Há 53 anos o Brasil ingressava em um período duro, iniciava uma ditadura civil-militar que perdurou 21 anos. Tudo feito em nome do combate ao comunismo e à corrupção. Mas, na verdade, os interesses eram muito maiores e as consequências foram desastrosas, dolorosas, trágicas. Pelos dados da Comissão Nacional da Verdade, 434 mortes e desaparecimentos. Entre essas pessoas, 210 são desaparecidas. A estes dados acrescente-se milhares de presos e torturados, cujas sequelas ficaram para o resto da vida, e ainda as famílias de todos eles, que jamais voltaram a ter sossego, mesmo quando conseguiram reencontrar os sobreviventes de toda esta barbárie.
Grave, ainda, é o fato de os responsáveis por estas mortes, torturas, sevícias e outras atrocidades terem – e estarem, aqueles que ainda sobrevivem – se livrado de qualquer punição ou responsabilidade. Mesmo estando provado que cometeram crimes hediondos, puníveis nos países civilizados, onde jamais seriam beneficiados por uma anistia.
Mas, tão grave quanto, é constatar que grupos de verdadeiros porras-loucas pedem hoje a volta de militares e de uma intervenção, que nada mais é do que a volta da ditadura. Verdade que ainda são poucos, mas não menos verdade que esses grupos estão, a cada dia, diante do impasse que o golpe do impeachment colocou o país, recebem novos adeptos. Em geral pessoas que não viveram ou não conhecem o que realmente se passou nos porões da ditadura civil-militar e não têm noção que, depois que se apoderam do poder, ditadores – assim como os golpistas atuais – dele não querem apear.
Por tudo isso, mais do que nunca, é preciso Jamais Esquecer! Até para não se repetir novamente. Lamentavelmente, a tragédia que nos levou aos tempos duros e escuros, passou em brancas nuvens na chamada grande imprensa. Nada se falou a respeito, deixando cair no esquecimento o golpe militar que a chamada grande imprensa ajudou a instalar, assim como ajudou no golpe do impeachment que nos relegou este governo ilegítimo.
Com o objetivo de não deixar cair no esquecimento e não voltarmos a ter que viver em uma ditadura, o blog traz dois depoimentos de combatentes e vítimas daquele período sombrio. Ambos interligados, a partir do momento em que passaram a viver na rregião sul fluminense. Dom Waldyr Calheiros (1923-2013), que chegou em Volta Redonda (RJ) como bispo diocesano em 20 de outubro de 1966.
Já a Estrella D’Alva Bohadana (1950-2015), natural de Manaus (AM), escolheu morar em Barra do Piraí, por militância política. Foi estudar arquitetura na cidade, mas com o intuito de ficar próxima do eixo operário no entorno de Volta Redonda, com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), de Barra Mansa com a Votoratin, cimentos, sem falar nos ferroviários de Barra do Pirai. Seu interesse era instruir politicamente a classe operária, mas foi em Volta Redonda que ela encontrou “solo propício” com a proliferação dos movimentos jovens da igreja, dos sindicatos e os comunistas. Para eles era importante a informação que ela trazia.
As vidas de dom Waldyr e Estrellas se entrelaçaram, assim como a do Padre Natanael Campos de Morais, conforme relata a jornalista e cineasta Rosane Santiago Cordeiro, responsável pela produção de “Vestida de Sonho“, filme que pretende mostrar 45 anos da história política brasileira, tendo como personagem principal a bailarina e filosofa Estrella. Rosane explica na página que fala do seu trabalho:
“Padre Natanael e Estrella Bohadana (dentre outros ao longo do tempo) foram os instrumentos mais eficazes usados pelos militares para atingir moralmente e espiritualmente o Bispo Dom Waldir Calheiros. Nem Estrela em seus relatos era capaz de contar o que esse senhor viu acontecer com ela e que ele próprio passou no cárcere do BIB (Batalhão de Infantaria Blindada) de Barra Mansa. Por sua fé, inocente, encarou a violência como um verdadeiro sacerdote“.
A partir do trabalho de Rosane, que ainda está em fase de filmagem de depoimentos e busca de apoio à produção, relembramos aqui os momentos duros da ditadura civil-militar que alguns incautos dizem que gostariam de ver de volta. Que estes depoimentos, de quem sofreu na pele as atrocidades que vivemos em 21 anos de regime militar, sem democracia e sob censura, sirvam para alertar os incautos/porras-loucas sobre o despautério que cometem aos clamarem pela volta da ditadura. O primeiro depoimento é de dom Waldyr à Rosane, a ser usado no filme.
Em “Vestida de Sonho“, Estrella é apresentada como uma das pessoas supliciadas durante a ditadura militar. Mesmo assim não desistiu de seus sonhos:
“Casada por três vezes, teve filhos, netos e amigos, estes últimos funcionavam para ela como uma nova e crescente família. Seu desejo era de que as pessoas vivessem de maneira comunitária, compartilhando seus sonhos e ajudando-se mutuamente. Aos 65 anos uma nova luta apareceu: um câncer de pâncreas a atingiu e a levou rapidamente, quando ainda tinha nos olhos o brilho e o desejo de fazer felizes as pessoas ao seu redor.
É um filme de amizades… e mostra depoimentos de pessoas fantásticas que fizeram nossa história recente. Mostramos cinco décadas de política, movimentos sindicais, guerrilha, heroísmo, integridade, o amor da Estrela pelo Brasil e pela Espanha e a lúdica e difícil superação das mazelas da tortura física pela dança.
A linguagem utilizada será de ficção mesclada com documentário. Em flash backs, a vida de Estrela Bohadana e seus encontros com a jornalista Rosane Santiago, momentos reais e outros acontecidos apenas na imaginação, se mesclam com outras vidas. O pano de fundo são quatro cidades brasileiras: Volta Redonda, Rio de Janeiro, São Paulo e Belém do Pará, além de cenas na Espanha”.
Rosane privou da amizade de Estrella. Mais do que isso, foi sua aluna de dança flamenco e conheceu de perto as chagas que ela carregava das torturas sofridas:
“Fui aluna de Estrella e ninguém diria que essa bailarina tinha só 40% dos tendões das pernas, a tortura acabou com o resto. Falei com uma pessoa que fazia massagem nela, falamos dos machucados da tortura, no corpo e na alma. (eu também toquei o corpo de Estrella em uma massagem). Quantas chagas no espírito, quanta dor que ela ia deixando quando fazia o bem aos outros. Ela era vestida de sonhos e de bondade”.
Morreu de um câncer que a vitimou rapidamente – quatro meses. Isto após, em 2003, ter cuidado do seu então marido, René Armand Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas políticos do Brasil.
O filme, na verdade, não se limitará a Estrella, pois também abordará outros dois personagens importantes na vida da filosofa e bailarina. Um deles é justamente seu ex-marido, René. Nas obras de René o filme buscou o respaldo político-científico da sua narrativa”.
Outro personagem, como não poderia deixar de ser, é o Bispo Dom Waldir, herói brasileiro que ficou conhecido por seu engajamento nas lutas sociais em favor dos menos favorecidos, como o movimento dos posseiros e o movimento sindical e que jamais negou abrigo e apoio a todos os perseguidos políticos que buscaram sua ajuda.
Abaixo, para que Estrella possa ser um pouco mais conhecida, apresentamos seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2014.
Detalhes sobre a produção do filme podem ser vistos em: http://santiagofilmes.com.br/index.php/2017/02/20/974/
6 Comentários
Agradeço muito ao Marcelo Auler e aos amigos que aqui comentaram. Temos uma página no facebook: https://www.facebook.com/Vestida-De-Sonhos-380822908954999/ , se puderem curtam, por favor. Eternamente agradecida a todos Rosane
Em primeiro lugar, companheiro, parabéns pelo texto. Objetivo e oportuno. Tenho por Volta Redonda um carinho especial. O tema em tela não pode jamais ser esquecido. Espero que a jornalista e cineasta Rosane Santiago seja feliz no seu projeto. Um filme que, desde já, penso que deveria ser exibido nas escolas e faculdades. Um período de trevas do nosso país.
Obrigada por este importante blog. Os leitores que cresceram sem saber nada sobre a ditadura também devem saber que a democracia brasileira não foi derrubada por medo do “comunismo” ou desejo de eliminar a “corrupção.” Ele foi esmagado por causa da ganância–dos EUA tambem. O anticomunismo era uma mentira inventada tanto pela CIA quanto pela elite brasileira, que viram que perderiam financeiramente com um presidente progressista como Goulart. Os leitores também devem saber que a corajosa Estrella foi torturada com equipamentos e técnicas fornecidos pela CIA via USAID, bem como técnicas originárias do Brasil. Que havia silêncio sobre esses horríveis abusos no Brasil é criminoso. Que ainda há silêncio sobre eles nos EUA não é apenas criminoso, mas o sintoma de uma nação em hipocrisia profunda. É uma nação que reivindicou ser sobre a liberdade e a democracia mesmo enquanto esmagou-a através de América Latina – como suas torturas esmagadas as pernas de Estrella e os espíritos de todas as famílias de seus milhares de vítimas. Paz e bênçãos e profunda empatia a todos como Estrella.
Eu que agradeço aos leitores por me prestigiarem com a atenção e leitura. Peço apenas que divulguem e ajudem – da maneira que cada um achar que deve e possa fazê-lo – a mantê-lo. Obrigado
[…] Para não esquecer! Para não repetir! […]
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