Sem dúvida foi um trabalho de fôlego que depois de 18 anos de minuciosas pesquisas, resultou em uma trilogia com um total de 1.697 páginas nas quais o ex-militante político, jornalista, comentarista político e amante da música brasileira, Franklin Martins, apresenta a história da criação 55de mais de mil paródias musicais cujo o tema principal é a política nacional.
Nesta terça-feira, (11/08) o último volume da trilogia estará sendo autografado por ele na Livraria Travessa de Ipanema (Rua Visconde de Pirajá, 572), completando uma obra que começou a ser lançada em junho, com os primeiros volumes que retratam a política e a sociedade brasileira entre o início do século XX (1902) até o golpe militar de 1964 (Volume I, 635 páginas, R$ 69,00) e a produção musical na ditadura militar -1964/85 (Volume II, com 508 páginas (R$69,00 ou por R$54,52 no site da Travessa).
O terceiro volume reproduz a euforia da redemocratização – 1985/2002 – (554 páginas, mesmo preço e mesma promoção do segundo volume).
Longe de uma leitura massante, apesar de se tratar de três calhamaços, os livros são atraentes e podem ser digeridos de forma aleatória. Na introdução de cada capítulo (que retrata um período da vida política brasileira) entra o calejado analista político com a descrição do momento que se vivia, expondo as tensões e lutas travadas, tudo muito bem ilustrado com fotografias, charges e caricaturas da época.
Em seguida, vem o pesquisador e amante da música, apresentando as canções criadas naquele período, algumas refletindo as dificuldades e conquistas da sociedade naquela quadra da vida brasileira.
É uma delícia conhecer a forma como essas canções foram criadas, algumas até sem maiores pretensões mas que acabaram se tornando verdadeiros hinos de resistência. Aconteceu, por exemplo, com “To Voltando” (1979), de Mauricio Tapajós e Paulo César Pinheiro, gravada inicialmente pela Simone. Franklin relata a intenção inicial do autor e o surpreendente rumo que o trabalho teve:
“Originalmente, “Tô voltando” não tinha intenções políticas.
Depois de longa temporada de shows pelo Nordeste, às vésperas de voltar para o Rio de Janeiro, Maurício Tapajós pediu a Paulo César Pinheiro que escrevesse os versos de um samba sobre a saudade de casa e da mulher. A letra foi mais longe. Cantou não apenas a expectativa do reencontro com a mulher amada, mas também os pequenos prazeres da vida cotidiana, como o feijão preto, a cerveja e o perfume das flores. A canção fez sucesso imediato.
Meses depois, Paulo César Pinheiro viu na televisão uma reportagem sobre a chegada ao país de alguns exilados políticos . No aeroporto, entre abraços, choros e entrevistas, todos cantavam “Tô voltando“. O compositor foi às lágrimas. O samba tinha virado um dos hits da anistia“.
Sem qualquer preconceito com relação ao gênero musical, o autor também relata casos inversos, em que a música mesmo não tendo qualquer importância para a luta travada pela sociedade ou, antes pelo contrário, quando ela até pregava contra as mudanças de hábito que se assistia, como a liberaçção sexual através das pílulas anticoncepcionais, teve seu momento de notoriedade por obra e graça dos censores. Aconteceu, segundo Franklin, com “Uma vida Só (Pare de tomar a pílula)“, de Odair José e Ana Maria (1973) na voz do seu autor. O livro explica:
“(…) Como em tempo de autoritarismo e repressão os poderosos costumam ver segundas intenções em tudo e enxergar desafios em fatos banais, a música acabou censurada.
Estimulado por um amigo a compor algo sobre as pílulas anticoncepcionais, Odair José, compositor e cantor romântico, surpreendeu. Em vez de fazer o elogio do anticoncepcional, símbolo da modernização dos costumes, entrou na contramão a 120 kmpor hora. Pediu à companheira que parasse de tomar a pílula. “Ela não deixa nosso filho nascer”. A balada teve sucesso imediato.
O problema é que meses antes o regime militar havia lançado uma campanha de controle da natalidade, estimulando as mulheres , especialmente as mais pobres, a usar anticoncepcional. O slogan da campanha era “Tome a pílula”. Ao cantar “Pare de tomar a pílula“.Odair José, sem querer, bateu de frente com o governo. Moral da história: os discos foram recolhidos das lojas e a música proibida nas rádios.
Como a balada tinha feito muito sucesso, volta e meia nos shows o público pedia que ela fosse cantada – e Odair José atendia.
A última vez foi em Colatina, no Espírito Santo. Acabou detido . Levado para a delegacia, recebeu a advertência de que, se cantasse “Pare de tomar a pílula” novamente, ficaria de molho por um bom tempo“.
Ao pesquisar nossas músicas desde o início do século XX, Franklin mostra que já em 1907 a música era usada como sarcásticas críticax zoxs políticos, em especial aos parlamentares.
Mais ainda, constatou que já naquele período havia o nefasto hábito de “mamarem nas tetas do govern”, como descrevia a canção “Sessão no Congresso”, de 1907, de autor desconhecido, interpretada por Cadete.
Nela, o verbo cavar era empregado com o significado de arranjar uma boquinha, um emprego, uma colocação. Como destaca o autor do livro, são “circumstâncias que lembram, em certos casos, o Brasil do século XXI” Dizia a letra:
Neste tempo de progresso
Onde tudo causa efeito
Estou aqui nesse Congresso
Nada pode andar direito
Tudo berra, tudo grita,
Eles fazem arrelia
Parecendo até ser fita
De cinematografia
Em se cavando
Passa toda a humanidade
Só não cava quem não pode
Por não ter habilidade,
O trabalho de Franklin não se limitou a escrever as histórias dessas músicas, reproduzir suas letras e contextualiza-las no momento vivido pela sociedade brasileira. Ele teve a preocupação de disponibilizar os áudios das canções a todos, através de um site com o mesmo nome do livro, Ali é possivel ouvir as quase 1.100 músicas pesquisadas.
Atendendo ao nosso pedido, Franklin disponibilizou também para o blog parte da introdução do primeiro volume de sua nova obra, da qual alguns trechos são transcritos abaixo:
Introdução Geral
“Este não é um livro sobre música, mas um livro com música.
É uma obra para ser lida e escutada.(…)
(…) O fato é que, nestes 101 anos, nossa música não só marcou de perto a política como mostrou enorme agilidade para responder com rapidez aos diferentes episódios que surgiam. Eduardo das Neves, o compositor que mais produziu (e cantou) músicas sobre fatos políticos e sociais no início do século XX, resumiu assim seu estilo e o de seus colegas: “É o que se chama bater o malho enquanto o ferro está quente”.
(…) Desse apego ao fatos do dia e desse gosto pela pronta resposta talvez tenha nascido um dos traços distintivos da produção musical sobre política em nosso país: sua constância. Quase não há hiatos ou lacunas na abordagem dos fatos e dos processos.
Essa inclinação, de certa forma, remonta ao início do século XIX. A chegada da família real já dera munição aos compositores, muitas vezes anônimos, para exercer sua verve na crítica aos hábitos e costumes da corte portuguesa que desembarcara no Brasil com d. João:
“Quem furta pouco é ladrão
Quem furta muito é barão
Quem mais furta e esconde
Passa de barão a visconde”,
debochava uma canção satírica sobre a decisão do rei de vender títulos de nobreza para equilibrar as finanças da Coroa.
(…) “Quando a República foi proclamada, em 1889, o teatro de revista já tinha conquistado posição de destaque na área da cultura e do entretenimento. De um lado, alimentava o clima de pândega dos cafés‐cantantes e dos chopes‐berrantes, que seguiam muito ativos. De outro, era alimentado por eles. A tabelinha, na prática, acabou consolidando o gosto popular pela crônica dos fatos comportamentais, políticos e sociais, tratados com irreverência e malícia.
Foi dentro desse ambiente que nasceu a indústria fonográfica no Brasil, em 1902. Assim, é natural que, desde o primeiro momento, entre os discos lançados, as composições com crônicas de fatos, personagens e costumes ocupassem lugar de destaque, só superadas pelas canções românticas e pelas músicas instrumentais.
Entretanto, ainda faltava uma etapa decisiva para que a canção no Brasil, nas suas mais diversas formas, consolidasse definitivamente sua condição de cronista dos fatos políticos, sociais e culturais: a transformação do carnaval, que nos últimos anos da década de 1910 passou de festa dançada a festa cantada. Com o sucesso espetacular de Pelo telefone, primeiro samba gravado em disco, no carnaval de 1917, a canção firmou o pé nos salões de baile e nos desfiles. No começo dos anos 1920 chegariam as marchinhas que, com ritmo alegre e letra brincalhona, dividiriam com o samba as paradas de sucessos no reinado de Momo. Essa virada do carnaval de festa bailada para festa cantada foi tão rápida e impressionante que, como observa Jairo Severiano em História da música popular brasileira, a produção de músicas para o carnaval já era responsável, na década de 1930, por 40% dos títulos lançados anualmente pelas gravadoras.
É verdade que na década de 1960, com o início da afirmação da televisão como principal meio de comunicação de massa, o caráter do carnaval alterou‐se de novo. De festa bailada e cantada, passou a ser também — e, em alguns momentos, principalmente — festa assistida. Em boa medida, a brincadeira converteu‐se em espetáculo. Com a decadência da marchinha e a hegemonia do samba‐enredo, cuja tradição era revisitar os fatos históricos e exaltar os vultos do passado, perdeu es‐ paço no carnaval a revista dos fatos sociais, políticos e comportamentais recentes.
Essa mudança, porém, não seria suficiente para quebrar a relação da nossa música popular com a crônica, a essa altura já consolidada por mais de um século de estreita e contínua vinculação com os acontecimentos do dia a dia. Naturalmente, compositores, cantores e público encontraram ou criaram novos ambientes, gêneros e manifestações para seguir cantando as dores e as alegrias do cotidiano (…)
(…) no Brasil ocorreu algo distinto com a música sobre política: embora em alguns momentos ela também tenha se revestido de caráter militante (ou engajado), seu padrão habitual foi o da crônica dos fatos, o que a levava a alimentar‐se de temas novos, dando‐lhe continuidade e permanência”.
3 Comentários
Gostei.
Bacana.
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