Minha passagem pelo jornal O Globo, como estagiário, durou pouco: aproximadamente nove meses. Mas, marcou-me para o resto da vida profissional. Ao ser demitido por conta de uma reportagem publicada em O Movimento, definitivamente as portas do jornal foram fechadas para mim, como comprovaria por duas vezes anos mais tarde.
Em 1975, ainda na Rádio Globo, trabalhei durante o mês de dezembro no jornal como rádio escuta. Cumpria, na verdade, três jornadas de trabalho – duas na rádio (começava de madrugada), e à noite em O Globo (até 23hs). Estava de férias na faculdade. Pretendia juntar dinheiro para me aventurar pelo mundo com um grande amigo dos bancos do Colégio Marista, José Gaglianone Jr. Na hora H, o medo falou mais forte e Gaglianone foi sozinho. Deu a volta ao mundo e fixou-se nos EUA. Com outro grande amigo, Rogério Valle e acompanhado de um colega dele – Grilo – do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades, instituição mantida pelos jesuítas) – , resolvi, aproveitar o dinheiro juntado para, em janeiro de 1976, conhecer as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no nordeste brasileiro.
Embora trabalhando há dois anos na rádio- comecei em 20 de janeiro de 1974 -. Mário Franqueira, diretor de jornalismo, não quis me dar férias. Um ano antes, em dezembro de 1974, quando meu irmão casou no Alegrete (RS) pedi uma licença de uma semana para assistir à cerimônia. Foi quando ouvi de Franqueira a frase “casamento você só precisa ir ao seu, mesmo assim se não puder casar por procuração”,
Na verdade, minha carteira só foi assinada em outubro de 1975, como auxiliar de programação. Alegando isso, as férias não me foram dadas e eu me demiti. Foram três cartas de demissão, pois as duas primeiras acabaram rasgadas e jogadas ao lixo pelo locutor de esporte Rui Porto, interferindo para que eu não deixasse o emprego.
Em fevereiro, ao retornar ao Rio, consegui uma vaga como “estagiário” na chamada Repol – Reportagem de Polícia de O Globo. Eu, Júlio e um terceiro colega cujo nome não recordo, chefiados por Ely Moreira, ficávamos empoleirados em um pequeno Jirau no final da velha redação. Do lado oposto ao nosso estava a editoria de Economia.
Trabalhávamos apenas pelo telefone, recebendo nota dos setoristas dos hospitais, da Baixada e apurando matérias menores da editoria Grande Rio. Quando o assunto era melhor, o jornal corria com uma – às vezes até mais – de suas equipes.
A redação tinha um excelente time de repórteres, tanto do lado profissional como da amizade. Certamente esquecerei muitos, mas cito como exemplo Albeniza Garcia, Alexandra Bertolo, Amélia Gonzalez, Ângela Romito, Dênis Moraes, Aroldo Machado, Bernadete Vieira Cunha, Belisa Ribeiro, Carlos Absalão, Carlos Jurandir Monteiro Lopes, Celeste Cintra, Dílson Berhends, Domingos Meirelles, Estanislau Oliveira, Fernando Sampaio, Hélio Contreiras, Jocelin Bicho, Jorge Oliveira (Jorge Arapiraca), Luciano Moraes (o grande pauteiro), Luís Turiba (na época, Turíbio), Luiz Carlos Sarmento, Marcelo Beraba, Marcelo Pontes, Marco Antônio Gonçalves, Marcos Cardona, Nícia Maria, Pâmela Nunes, Paulo Cézar Pereira, Paulo Penna, Riomar Trindade, Roberto Manera, Thaís de Mendonça Jorge. E outros.
Nosso sindicato estava entregue a um grande pelego, José Machado, que só veio a ser derrubado em 1978. Em O Globo, a jornada de trabalho dos repórteres chegava a dez horas diárias, quando não a ultrapassava. Ainda assim houve um pedido da direção de Redação – o diretor geral era Evandro Carlos de Andrade e abaixo dele estava Henrique Caban, que cuidava diretamente do dia-a-dia – de um maior empenho de todos para concorrer com reportagens que fizessem frente ao novo produto lançado pelo Jornal do Brasil, a sua Revista de Domingo. A boa concorrência entre os jornais ainda existia, o que obrigava as empresas de comunicação a investirem em reportagens. Nosso concorrente – o JB – tinha também um time de muitos bons profissionais que, além da capacidade, trabalhava com outra vantagem: o chamado salário ambiente, isto é, além de um clima mais amenos, havia a vantagem de o jornal permitir matérias mais críticas.
Aumento para os chefes – O pedido de maior empenho acabou gerando um movimento de reivindicação salarial e uma folga na semana para quem trabalhasse aos domingos, já que não havia pagamento em dobro da diária. Começou com uma reunião dos jornalistas na qual estipulamos fazer um levantamento do salário de cada um.
Como eu não saía da redação, me coube a tarefa de recolher a informação de quem quisesse dar e relacioná-las. Com isto, constatamos que em 19 meses o jornal tinha perdido 35 profissionais e só havia preenchido onze das vagas abertas. Mal sabíamos que da economia de Cr$ 130.200,00 (cruzeiros, moeda da época) mensais com as vagas em aberto, parte do dinheiro tinha sido redistribuída às chefias e alguns poucos jornalistas mais próximos dos chefes. Com isso, aumentava o disparate entre o salário dos repórteres, em média Cr$ 4 mil, e o dos chefes – Cr$ 18 mil.
A partir do levantamento foi feito um abaixo assinado com nossas reivindicações. Segundo recorda-se Fichel David, diagramador no jornal e então diretor do Sindicato ao lado de Domingos Meirelles, recolheu-se mais de 40 assinaturas. Dias antes de o documento ser entregue à direção de redação, David e Domingos tiveram uma conversa com Caban, na sede da ABI. Ao ser informado do abaixo-assinado, o então secretário de redação ameaçou: quem assinar será demitido.
Eu não estava no Rio quando o documento – sem as assinaturas, segundo David – foi entregue ao então chefe de reportagem, Renan Miranda. A resposta da direção de redação quando cobrada uma posição, foi dura e seca: “não li e não gostei”. Foi um balde de água fria.
Na mesma época, em plena ditadura militar e debaixo da censura aos meios de comunicação, a ABI, presidida por Prudente de Moraes, neto, organizava diversos Seminários. O terceiro, em junho de 1976, foi aberto por ninguém menos do que Roberto Marinho, como o próprio O Globo divulgou em 01 de junho de 1976. Ao também participar do encontro, Ricardo Kotscho, então no jornal O Estado de S. Paulo, resumiu a situação da categoria na época:
“Nos meus doze anos de repórter, nunca vi esse ofício tão desprestigiado, amesquinhado, apoquentado, acomodado”, disse.
Mal sabia ele dos dias que viveríamos atualmente, Mas, na época, foi um Raio X da categoria, muito embora ela, naquele momento, fosse bem mais unida e politizada do que nos parece ser hoje. Havia lutas comuns a todos: o fim da ditadura, a volta da liberdade de expressão e a melhoria salarial e das condições de trabalho.
Não tínhamos um sindicato atuante, mas lutamos para tê-lo. Das reuniões, assembleias e conchavos participavam todos. Lembro-me, por exemplo, da tarde em que Alberto Dines, já um nome respeitado entre todos nós, ao comparecermos no Sindicato para uma assembleia que acabou cancelada pelo presidente da entidade ao ver-nos da oposição presente, literalmente trocou soco e chutes com Machado, na porta da sala da diretoria que por ser de vidro quase quebrou.
Reportagem e demissão – Diante da posição de intransigência da diretoria de redação de O Globo, em agosto, decidiu-se tornar pública a nossa reivindicação. Não recordo de quem partiu a ideia, mas sei que em uma noite, eu, Carlos Jurandir e Domingos Meirelles, na casa de Jalusa Barcelos, então namorada de Jurandir, redigimos uma matéria para o jornal Movimento.
Publicada na segunda-feira, dia 23 de agosto – “Os repórteres d’O Globo descrevem seu trabalho” – a reportagem começava contando a descrição feita por Kotscho no seminário da ABI, narrava a movimentação dos repórteres do jornal e ainda avançava:
“Distanciado dos seus subordinados em termos salariais (um chefe de reportagem ganha atualmente Cr$ 18 mil, enquanto a media da reportagem não chega a Cr$ 4 mil), chefes de reportagem e de redação do Globo se distanciam também dos problemas dos repórteres, principalmente os relacionados com o trabalho jornalístico, passando a se constituir em meros cobradores de matéria.
O fenômeno corresponde à atual limitação do noticiário dos jornais, que tornou necessária em certas empresas uma maior “disciplina” do ânimo e da criatividade dos repórteres. O jornal de Roberto Marinho estabeleceu uma “pirâmide” burocrática que, pela elevação desproporcional dos salários dos chefes, torna-os mais comprometidos com o destino da empresa, mais ciosos na fiscalização do noticiário em seu nascedouro – a reportagem – a fim de preservar intocável a linha do jornal”.
O jornal circulou no final de semana anterior, ainda que com data de capa do dia 23. A reportagem saiu assinada por um pseudônimo – Alfredo Lourenço. Mas, nada disso impediu a reação imediata das chefias da redação, No final da mesma tarde de segunda-feira, 23, Carlos Jurandir foi demitido, sem maiores explicações, por Renan Miranda,
Aula de dignidade – Na época, eu estava dando os meus primeiros passos como repórter de rua. Diante das férias de Aroldo Machado, fui encarregado de cobrir a Delegacia de Homicídio, que funcionava em um velho prédio na Avenida Presidente Vargas (centro do Rio). O titular era Hebert Murtinho. Certamente, por ter retornado tarde naquela segunda-feira, eu ainda ganhei mais um dia de trabalho.
Na terça-feira, porém, ocorreu o inusitado. Fui surpreendido pela demissão de Jurandir, mas sem saber detalhes e nem imaginar que eu era o próximo. Cheguei à redação, sentei com Renan para discutirmos uma matéria que eu oferecia para o final de semana. Ele concordou com a pauta e me preparei para ir à DH. Já estava com o dinheiro do taxi nas mãos e me dirigindo para o elevador quando ele chamou-me em voz alta. Ao retornar recebi o recado, simples assim:
“Ontem eu não pude esperar você voltar e não deu para lhe avisar, mas o jornal está dispensando o seu trabalho. Você está demitido”. Mais nada foi dito, nem lhe perguntado.
A associação da demissão com a matéria em o Movimento foi imediata e não fui apenas eu quem a fiz. Pouco mais tarde, quando chegou para trabalhar no copidesque da editoria Grande Rio, Aguinaldo Silva deu uma aula de dignidade e caráter que jamais esquecerei.
Conforme o próprio narrou posteriormente em uma reunião na sede do jornal Movimento, ele nem chegou a retirar do ombro a bolsa que costumava carregar – uma marca registrada sua. Om as pontas dos dedos no encosto da cadeira que ocupava, dirigiu-se para o editor da Grande Rio, Iran Frejat, e questionou:
“Quero saber se posso sentar para trabalhar ou se eu também estou demitido?”
Frejat estranhou a pergunta e surpreso ouviu a explicação de Aguinaldo:
“Vocês demitiram dois colaboradores do jornal Movimento. Eu não sou colaborador, sou do Conselho Editorial do jornal e não abro mão de, fora do meu expediente em O Globo, escrever o que quiser, sobre quem eu quiser. Quero saber se posso sentar para trabalhar ou se estou demitido?”, insistiu.
Portas fechadas – Aguinaldo permaneceu no emprego. Também Domingos Meirelles foi poupado, certamente por ter imunidade sindical. Somente eu e Jurandir fomos para a rua. Ao me dar um documento em que acertávamos o fim do meu trabalho (veja ilustração), a empresa ainda se preocupou em registrar que eu lhe dava:
“plena, geral e irrevogável quitação de direitos, para nada mais reclamar, sob qualquer título ou pretexto, em Juízo ou fora dele. Com a assinaturas da presente, ratificam também os acordantes a total ausência de vinculo empregatício, dada a natureza da colaboração”.
Eu sabia que juridicamente tal documento valia nada. Caso eu entrasse na Justiça, certamente teria alguma coisa a ganhar. Outros colegas recorreram à Justiça do trabalho e fizeram jus a indenizações, Mas, em início de carreira, decidi que não ia comprar uma briga com o jornal na expectativa de no futuro poder retornar ao mesmo. Ledo engano.
Anos depois, por duas vezes, cheguei a ser sondado para trabalhar em sucursais de O Globo, em Brasília e em São Paulo, mas minha contratação acabou vetada, mesmo sem ter recorrido à Justiça. Na explicação que me deram, o veto partiu de Caban, que continuava no cargo no jornal. Certa vez, ao encontra-lo na portaria do prédio da Gazeta Mercantil, em São Paulo, tive oportunidade de questioná-lo a respeito. Ele me garantiu que não partira dele as proibições, talvez do RH da empresa.
Difícil é acreditar que um veto do Departamento Pessoal tenha sido lhe creditado erroneamente pelos chefes de sucursais que, após me convidarem, tiveram a gentileza de explicar a não contratação. Era muito mais fácil para eles responsabilizarem a burocracia da casa do que o secretário de redação.
2 Comentários
Meu caro. Respeito o seu trabalho e desejo que você tenha ainda mais saúde para dar continuidade a esse importante trabalho jornalística. Axé!
Gostei muito, estou mais animado pra cuidar de mim. Obrigado!