Nature, publicação científica mais prestigiada do mundo, diz que a lei, os direitos humanos e os tratados internacionais parecem ter sido violados pelo governo Michel Temer, em editoral e em reportagem sobre a deportação para a França do físico de partículas e professor da UFRJ
A mais prestigiada revista científica do mundo publicou quarta-feira (14/09) uma reportagem uma deportação para a França do físico franco-argelino Adlène Hicheur, no dia 15 de julho, e um editorial crítico ao governo brasileiro, ainda quando Michel Temer era presidente interino.
Com o título “Pesquisadores devem se unir aos protestos contra a detenção de cientista”, o editorial da revista britânica Nature afirma que a “pressa e as circunstâncias da ação parecem violar a lei brasileira, os direitos humanos, e os tratados internacionais assinados pelo Brasil”. O texto ressalta a ausência de explicações do governo brasileiro sobre a ordem de deportação, assinada pelo ministro da Justiça Alexandre de Moraes:
“Parece ser uma arbitrariedade relacionada à tensão pré-Olímpica e à ampla cobertura da mídia brasileira sobre sua condenação passada”.
Editorial da revista Nature
Em 2012, um tribunal francês o condenou por suposta associação com um ramo da al-Qaeda no Norte da África com base em troca de emails dele com uma pessoa apontada como terrorista pela polícia, mas cuja identidade nunca foi comprovada. A condenação de Hicheur, lembrou o editorial, “ foi vigorosamente contestada por muitos colegas cientistas”. “Hicheur e seus apoiadores, incluindo colegas cientistas, reafirmam a sua inocência e dizem que o julgamento foi uma negação da justiça”, ressaltou a matéria da Nature.
A revista científica diz que o incidente da deportação “causa ainda mais perplexidade porque o ministro da Justiça do Brasil (NR.: Alexandre Moraes) reconhece que Hicheur era um cidadão que obedeceu às leis enquanto viveu no país e a França não levantou nenhuma nova alegação contra ele”.
O texto dos editorialistas da revista científica explica que um dos princípios legais fundamentais em uma democracia é o de que uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo crime.
“Mas mesmo assim, é efetivamente isso que está acontecendo com Hicheur tanto no Brasil como na França”, destacou a Nature.
Outro princípio lembrado pela revista é o de que a pessoa que já cumpriu uma sentença deve ter o direito a uma nova vida, sem obstáculos.
“Mesmo assim, Hicheur, que fazia com sucesso um novo começo após mudar-se para o Brasil em 2013, contribuindo produtivamente para a ciência do país, teve esta chance negada”, constatou o editorial.
O texto afirma que pode se concordar ou não com a prisão domiciliar de Hicheur na França, embora “muitos de seus colegas a tenham denunciado como brutal, injustificada e desnecessária”. Mas neste caso _ destacou o editorial _ há ao menos uma aparência de lógica jurídica sob a situação temporária excepcional na França. No entanto a revista britânica ressalta que esta aparência legal é inexistente no caso da ação de deportação do ministro Alexandre de Moraes.
Além do editorial, a revista publicou uma reportagem, assinada pelo jornalista Declan Butler, intitulada “Misteriosa deportação de físico de partículas leva a aumento de protestos”.
A matéria conta em detalhes o dia em que Hicheur foi retirado de seu apartamento no Rio pela Polícia Federal , levado até o aeroporto e colocado a bordo de um voo com destino a Paris, acompanhado de três agentes federais.
Da capital francesa, ele foi transportado para a casa de seus pais, na pequena cidade de Vienne, no sudoeste do país, onde vive até hoje em regime de prisão domiciliar.
Ele é obrigado a ir assinar um livro de presença na delegacia local três vezes ao dia e não pode deixar a casa entre 20h e 6h. A ordem de prisão domiciliar foi baseada nos poderes de detenção conferidos pelo Estado de Emergência declarado após os ataques terroristas no país.
“Dois meses depois as razões para a repentina deportação de Hicheur continuam um mistério”, afirma a reportagem. Nem Hicheur, nem a sua instituição, da Universidade Federal do Rio de Janeiro receberam justificativas para a sua deportação, e Hicheur não teve a chance de contestar a sua legalidade, disseram colegas de Hicheur à reportagem.
Um dos físicos brasileiros entrevistados é Ronald Shellard, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro.
“Sua deportação sem explicações é algo que me faz sentir envergonhado de meu país”. “Se não há razão objetiva para este ato extremo, o governo brasileiro deveria revogar a deportação e pedir às autoridades francesas que o mandem de volta ao Rio”, afirmou Shellard à revista britânica.
No aeroporto, Hicheur pediu para ser mandado para a Argélia (a nacionalidade dele no visto brasileiro) ou para qualquer outro lugar, mas não para a França, já que ele temia ser confinado devido ao Estado de Emergência, contou à reportagem Ignacio Bediaga, chefe do grupo onde Hicheur trabalhou ao chegar no Brasil, no CBPF.
“Na minha opinião Hicheur foi ilegalmente extraditado a pedido do governo francês”, disse Bediaga à Nature. “Hicheur executou um trabalho excepcional, teve um comportamento ético e moral exemplar, e uma grande disposição para colaborar com o grupo”, acrescentou Bediaga. Ele contou que em nenhum momento nenhum integrante do grupo percebeu qualquer desvio na conduta de Hicheur.
O físico franco-argelino recebeu solidariedade de colaboradores do CERN (laboratório de física de partículas da Europa, localizado perto de Genebra) e de outros centros de pesquisa do mundo, lembrou a reportagem. Um grupo de pesquisadores internacionais chegou mesmo a enviar ao presidente da França, François Hollande, um pedido para que ele anule a prisão domiciliar do físico. Mas este pedido, segundo a revista, ainda não recebeu nenhuma resposta.
A matéria conta que Hicheur foi alvo de um “dilúvio”, como se refere à cobertura da grande mídia brasileira, em janeiro, sobre a presença dele no país como um ex-condenado. A Nature cita a matéria de capa da revista Época “Um terrorista no Brasil”, que muito repercutida por outros meios de comunicação.
Comentando uma entrevista que Alexandre de Moraes concedeu recentemente ao jornal Folha de S. Paulo, a reportagem da Nature diz que o ministro da Justiça reconhecera que Hicheur não havia se comunicado com grupos terroristas nem havia cometido nenhum crime enquanto esteve no Brasil.
O texto da revista britânica tem um toque de ironia no trecho em que lembra que Alexandre de Moraes disse que Hicher era um físico nuclear “em um laboratório com todo o material em suas mãos”. “Aparentemente [ele, Moraes] não estava ciente de que Hicheur estuda física de partículas”, afirma o editorial.
As preocupaçõs com o caso Hicheur crescem, destacou a Nature. Por isso mesmo, pesquisadores do Laboratório de Partículas Elementares da UFRJ começaram a circular uma petição em defesa de Hicheur, que deverá ser enviada aos ministérios da Justiça, da Ciência e Tecnologia e da Educação. Até agora, há 300 assinaturas, a maioria de físicos, incluindo alguns destacados pesquisadores de institutos europeus.
Adesões à petição podem ser feitas aqui.
Famoso físico teórico britânico, do Kings Colege, John Ellis comentou, ao assinar a petição, que Adlène Hicheur é “um físico honesto e trabalhador que tem sido alvo de uma grande injustiça por motivos políticos sem nenhuma relação com o seu caso”. A italiana Monica Pepe Alterelli, que participa do experimento LHCb do qual ele faz parte, disse que ele foi “vítima de uma terrível injustiça enquanto trabalhava no Brasil como cientista”. Outro colega italiano, Vincenzo Vagnoni, afirmou que Hicheur é um “grande cientista” e que tem “orgulho de ter trabalhado com ele”. Ulrik Egede, do Imperial College (Londres) testemunhou que Hicheur é alvo de “uma grande injustiça”. Ao comentar sobre as Leis da Emergência, Egede observou que é preciso lutar contra o “uso do poder arbitrário e permitir a Hicheur que viva a sua vida”.
No dia 5 de setembro , uma assembléia geral da seção de físicos de partículas da Sociedade Brasileira de Físicos organizou uma conferência anual na cidade de Natal (Rio Grande do Norte). Na ocasião, os físicos concordaram em enviar uma carta a Moraes expressando a preocupação pelo fato de que a entidade não havia recebido nenhuma explicação pela deportação dois meses após o primeiro pedido feito às autoridades a respeito do caso.
O labirinto do absurdo no qual Hicheur foi jogado foi descrito também em uma reportagem recente publicada pelo website francês Lundimatin: “Quem quer estar na pele de Adlène Hicheur? Ou a infinita vingança do contraterrorismo”
“Hicheur merece uma audiência justa e completa. A melhor rota poderia ser a Justiça brasileira. Colegas, acadêmicos de lá [do Brasil] e os advogados de Hucheur merecem apoio em seus esforços no caso. Se a expulsão de Hicheur for revogada, isto pode abrir caminho para seu retorno ao trabalho no Brasil, e assim facilitar, na França, a suspensão da prisão domiciliar”, constatou a Nature.
“Se um indivíduo inteligente e articulado como Hicheur (um muçulmano), com o apoio de um grupo de colegas cientistas, pode se encontrar em uma situação sem ajuda, o que dirá de muitos outros com muito menos capacidade de defesa?”, questionou a revista, sobre os eventuais excessos da Lei do Estado de Emergência na França.
“A justiça, a liberdade, o Estado de direito e dos direitos humanos – incluindo o direito a uma defesa – são a base para uma democracia. Não é fácil nestes tempos defender estes valores, muito menos para alguém condenado no passado por infracções relacionadas com o terrorismo. Mas devemos defendê-los.”, afirmou a revista britânica.
*Florência Costa é jornalista e durante anos foi correspondente de jornais brasileiros na Russia e na Índia.
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Na época de Getúlio Vargas (que foi um ditador, mas que era também um estadista, nacionalista e desenvolvimentista), Olga Benário, grávida, por ser judia foi deportada para a Alemanha nazista, onde pouco tempo depois foi mandada para as câmaras de gás.
Em 1980, quando o Brasil vivia sob uma ditadura, dois padres franceses foram expulsos do Brasil, por fazerem discursos progressistas e incentivarem movimentos camponeses a lutar pela reforma agrária. Aliás, nas mais de duas décadas de ditadura militar-empresarial, centenas ou milhares de brasileiros foram perseguidos, torturados e assassinados por motivos políticos.
Hoje o Brasil vive novamente sob uma ditadura – embora alguns ainda se neguem a reconhecer. Essa ditadura é servil aos interesses estadunidenses; basta observar que outro grande cientista de uma área sensível, o vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, coordenador do Programa Nuclear Brasileiro, foi preso e depois condenado a INJUSTIFICÁVEIS 43 (ISSO MESMO, QUARENTA E TRÊS) ANOS DE PRISÃO, uma pena muito maior do que recebem homicidas, estupradores e assassinos em série, como aquele norueguês que abriu fogo contra uma multidão e matou mais de 70 pessoas.
O ministro da “justiça”, alexandre de moraes, assim como o general chefe do recriado SNI, sérgio etchegoyen, devem muitas explicações. Quando a democracia for restabelecida, um tribunal como o de Nüremberg deve ser instalado e esses dois ‘ministros’ do governo golpista devem ser tornados réus e julgados de forma da mesma forma implacável como o foram os nazistas que cometeram crimes de guerra e contra a humanidade.
Justo e certo, João Paiva. Agora no campo das fortes hipóteses, ou meras convicções, o trapalhão José Serra, em seu ministério das relações exteriores, também deve ter se imiscuído nessa extradição. As pantominas de Serra não são meras piadas, encobrem tragédias. Nesse troca-troca entre a baixa política e a omissão ou má-fé de operadores da justiça, perdem-se valores como Petrobrás e autonomia crescente de nossa engenharia, assim como o necessário controle tanto da importante energia nuclear como de outros recursos energéticos nacionais a se desenvolver. Uma nação desprovida de suficiência tecnológica e investimentos científicos próprios será sempre progressivamente menor, econômica e politicamente. Portanto, aproveitemos a oportunidade, em outubro próximo, de eleger bons vereadores e prefeitos, num primeiro passo rumo a soberania e a justiça social, à esquerda.