiosos, Cláudio Fonteles seja contra o abôrto (em qualquer fase da gestação), não pode ele invocar esse frágil argumento de “3 x 594”, para defender a tese que ele julga correta.

    Como homem e pai, considero despropositado, absurdo mesmo, que nós, que não engravidamos e não parimos, tenhamos a pretensão de estabelecer se, e quando, as mulheres têm o direito a interromper uma gestação. Como podemos impedir que uma mulher vítima de estupro ou que carregue no ventre um feto que será uma pessoa com graves deficiências (genéticas, psíquicas, cerebrais ou físicas), e que a levem a uma vida vegetativa, interrompa a gravidez? Se a gravidez coloca em risco a vida da mãe, um ser humano pleno, vale a pena insistir da gestação, usando como base a preservação da vida?

    A questão é polêmica. E já escrevi diretamente a Fonteles. Continuo respeitando-o; e também discordando dele.

    Segue abaixo uma reportagem do jornal português Público (o link é https://www.publico.pt/2010/06/25/ciencia/noticia/fetos-humanos-nao-tem-consciencia-da-dor-durante-as-primeiras-24-semanas-de-gestacao-1443739), divulgada em 2010. O tema da reportagem é um relatório britânico, feito a pedido da Câmara dos Comuns, que colocava em discussão o argumento da dor, para reduzir o prazo em que se poderia interromper a gravidez por malformações fetais. O relatório mostrou que fetos com até 24 semanas não sentem dor. Parece ter sido esse relatório a referência usada pelos ministros do STF, que decidiram pela permissão da interrupção da gravidez até três meses após a concepção. Como se vê, a decisão do STF é bem mais conservadora que a de vários países; acrescente-se que algumas malformações podem ser detectadas bem depois de três meses de gestação. Portanto observa-se mais uma vez um choque entre o que é constatado pela ciência e o que é estabelecido por crenças e dogmas religiosos.
    __________________________________________________________________________________________________________

    RELATÓRIO BRITÂNICO
    Relatório britânico: Fetos humanos não têm consciência da dor durante as primeiras 24 semanas de gestação
    NICOLAU FERREIRA
    25 de Junho de 2010, 21:21
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    Foto
    O feto está num estado de dormência PÚBLICO
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    Relatório britânico pedido pela Câmara dos Comuns põe em causa argumento da dor para reduzir o prazo em que se pode interromper gravidez por malformações.
    Tudo indica que os fetos humanos reagem a agressões mas não sentem dor pelo menos até às 24 semanas de gestação. A conclusão é publicada num relatório do Real Colégio de Obstetrícia e Ginecologia britânico, feito a partir da análise dos estudos científicos e médicos mais relevantes sobre este assunto que foram publicados desde 1997.
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    “É notório que as ligações [nervosas] entre a periferia e o córtex não estão intactas antes das 24 semanas de gestação. Como a maioria dos neurocientistas acreditam que o córtex é necessário para perceber a dor, pode-se concluir que o feto não consegue experimentar a dor antes deste período”, diz o relatório. Mesmo depois das 24 semanas o feto está sedado naturalmente e não tem consciência devido ao ambiente no interior do útero, defende o documento.
    O estudo foi pedido em 2008 pela Câmara dos Comuns. Discutia-se a diminuição do prazo em que é possível interromper a gravidez, se os fetos tiverem malformações. A proposta queria passar das 24 para as 20 a 22 semanas e foi chumbada nesse ano.
    Apesar de estar provado que às 24 semanas o feto humano já tem um sistema nervoso que permite reagir automaticamente a estímulos que danifiquem os tecidos, esta informação, que produz uma reacção muscular, ainda não chega ao córtex superior. É esta parte do cérebro que nos torna capazes de ter consciência e experimentar a dor.
    Mesmo um recém-nascido, que já sente dor, tem uma percepção diferente de uma criança que experimenta a sensação, tem consciência, e partilha com os outros o conhecimento do estado de dor.
    A conclusão do relatório não surpreende Luís Graça, responsável pelo departamento de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria. “Aquilo que agora veio a lume confirma o que era a nossa convicção”, disse por telefone ao PÚBLICO.
    “Quando se fazem intervenções durante a gravidez [como numa amniocentese], o feto reage à agressão mas é um reflexo e não é uma dor”, disse o obstetra Luís Graça, acrescentando que os fetos não têm desenvolvimento cerebral suficiente para experimentarem dor.

    Dormir no útero

    Outra questão abordada no relatório foi o estado de dormência do feto dentro do útero. Segundo estudos em fetos de cordeiros, o modelo preferencial para comparar o desenvolvimento embrionário humano, o ambiente uterino causa esse estado.
    Vários factores podem explicar essa dormência, desde a temperatura do útero até à “presença de um ambiente químico que preserva um estado de inconsciência semelhante ao sono”, explica o relatório. As duas conclusões põem em causa a utilização de anestesia durante a interrupção da gravidez, uma prática utilizada nos hospitais ingleses.
    Um segundo relatório, sobre as condições em que é legítimo interromper a gravidez devido a malformações no feto, não tira conclusões. “Não é realista produzir uma lista definitiva das condições que constituem desvantagens sérias, já que não existem técnicas de diagnóstico precisas.”

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