A propósito de toda a discussão sobre a campanha salarial do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, minha querida amiga Silvia Moretzsohn trás ao debate a lembrança da campanha salarial de 1989, quando estava no Jornal do Brasil. Ela diz, na página Jootabenianos, do Face Book:
“Marcelo, eu me lembro bem de uma história que o Marcos Sá Corrêa protagonizou em 89, quando a redação do JB rachou com o sindicato e não aderiu à greve decidida numa assembleia que lotou o auditório do nono andar da ABI. E depois se deu muito mal, porque a empresa não cumpriu a promessa de pagar um reajuste maior do que o que o sindicato obtivesse, caso a redação não entrasse em greve. Me lembrei desse episódio por causa dessa história de agora: temos pelo menos um precedente no qual uma parcela da categoria descartou o interesse coletivo. No mais, acho suas observações muito importantes e espero que elas levem os colegas a refletir”.
Seu comentário, porém, peca por não contar toda a História – com letra maiúscula mesmo – do que ocorreu naquela campanha salarial. Acho que, até por ter sido um importante momento da minha vida, vale como recordação nesta página – Portifólio – em que tenho publicado lembranças boas e ruins da minha vida profissional.
Tenho plena consciência de que a posição da redação do JB naquela campanha salarial ainda hoje é vista com desconfiança por grande parte da categoria. Por isso, também, vale repassar o que ocorreu, inclusive buscando o testemunho de quem dela participou como Alexandre Medeiros, Fernando Ewerton, Fabio Rodrigues, Mair Pena Neto, Roni Lima e Fernando Paulino Neto, além da própria Beth Costa, na época presidente do Sindicato, e de outros colegas que trabalhavam na redação do JB, inclusive Flavio Pinheiro, então editor-executivo, que compartilhou com Marcos Sá Corrêa, diretor de Redação, parte da negociação.
Antes de ingressar propriamente na Campanha Salarial, vale uma breve descrição do que ocorria na redação da Avenida Brasil 500. Ali, como muitos de nós costumamos falar, além dos salários – nem sempre os mais altos – tínhamos o chamado “salário ambiente”. Era uma redação das mais democráticas em que trabalhei – igualava-se, ao bom período da Folha de S. Paulo. Tínhamos uma comissão de redação que negociava diretamente com o Marcos Sá Corrêa e com um diretor de RH que foi contratado pelo jornal do qual eu e outros jornalistas que consultei só lembramos o primeiro nome: Fernando.
Na redação, tínhamos liberdade de discutir tudo o que quiséssemos, dentro das normas. Assim fazíamos assembleias ora no restaurante, ora na própria redação. Realizamos alguns movimentos como, um minuto de silencio bem na hora do fechamento ou até um “palmaço” durante alguns minutos; recordo-me até que as palmas chatearam Roberto Pompeu de Toledo, outro editor executivo, que na hora falava ao telefone e não conseguia ouvir seu interlocutor.
Foi dentro desse contexto que a redação do JB ingressou na campanha salarial daquele ano. A reivindicação do sindicato era de 33% e as empresas ofereciam algo em torno de 22%. No JB negociávamos com o tal diretor de RH e, paralelamente, com o próprio Marcos Sá Corrêa. Foi dele que veio a proposta de o jornal pagar os 33% sem, contudo, levá-la para o sindicato patronal. Ou seja, ele prometia verbalmente, mas não colocava no papel.
A diretoria do sindicato funcionava como um colegiado. Embora a Beth Costa – minha amiga até hoje, apesar da divergência que tivemos naquele episódio – fosse a presidente, valia a decisão da diretoria, que era um tanto quanto radical. Essa diretoria foi contra a negociação em paralelo do JB. Alegava que a empresa se recusava a oficializar a proposta para não rachar os patrões. No fundo, queriam que a redação do JB, de todas a mais mobilizada, aderisse à proposta de greve para dar força ao movimento. As redações de O Globo e de O Dia, que não tinham negociação paralela, defendiam a paralisação de todos.
Apoio da presidente – A posição da maioria da redação era pela negociação em paralelo, embora alguns colegas se posicionassem contra, entre eles a própria Moretzsohn. Entendíamos que não podíamos duvidar da palavra do nosso editor – afinal, o próprio dia-a-dia da redação era feito em cima da confiança mútua, Além disso, a simples negociação, ainda que não houvesse compromisso no papel, já demonstrava um racha no sindicato patronal que, no nosso entender, deveria ser explorado para forçar os outros jornais a aderirem ao aumento que receberíamos.
Na tarde do dia em que a decisão da greve seria discutida em assembleia na ABI, a Beth Costa esteve na redação da Avenida Brasil 500. Participou de uma reunião da comissão de redação com o Marcos Sá Correa ouvindo dele o compromisso em dar o aumento. Concordou com a posição da comissão de redação e, inclusive, defendeu este posicionamento – de não adesão à greve – em uma assembleia na redação do jornal. Volto a lembrar até em homenagem ao Marcos Sá Corrêa, hoje impossibilitado de se manifestar, éramos a única redação que fazia reunião abertamente, sem nenhum constrangimento por parte das chefias.
Fomos para a ABI com a decisão tomada. Não iríamos entrar em greve. O Sindicato, através da Beth, tinha consciência disso. Só que, após sua ida à redação do JB, a Beth participou de uma reunião de diretoria na qual, suspeito – nunca conversei com ela sobre isso, apesar de sermos muito amigos há algum tempo – o colegiado desautorizou a posição a favor da redação do JB.
Foi um massacre. Ao subir no palco para expor detalhadamente a posição que tínhamos tomado, na presença da presidente do sindicato e com o aval dela, me vaiaram, me xingaram, me acusaram. Lembro bem que recebi poucos apoios. Além dos colegas do jornal, aos quais representava, contei com a solidariedade do Erlanger, na época chefe em O Globo e que veio me cumprimentar argumentando que estávamos sim provocando um racha não na categoria, mas entre as empresas.
Assim, tenho plena consciência de que a categoria, ao aderir à greve, o fez sabendo que o JB não estaria nela. Por coerência, ninguém do jornal votou quando foram decidir pela paralisação ou não. Nos abstivemos pois não poderíamos tomar posição em um movimento do qual não participaríamos.
Aumento atrasou – O problema surgiu no final do mês quando o Jornal do Brasil não honrou o aumento de 33% pagando apenas os 22% como os demais jornais. Estava em casa, acometido de hepatite e não participei das assembleias na redação. Mas, por meio do meu amigo e padrinho de casamento, Marcos de Castro, encaminhei minha carta de demissão. Ela não chegou a ser lida, foi rasgada.
Marcos Sá Corrêa informou que a falta de dinheiro para honrar o aumento naquele mês não significava recuo na disposição da empresa em conceder o aumento. Prometia o pagamento no mês seguinte e acenou com alguma forma de compensação para a diferença não paga. A proposta do jornal era de uma espécie de “escambo”: ofereceriam vales para compras em supermercado ou mesmo passagens de avião que a empresa conseguiria através da permuta com publicidade.
Por estar doente, em um sábado à tarde a comissão de redação do jornal reuniu-se na minha casa, no alto do Edifício Germini, no corte do Cantagalo. Estiveram por l´[a, como lembra o Alexandre Medeiros, eu, ele e, Fernando Ewerton, Mair Pena Neto, Fabio Rodrigues, Roni Lima e Fernando Paulino Neto Do Ewerton veio a proposta de solução de parte do impasse, ideia que disse ter surgido durante o seu banho: Se o jornal garante que o aumento será dado no próximo pagamento, o salário este mês já está reajustado, logo podemos, em um movimento coletivo, entregar as nossas carteiras de trabalho pedindo a atualização salarial. Marcamos data para a devolução com o reajuste anotado. Todos concordaram. Mas faltava resolver o mês não pago.
A proposta de escambo foi logo rejeitada. Verificamos, em um cálculo rápido, que a diferença não paga correspondia a dez dias de trabalho e aí bolamos a saída: transformar o aumento que não veio em dias de folga. Imediatamente consultamos o Flávio Pinheiro, por telefone, se a direção de redação aceitaria as duas propostas: registro do aumento na carteira e concessão de dez dias de folga à redação para compensar o aumento não dado. Com a concordância da diretoria de redação, levamos a proposta para uma assembleia que a acatou e assim aconteceu.
Logo, a versão de que o JB não honrou o compromisso não é correta. Todos tiveram o aumento e ainda ganhamos dez dias de folga. Muitos transformaram estes dez dias em dinheiro, na época das férias.
Mas, o que ficou foi a versão de que éramos fura-greve e tínhamos colocado a perder o movimento dos demais colegas de O Globo e de O Dia, onde ocorreram demissões após a paralisação. Versão esta que me perseguiu por muito tempo, inclusive em situações inusitadas. Meses depois, durante a campanha eleitoral de Lula para presidente, fui a uma festa do PT em um núcleo na RuaDançava com uma colega jornalista da Tribuna de Imprensa, que conhecera naquele momento. No meio da dança ela parou e comentou:
– Ah, agora já sei de onde lhe conheço. Você é aquele fura-greve da assembleia da ABI!
Eu dancei durante a dança.
2 Comentários
Sylvia Moretzsohn,
Que lição de vida, apesar de não ser da área jornalistica, eu sempre digo aos colegas na área industrial, que São Paulo que é a locomotiva do Brasil, tem o maior número de trabalhadores, mas, sempre subalternos aos políticos canalhas, que sempre o governou. Tudo isso por falta de união. Onde já se viu o Paulinho da Força, representar trabalhador. Essa obsessão do PT pelo poder, sem a mínima preocupação pelo país, abre precedentes para esses tipos de conchavos espúrios, comprovados com a situação em que nos encontramos. Mesmo em 2018 o PT pretende governar com esses detritos que encontram-se no poder? Será que o país vai resistir a mais esse atraso?
Acho que o Lula deveria ter o minimo de hombridade moral, e refazer o erro cometido com a indicação da Dilma, em detrimento ao Ciro Gomes. E aproveito para perguntar, que as mídias conservadoras não queiram ele no poder, (o mesmo acordo feito contra o Brizola, ele não aparece em nem uma delas) é compreensível, mas e os blogs e sites independentes? Vamos ser mais patriotas, pensar grande e limpar o país em todos os poderes, convocando os sindicatos para a regulamentação das mídias na nossa constituição, como foi feito na Argentina, ou então vamos ficar galopando, de golpes em golpes.
Marcelo, não acho correto dizer que meu comentário “peca por não contar toda a história” porque minha intenção não era contá-la. Fiz apenas essa referência a um outro comentário seu, longo, a respeito da questão atual que envolve a categoria: a decisão da maioria dos jornalistas da Globo, na última assembleia do sindicato, em favor de uma proposta que aceita um piso salarial inferior ao conquistado. Lembrei desse caso de 89 porque é um precedente de racha na categoria, de resultados nefastos.
Lembro muito bem do que aconteceu porque esse fato me marcou profundamente. Porque resultou na minha demissão e numa mudança fundamental na minha vida. A partir dali eu achei que não valia mais a pena continuar trabalhando em redação. Já havia sido demitida do Globo na greve geral de dezembro de 86, junto com mais 12 pessoas, não queria quebrar a cara uma terceira vez. E estava muito decepcionada com os colegas, com a falta de perspectiva de luta política, etc. Mesmo assim continuei frequentando o sindicato, aliás naquele mesmo ano publicamos nosso livrinho sobre ética (“Jornalistas pra quê?”), nem preciso dizer que foi um ano decisivo na história política do país e também do jornalismo, especialmente devido àquela famosa edição do debate Lula x Collor pela Globo. Eu era membro da Comissão de Ética (como sou hoje), estava em segundo mandato, mas algumas divergências sérias com parte da diretoria de então me levaram a me afastar do sindicato em 92, junto com outros colegas (a propósito, o jornal do Sindicato destacou em manchete essa decisão, chamando-nos de “desertores”, e eu achei muita graça porque não sabia que estávamos em guerra). Enfim, fui cuidar da vida e acabei fazendo concurso para a UFF, onde estou até hoje, certamente muito mais feliz do que estaria num jornal. Então foi uma mudança muito positiva na minha vida.
Quero dar o meu lado dessa história. Naquele início de 89 o clima era de tensão por causa da perspectiva da greve. Não sei de reunião da Beth Costa com o Marcos Sá Corrêa, nem das discussões com a Comissão de Redação. Sei que na tarde do dia da assembleia que praticamente lotou o auditório da ABI o Marcos chamou representantes de cada editoria para anunciar essa proposta: que a “casa” oferecia um reajuste maior do que o que o sindicato obtivesse, sob a condição de que não aderíssemos à greve. Mas que não poderia formalizar essa proposta porque isso significaria uma divisão no sindicato patronal.
Eu estava nessa reunião e não falei nada, apenas ouvi. Concluí o que me pareceu óbvio: se ele não podia dar garantias desse acordo para não rachar com o sindicato patronal, nós tampouco poderíamos aceitá-lo (com base em palavras, veja só), para não rachar com o nosso. E fui bater minha matéria.
Eu trabalhava no Esporte, num dos extremos da redação. De repente, vi um monte de gente reunida no meio daquele salão enorme levantando os braços, como se estivesse votando alguma coisa. Não me preocupei em saber o que tinha acontecido, só percebi quando chegamos à ABI e os colegas diziam que haviam decidido não aderir à greve. Eu reagi: como assim? A assembleia é soberana, é ela quem decide se há greve ou não, e se a greve for aprovada nós vamos entrar em greve sim! E já subi com o sangue fervendo.
Repito: não soube em momento algum dessa reunião da Beth com o Marcos e a comissão de redação, estou sabendo agora. E, na época, de fato eu não admitia a hipótese de negociação em paralelo, porque entendia que isso era enfraquecer a luta coletiva. Hoje penso diferente, mas continuo com a certeza de que qualquer acordo tem de ser formalizado, o que não ocorreu naquela ocasião.
Na hora de dar o informe, nove colegas do JB subiram ao palco. Algo totalmente díspare em relação às outras redações, que falavam através de apenas um representante. Houve os previsíveis protestos dos demais. Eu pedi a palavra e abri o verbo. Mesmo, como poucas vezes na vida. Disse, em síntese, que a assembleia era soberana e que era também sábia, saberia o momento de avançar e recuar; e que se deliberasse pela greve, teríamos de aderir; e que se os jornalistas do JB não aderissem, eles estavam rompendo com o sindicato.
Fui muito aplaudida. E no dia seguinte vi as consequências quando cheguei ao jornal: as pessoas me evitavam, viravam a cara. Até que um redator, o Cipião, que gostava de mim, me olhou espantado e perguntou, veja só, se era verdade que eu tinha pedido a expulsão dos jornalistas do JB do sindicato. Obviamente não era, não só porque isso seria uma impossibilidade regimental (de acordo com o que o Código de Ética define até hoje), mas porque seria uma irresponsabilidade, e irresponsável eu nunca fui. Fiquei chocada com a desfaçatez das pessoas, que inventam uma história e a disseminam, e as outras acreditam automaticamente e nem procuram saber se é verdade. Trabalhei normalmente e no fim do dia redigi um longo esclarecimento, que imprimi naquela máquina matricial (estávamos nos primórdios da informatização dos jornais), fiz umas cinco ou seis cópias e colei o texto nas paredes da redação. Só para tentar esclarecer, embora sem muita esperança.
Finalmente o JB não fez greve (salvo meia dúzia de pessoas), eu tampouco fiz, porque tinha sido deslocada para a cobertura do Pré-Olímpico de Vela, em Búzios, e seria uma estupidez não mandar matéria, porque a assessoria mandaria. Mas me senti muito mal com aquilo.
No mais, foi isso que você diz: o fim do mês foi chegando e as pessoas preocupadas porque o Vicente (era esse o nome do cara da grana, não Fernando: Vicente) não estava sabendo de reajuste nenhum. E aí o pessoal se revoltou, a ponto de parar para exigir a presença do Marcos, que até então não dera nenhuma explicação sobre aquela história. E ele apareceu para dizer que a “casa” de fato havia prometido o reajuste, mas que não tinha dinheiro (enquanto isso o Nascimento Brito estacionava suas Mercedes tranquilamente no pátio).
Não tinha dinheiro, pois sim.
Me lembro do Israel Tabak, um sujeito absolutamente sereno e sóbrio, espantado diante daquilo e dizendo: “Marcos, você deu sua palavra!”.
Pois é.
O que os jornalistas do JB foram sacaneados pelos colegas não foi brincadeira.
E aí as reuniões se repetiram, uma delas inclusive feita no estacionamento, o vento ventando e dispersando as palavras, ninguém conseguia ouvir nada… até que, numa reunião na redação, ainda com os ânimos exaltadíssimos, uma editora disse que deveríamos dar graças a Deus por estarmos empregados, porque em outras empresas tinha havido demissões, e que era motivo de orgulho trabalhar no JB, um jornal de tamanha tradição, etc, etc.
Foi a gota d’água pra mim, eu estava inscrita para falar logo depois, e voltei a abrir o verbo, e o pessoal apoiando até que eu disse que o Marcos tinha sido desonesto. E aí a reação foi aquele uhhhh meio surdo, que indica o quanto a gente pisou na bola.
Claro, eu não deveria ter dito aquilo, mas disse e não tinha como voltar atrás. E sabia que minha demissão era questão de tempo. Demorou 21 dias, até que meu editor me ligou pra casa e me pediu que fosse direto para o jornal. Ali me comunicou da demissão.
Lembro que a Beth foi conversar com o Marcos e depois me contou que ele disse que eu tinha sido demitida porque era “desagregadora” (foi exatamente esse o termo), mas que, se eu quisesse, ele poderia ver uma vaga pra mim na Veja.
Foi o que ela me contou, eu obviamente nem levei em consideração. E não preciso dizer o que penso dessa atitude, certo?
Peço desculpas pela extensão do relato, mas acho importante fazê-lo nesse momento, porque muita gente desconhece essa história, que pode nos ensinar muito sobre as consequências da falta de união entre colegas.