“Quem governa então? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar nunca. Quanta dor, quanto medo!”
O pensamento foi exposto, sábado (05/10), pelo Papa Francisco que, pouco a pouco conquista o lugar do principal líder mundial contemporâneo. Ele se reuniu, no Vaticano, na Sala Paulo VI, com cerca de 200 delegadas e delegados, representantes dos excluídos e excluídas da sociedade. Eram de 69 países e participaram da III Encontro Mundial dos Movimentos Populares.
Iniciado na quarta-feira (02/11), o encontro teve em uma das suas primeiras sessões o debate sobre “Povo e Democracia”. Da mesa deste encontro participaram Beatriz Cerqueira, do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (SindUTE), John Mark Mwanika, Sindicato Unido dos Trabalhadores da Área dos Transportes e outras Categorias Gerais (ATGWU, Uganda) e o Padre Luigi Giotti. Ao encerrá-lo, o pontífice falou perante outros 3.300 populares.
“Toda a doutrina social da Igreja e o magistério de meus predecessores se rebela contra o ídolo do dinheiro que reina ao invés de servir, tiraniza e aterroriza a humanidade“, insistiu o Papa.
Como se estivesse mandando um recado aos brasileiros – o que pode não ter passado de uma coincidência – o Papa criticou quando, em nome de uma “austeridade” se provoca ajustes que acabam sendo prejudiciais. Coincidência ou não, o recado cai como uma luva para o que ocorre hoje no Brasil com a PEC 241 que chegou a ser abençoada por alguns bispos e combatida em nota pela CNBB, conforme divulgou o JornalGGN em CNBB se posiciona contra a PEC 241: é uma afronta à Constituição Cidadã
“Porque no campo mais científico, científico-econômico se quiserem, ou das ciências do mercado, austeridade é sinônimo de ajuste. E não é a isto que me refiro. Não estou falando disto”, explicou.
Abaixo reproduzimos alguns trecos do pronunciamento do Papa Francisco. O link com a integra vai ao final da matéria, também é possível ver o vídeo deste encontro.
“(…) Algumas tarefas imprescindíveis para caminhar em direção a uma alternativa humana diante da globalização da indiferença: 1. Colocar a economia à serviço dos povos; 2. Construir a paz e a justiça; 3. Defender a Mãe Terra” (…)
“(…) Vocês se comprometeram em abraçar um projeto de vida que rejeite o consumismo e recupere a solidariedade, o amor entre nós e o respeito pela natureza como valores essenciais”(…)
(…) “O colonialismo ideológico globalizante procura impor receitas supra-culturais que não respeitam a identidade dos povos. Vocês seguem por um caminho que é, ao mesmo tempo, local e universal. Um caminho que me recorda como Jesus pediu para organizar a multidão em grupos de cinquenta para distribuir o pão (cfr Homilia na Solenidade de Corpus Christi, Buenos Aires, 12 de junho de 2004)”.
(…) “Existem forças poderosas que podem neutralizar este processo de amadurecimento de uma mudança que seja capaz de deslocar o primado do dinheiro e colocar novamente no centro o ser humano, ao homem, a mulher” (…).
(…) “Quem governa então? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar nunca. Quanta dor, quanto medo! Existe – disse recentemente – existe um terrorismo de base que deriva do controle global do dinheiro sobre a terra e ameaça toda a humanidade. Deste terrorismo de base se alimentam os terroristas derivados como o narco-terrorismo, o terrorismo de Estado e aquele que alguns erroneamente chamam terrorismo étnico ou religiosos. Nenhum povo, nenhuma religião é terrorista”,
(…) “A sala na qual agora nos encontramos se chama “Paulo VI”, e foi Paulo VI que denunciou há quase cinquenta anos, a “nova forma abusiva de domínio econômico no plano social, cultural e também político” (Carta Encíclica Octogesima adveniens, 14 de maio 1971, 44). São palavras duras mas justas de meus predecessores que perscrutaram o futuro. A Igreja e os profetas dizem, há milênios, aquilo que tanto escandaliza que repete o Papa neste tempo, em que tudo isto atinge expressões inéditas. Toda a doutrina social da Igreja e o magistério de meus predecessores se rebela contra o ídolo do dinheiro que reina ao invés de servir, tiraniza e aterroriza a humanidade”.
(…) “Não deixemo-nos enganar. Como vocês disseram: “Continuamos a trabalhar para construir pontes entre os povos, pontes que nos permitem abater os muros da exclusão e da exploração. (Documento conclusivo do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 11 de julho de 2015, Santa cruz de la Sierra, Bolívia). Enfrentemos o terror com o amor.”
“O segundo ponto que eu queria tocar é: O amor e as pontes”.
“Um dia como este, um sábado, Jesus fez duas coisas que, nos diz o Evangelho, apressaram o complô para matá-lo. Passava com os seus discípulos por um campo de sementes. Os discípulos tinham fome e comeram as espigas. Nada se diz sobre o “dono” daquele campo… subjacente é a destinação universal dos bens.
“O que é certo é que, diante da fome, Jesus deu prioridade à dignidade dos filhos de Deus antes que a uma interpretação formalística, obsequiosa e interessada da norma. Quando os doutores da lei lamentaram com indignação hipócrita, Jesus recordou a eles que Deus quer o amor e não sacrifícios, e explicou que o sábado é feito para o homem e não o homem para o sábado (cfr Mt 2,27). Enfrentou o pensamento hipócrita e presunçoso com a inteligência humilde do coração (cfr Homilia, I Congresso de Evangelização da Cultura, Buenos Aires, 3 de novembro de 2006), que dá sempre a prioridade ao homem e não aceita que determinadas lógicas impeçam a sua liberdade de viver, amar e servir o próximo”
“E depois, neste mesmo dia, Jesus fez algo de “pior”, algo que irritou ainda mais os hipócritas e os soberbos que o estavam observando porque procuram uma desculpa para capturá-lo. Curou a mão atrofiada de um homem. A mão, este sinal tão forte do trabalhar, do trabalho. Jesus restituiu àquele homem a capacidade de trabalhar e com isso lhe restituiu a dignidade. Quantas mãos atrofiadas, quantas pessoas privadas da dignidade do trabalho! Porque os hipócritas, para defender sistemas injustos, se opõe a que sejam curados.
Às vezes penso que quando vocês, os pobres organizados, inventam os vossos trabalhos, criando uma cooperativa, recuperando uma fábrica falida, reciclando os descartes da sociedade de consumo, enfrentando a inclemência do tempo para vender em uma praça, reivindicando um pedaço de terra para cultivar para alimentar quem tem fome, quando vocês fazem isto estão imitando Jesus, porque buscam curar, mesmo que somente um pouquinho, mesmo se precariamente, esta atrofia do sistema socioeconômico reinante que é o desemprego. Não me surpreende que também vocês às vezes sejam vigiados ou perseguidos, nem me surpreende que aos soberbos não interessa aquilo que vocês dizem.”
” (…) O contrário do desenvolvimento, se poderia dizer, é a atrofia, a paralisia. Devemos ajudar a curar o mundo da sua atrofia moral. Este sistema atrofiado é capaz de fornecer algumas “próteses” cosméticas que não são verdadeiro desenvolvimento: crescimento econômico, progressos tecnológicos, maior “eficiência” para produzir coisas que se compram, são usadas e jogadas fora, nos envolvendo a todos em uma vertiginosa dinâmica do descarte… Mas não consente o desenvolvimento do ser humano na sua integralidade, o desenvolvimento que não se reduz ao consumo, que não se reduz ao bem-estar de poucos, que inclui todos os povos e as pessoas na plenitude da sua dignidade, usufruindo fraternalmente a maravilha da criação. Este é o desenvolvimento do qual temos necessidade: humano, integral, respeitoso pela criação, desta casa comum”.
Migrantes, Refugiados & Deslocados -(…) “Decidi que, ao menos por um certo tempo, este setor – drama dos migrantes, dos refugiados e dos deslocados. – vai ficar submetido diretamente ao Pontífice, porque esta é uma situação infame, que posso somente descrever com uma palavra que me veio em mente espontaneamente em Lampedusa: vergonha.
Lá, como em Lesbos, pude ouvir de perto o sofrimento de tantas famílias expulsas de sua terra por motivos econômicos ou violências de todos os tipos, multidões exiladas – disse isto diante das autoridades de todo o mundo – por causa de um sistema socioeconômico injusto e de guerras que não buscaram, que não criaram aqueles que hoje sofrem o doloroso desenraizamento da sua pátria, mas antes muitos daqueles que se recusam em recebe-los”.
(…) “Ninguém deveria ver-se obrigado a fugir da própria pátria. Mas o mal é duplo quando, diante daquelas terríveis circunstâncias, o migrante se vê lançados nas garras dos traficantes de pessoas para atravessar as fronteiras, e é triplo se chegam na terra em que se pensava encontrar um futuro melhor e são desprezados, explorados e até mesmo escravizados. Isto se pode ver em qualquer canto de centenas de cidades. Ou simplesmente não o deixa entrar.
Peço a vocês para fazerem todo o possível e não esquecerem nunca que também Jesus, Maria e José experimentaram a condição dramática dos refugiados.
Vos peço para exercerem aquela solidariedade tão especial que existe entre aqueles que sofreram. Vocês sabem recuperar fábricas das falências, reciclar aquilo que outros jogam fora, criar postos de trabalho, cultivar a terra, construir moradias, integrar bairros segregados e reclamar sem se deter como a viúva do Evangelho que pede justiça insistentemente (cfr Lc 18,1-8).
Talvez com o vosso exemplo e a vossa insistência, alguns Estados e Organizações internacionais abrirão os olhos e adotarão as medidas adequadas para acolher e integrar plenamente todos aqueles que, por um motivo ou por outro, buscam refúgio longe de casa. E também para enfrentar as causas profundas pelas quais milhares de homens, mulheres e crianças são expulsos a cada dia de sua terra natal.
Dar exemplo e reclamar é um modo de fazer política, e isto me leva ao segundo tema que vocês debateram em vosso encontro: a relação entre povo e democracia.
Uma relação que deveria ser natural e fluída, mas que corre o perigo de ofuscar-se até se tornar irreconhecível. A lacuna entre os povos e as nossas atuais formas de democracia se alarga sempre mais como consequência do enorme poder dos grupos econômicos e midiáticos que parecem dominá-las.
Os movimentos populares, o sei, não são partidos políticos e deixem que eu vos diga que, em grande parte, aqui está a vossa riqueza, porque vocês expressam uma forma diversa, dinâmica, e vital de participação social na vida pública.
Mas não tenham medo de entrar nas grandes discussões, na Política com maiúscula, e cito de novo Paulo VI: “A política é uma maneira exigente – mas não é a única – de viver o compromisso cristão a serviço dos outros”. (Carta Ap. Octosegima adveniens, 14 de maio de 1971, 46). Ou esta frase que repito tantas vezes, que sempre me confundo, não sei se é de Paulo VI ou de Pio XII: “A política é uma das formas mais elevadas da caridade, do amor”.
Gostaria de sublinhar dois riscos que giram ao redor da relação entre os movimentos populares e política: o risco de deixar-se “formatar” (ndr – no sentido de limitar os movimentos. O Papa usou a palavra “encorsetar”), e o risco de deixar-se corromper.
Primeiro, não deixar-se “formatar” porque alguns dizem: a cooperativa, o refeitório, o horto agroecológico, as microempresas, o projeto dos planos assistenciais… até aqui tudo bem. Enquanto vocês se mantiverem limitados às “políticas sociais”, enquanto vocês não colocarem em discussão a política econômica ou a política com a maiúscula, vocês são tolerados. A ideia das políticas sociais concebidas como uma política em direção aos pobres, mas nunca “com” os pobres, nunca “dos” pobres e tanto menos inserida em um projeto que reúna os povos, me parece às vezes uma espécie de mascarado por conter os descartes do sistema (…)”
“Vocês, organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da sociedade, são chamados a revitalizar, a refundar as democracias que estão passando por uma verdadeira crise. Não caiam na tentação da limitação que voz reduz a atores secundários, ou pior, a meros administradores da miséria existente. Neste tempo de paralisias, desorientação e propostas destrutivas, a participação como protagonistas dos povos que buscam o bem comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um bem-estar egoístico e uma segurança ilusória.
Sabemos que “enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da iniquidade, não se resolverão os problemas do mundo e definitivamente, nenhum problema. A iniquidade é a raiz dos males sociais”. (Exort. Apost. Evangelii gaudium, 202).
Por isto, o disse e o repito, “o futuro da humanidade não está somente nas mãos dos grandes líderes, das grandes potências e das elites. Está sobretudo nas mãos dos povos; na sua capacidade de organizar-se e também nas mãos que irrigam, com humildade e convicção, este processo de mudanças”. (Discurso ao II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015).
Também a Igreja pode e deve, sem pretender ter o monopólio da verdade, pronunciar-se e agir especialmente diante das “situações em que se tocam as chagas e os sofrimentos dramáticos, e nos quais estão envolvidos os valores, a ética, as ciências sociais e a fé” (Pronunciamento no encontro de Juízes e Magistrados contra o tráfico de pessoas e o crime organizado, Vaticano, 3 de junho 2016) (…)”
“Como a política não é uma questão dos “políticos”, a corrupção não é um vício exclusivo da política. Existe corrupção na política, existe corrupção nas empresas, existe corrupção nos meios de comunicação, existe corrupção nas Igrejas e existe corrupção também nas organizações sociais e nos movimentos populares. É justo dizer que existe uma corrupção radicada em alguns âmbitos da vida econômica, em particular na atividade financeira, e que é menos notícia do que a corrupção diretamente e ligada ao âmbito político e social.
É justo dizer que muito vezes se utilizam os casos de corrupção com más intenções. Mas é também justo esclarecer que aqueles que escolheram uma vida de serviço, têm uma obrigação ulterior que se soma à honestidade com que qualquer pessoas deve agir na vida. A medida é muito alta: é necessário viver a vocação de servir com um forte sentido de austeridade e a humildade. Isto vale para os políticos, mas vale também para os dirigentes sociais e para nós pastores”.
“Disse “austeridade”. Gostaria de esclarecer a que me refiro com a palavra austeridade. Pode ser uma palavra equivocada. Austeridade moral, austeridade no modo de viver, austeridade em como levo em frente a minha vida, minha família. Austeridade moral e humana. Porque no campo mais científico, científico-econômico se quiserem, ou das ciências do mercado, austeridade é sinônimo de ajuste. E não é a isto que me refiro. Não estou falando disto”.
“À qualquer pessoa que sejam muito apegada às coisas materiais ou ao espelho, a quem ama o dinheiro, os banquetes exuberantes, as casas suntuosas, as roupas refinadas, o carro de luxo, aconselharia de entender o que está acontecendo em seu coração e de rezar a Deus para libertá-lo destes apegos.
Mas, parafraseando o ex-Presidente latino-americano que se encontra aqui, aquele que está afeiçoado a todas estas coisas, por favor, que não entre na política, que não entre em uma organização social ou em um movimento popular, porque causaria muito dano a si mesmo e ao próximo e mancharia a nobre causa que assumiu. Tampouco que entre no seminário” (…).
(…) “A corrupção, a soberba e o exibicionismo dos dirigentes aumenta o descrédito coletivo, a sensação de abandono e alimenta o mecanismo do medo que sustenta este sistema iníquo.
Gostaria, para concluir, pedir a vocês para continuar a combater o medo com uma vida de serviço, solidariedade e humildade em favor dos povos e especialmente daqueles que sofrem. Vocês poderiam errar muitas vezes, todos erramos, mas se perseveramos neste caminho, cedo ou tarde, veremos os frutos. E insisto: contra o terror, o melhor remédio é o amor. O amor cura tudo”.
A íntegra do discurso do Papa, em português, está em: http://br.radiovaticana.va/news/2016/11/05/papa_fala_no_ii_encontro_dos_movimentos_populares/1270367
5 Comentários
È uma pena que pouca pessoas tenham acesso a este conteudo.As forças do obscurantismo escondem,boicotam,deturpam tudo que nos levam em direçao à luz, a democracia verdadeira, ao reino dos bem-aventurados.Mas é como se diz “agua mole em pedra dura,tanto bate até que fura”A humanidade irá sem dúvida encontrar o seu paraíso.saudaçoes
[…] ao blog do Marcelo Auler – aquele que a delegada Érika Mialik pede que seja censurado, considerando-o “um esquerdista […]
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[…] Fonte: Papa Francisco: “Austeridade não é sinônimo de ajuste” | Marcelo Auler […]
Beleza de matéria, Marcelo. Parabéns pelo seu trabalho. Beleza este encontro entre Francisco e Mujica. Beleza termos um Papa que constrói pontes. Como você, sempre construindo pontes através do seu trabalho. Grande e saudoso abraço do Antonio Carlos.