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Marcelo Auler

Willians Renato dos Santos (de amarelo) viu-se obrigado a abrir espaço para as minorias no seu programa policial.

Willians Renato dos Santos (de amarelo) viu-se obrigado a abrir espaço para as minorias no seu programa policial.

Os ouvintes do programa Gato Preto, difundido diariamente, por três horas, no início da tarde, pela Rádio Difusora de Barra do Piraí, no Vale do Paraíba, sul fluminense, devem estar surpresos. Quem antes ouvia jargões homofóbicos como “Ah, que coisa hein! Que veadagem! Veados da bica! Olha só! Veados da bica! Isso não, hein!”; “Vai lá manja rola!”; “Homens comendo homens. Que que é isso, meu Deus! Ah não!”; “É um tal de meter a boca no outro”, desde o dia 27 de março têm ouvido entrevistas e conversas com representantes dos movimentos LGBT além de outros grupos que falam em nome das minorias. Serão, ao todo, 30 dias (seis semanas, de segunda à sexta-feira) em que o programa Repórter Policial do Gato Preto, apelido do jornalista Willians Renato dos Santos, será obrigado a dar espaço a estes grupos. Além desta meia hora de entrevistas, a rádio levará ao ar, em spots de no máximo dois minutos, outras mensagens a favor da diversidade, que totalizarão 60 minutos diários com questões relacionadas aos Direitos Humanos.

Tudo isso é fruto de uma articulação muito bem feita do procurador da República de Volta Redonda (que responde por parte da região sul fluminense) Júlio José Araújo Junior. Não foi necessário ameaçar com censura, pedir a suspensão do programa ou entrar com qualquer processo. Através do diálogo e da negociação, exercendo os poderes que a Constituição de 1988 lhe conferiu – os quais, infelizmente, são esquecidos por alguns de seus colegas – ele transformou o limão em limonada: abriu espaço na programação de uma rádio que antes atacava essas minorias, para a defesa das mesmas e, principalmente, a bandeira da necessidade de tolerância e respeito ao diferente.

Ao participar, junto com representantes da direção da rádio, da primeira reunião com o MPF, Santos confessou ter se surpreendido com esta situação, após 36 anos de programa de rádio. Nas suas alegações, como consta da ata da reunião em 7 de fevereiro passado, enfatizou fazer seu trabalho da melhor maneira possível, mas que diante desta situação “se sente um marginal”. Ao expor suas parcerias  acabou mostrando o preconceito e a intolerância que repassa aos ouvintes, como consta da mesma ata:

Disse que é parceiro do MP, do juiz, da PM, só não é parceiro do vagabundo. Com o vagabundo ele arregaça com ele, arrebenta com ele, e o vagabundo o respeita. A parada gay existe há 6 anos em Barra do Piraí, e se o movimento bate à porta da rádio, eles têm espaço no seu programa, que também é aberto a outras minorias, como o movimento negro. Disse que procura fazer o seu trabalho da melhor maneira possível, mas que agora se sente um marginal. Ele disse que não é moleque, que quer a resposta. Afirmou que vagabundo não tem tempo ruim com ele, é a forma que ele faz o programa. Questionou a razão de não se ter feito isso antes.

O procurador Araújo Júnior no programa de Gato preto: abrindo espaço à diversidade4 e retirando do silêncio as minorias.

O procurador Araújo Júnior no programa de Gato preto: abrindo espaço à diversidade4 e retirando do silêncio as minorias.

Como deixou claro na reunião, Araújo Júnior tomou conhecimento do programa, no final de 2016, através de uma manifestação do Ministério Público Estadual, e expôs o motivo de sua atuação, lembrando que a rádio é concessão federal: “A atuação do MPF se justifica em razão de a rádio se tratar de uma concessão pública federal. O objetivo é evitar violações de direitos humanos. A recomendação não se refere apenas à população LGBT, mas também a pessoas que eventualmente são investigadas, presas, sendo que determinadas maneiras de colocação são de certa forma inferiorizantes, por isso a recomendação aponta para a necessidade de abstenção do radialista e da rádio. Um programa de rádio de sucesso, popular, tem toda uma condição de trazer uma questão de outra forma. Disse que o que nos aflige é que uma rádio popular ajude a estigmatizar determinados grupos”.

Em seguida, de forma direta, repreendeu a forma como o radialista trata suspeitos de delitos ou crimes, logo tratados como vagabundos, por Gato Preto. Sua posição acaba colidindo com a de muitos colegas que, com base em delações, antes de serem investigadas, taxa os suspeitos de criminosos:

infelizmente, não é chamando de vagabundo que vamos resolver o problema da criminalidade e das outras questões, que são muito caras. O que não significa que não possamos ser críticos em relação a determinados comportamentos e que não possamos cobrar a atuação das autoridades. O problema é que estamos lidando às vezes com fatos que estão sendo apurados, pode se tratar de uma pessoa indefesa. Talvez a pessoa não tenha tido a possibilidade de se defender, como o radialista está tendo nesta oportunidade. O discurso de ódio é muito complicado, pois é muito fácil silenciar quem não tem voz, difícil é se contrapor ao discurso do poderoso, de quem tem voz. Essa é a discussão da recomendação”.

Araújo Júnior debruçou-se sobre o problema em novembro, ao receber ofício dos colegas do Ministério Público Estadual (MPE). No âmbito do Inquérito Civil Público que instaurara em 2015 – 1.30.010.000164/2015-18 – para “apurar a questão da homofobia nos municípios de atribuição desta Procuradoria da República, bem como as políticas que estão sendo adotadas para a segurança e o combate à discriminação do público LGBT”, decidiu elaborar a Recomendação Nº 38/2016, tal como previsto no artigo 6º, inciso XX, da Lei Complementar 75/93, que dispõe sobre as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União.

Recomendação nº 38 do Ministério Público Federal de Volta Redonda 

O texto legal fala da competência do Ministério Público da União prevendo “expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis”. Foi o que fez Araújo Júnior. Nela, recomendou expressamente à rádio e ao jornalista;

I – ABSTENHA-SE de veicular expressões discriminatórias contra grupos minoritários que possam caracterizar exercício abusivo da liberdade de expressão, tais como, em relação ao público LGBT, “Que veadagem! Veados da bica!”; “Vai lá manja rola!”; “Homens comendo homens. Que que é isso, meu Deus! Ah não!”; “É um tal de meter a boca no outro” e, em relação aos adolescentes que cometem atos infracionais, “pilantras”; “canalhas”; “sementes do mal”; “marginais”; “praga”; “eu adoro divulgar quando eles são encontrados na beira da estrada explodidos a tiro de doze”, no programa jornalístico Gato Preto ou em qualquer outro programa da grade;

II – DISPONIBILIZE, pelo prazo de 30 dias, por uma hora diária, uma programação voltada aos direitos humanos, conferindo espaço aos grupos discriminados nos casos relatados. Para tanto, deverá acionar entidades de direitos humanos e contar com o apoio de instituições oficiais, se for o caso.

Em sete de fevereiro ele fez a primeira reunião com representantes da direção da rádio e o radialista Gato Preto. Soube da concordância da direção da rádio em acatar a recomendação o que permitiu partir para traçar os planos de como fazê-lo, como consta da Ata da reunião (leia abaixo). O debate sobre o que levar ao ar e como fazê-lo foi feito com grupos de representantes de movimentos sociais, no dia 15 de fevereiro, na segunda reunião (ata também abaixo).

 “A ideia é combater os silenciamentos das minorias. Minha inspiração foi em uma solução adotada contra a Rede TV há uns 10 anos. Chegaram a tirar a emissora do ar e depois ela foi obrigada a colocar programas de direitos humanos“,  explicou Araújo Júnior.

Ao Blog ele relacionou alguns dos grupos que terão voz nos programas de rádio, o que mostra uma boa diversidade: ‘Toninho Canecão é quilombola do quilombo São José da serra; Elisa é da Pastoral Carcerária; a Raquel é ambientalista; há moradores dos bairros Vargem Alegre e Vila Maia, ambos em Barra do Piraí, cujas comunidades estão em risco de remoção ou em situação precária; a Fátima é do Jongo do Pinheiral; irá também o bispo dom Francisco Biasin, o padre Juarez da região, entre outros.

  • Na Recomendação 86, o procurador elenca, entre os muitos “considerandos”, alguns que deveriam chamar a atenção também de seus colegas, não apenas no combate aos programas que disseminam o preconceito, mas também quando rádios e televisões, que são concessões públicas, manipulam o noticiário, de acordo com a tendência política dos seus donos. Eis alguns pontos chaves no qual ele se baseou:
  • O conteúdo do direito fundamental à liberdade de expressão não abrange o discurso de ódio (“hate speech”), consistente no ato de desigualar e hierarquizar grupos, em razão de cor, raça, crença, identidade, etc., excluindo minorias estigmatizadas do debate público, por meio do efeito silenciador, em prejuízo à democracia;
  •  O Supremo Tribunal Federal, em consonância com as principais cortes do mundo, exceto a dos Estados Unidos, já se pronunciou sobre o tema no HC 82.424 (caso Ellwanger), oportunidade em que asseverou que a liberdade de expressão não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, sob pena de sacrificar inúmeros outros bens jurídicos de estatura constitucional;
  • A proibição do exercício abusivo da liberdade de expressão deve atingir com maior rigor os entes públicos e aqueles que têm por objetivo justamente estimular o autogoverno;
  •  O  texto constitucional consagra o direito de acesso à informação (art. 5º, XIV), e que os meios de comunicação de massa – rádio e TV – representam serviço público, na forma do art. 21, XII, a, c/c art. 223 da Constituição, objeto de concessão pela União;
  • Nesse sentido, é dever do Estado assegurar o pluralismo nos meios de comunicação, externo ou interno;
  • O pluralismo interno consiste em proporcionar ao público um amplo acesso a informações e pontos de vista diversificados, bem como nos deveres positivos do Estado de estabelecer mecanismos organizacionais, substantivos e procedimentais, que o garantam no espaço comunicativo;
  • O Estado assegurar o pluralismo nos meios de comunicação, externo ou interno;
  • O melhor caminho, em situações como a presente, sem prejuízo das medidas de reparação que podem ser adotadas em caso de ofensas a minorias estigmatizadas não é a censura, mas o estímulo a uma visão plural que atue dentro dos limites da liberdade de expressão, coibindo o discurso de ódio;
  • Tais medidas devem implicar a garantia, pelo meio de comunicação, de uma programação voltada à concretização de direitos humanos e da abstenção de nova veiculação de discurso de ódio em momento futuro.

Abaixo, as atas das duas principais reuniões promovidas pelo procurador.

Ata da reunião da direção da rádio com o MPF

Ata da reunião de representantes da rádio com o movimentos sociais

3 Comentários

  1. C.Poivre disse:

    A intervenção democrática do Procurador Júlio J. Araújo Júnior é que é o verdadeiro papel do MP que pouquíssimos praticam. Se este Procurador exemplar fosse o PGR o Brasil seria outro. Admirável a atitude dele.

  2. João de Paiva disse:

    Esta matéria me faz lembrar o caso do camponês da Prússia, que tornou célebre a frase “Há juízes em Berlim”. A atuação do procurador da República de Volta Redonda, Júlio José Araújo Junior, nos leva a fazer uma analogia entre os casos. Resta saber se esse procurador não será, a partir dessa sua forma cooperativa e propositiva de agir, perseguido por colegas do mesmo MPF. Em SP, os procuradores do MPE são vigiados e intimidados pela corregedoria; apenas os punitivistas e reacionários têm chance de chegar ao topo da carreira. Os juízes garantistas e pró-trabalhador, que atuam nos TRTs e no TST são achincalhados por Gilmar Mendes e mesmo pelo presidente do TST, Yves Gandra Filho, indicado por GM.

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