Salvador Pane Baruja (*)
Até o ano de 2000, eu era um dos milhões de brasileiros que sequer desconfiava que alguém como Curt Nimuendajú pudesse ter existido. Nesse ano, estive no Rio de Janeiro para fazer uma reportagem para rádios alemãs sobre chorinho. Sem saber até hoje porquê, acabei na Biblioteca Nacional com a Enciclopédia Barsa na mãos, lendo o curto verbete com seu nome. Após pesquisar em bibliotecas e museus no Brasil, Paraguai, Suécia e Alemanha, em 2014 lancei o livro digital “Curt Nimuendajú – O Alemão que Virou Índio no Brasil”.
Curt nasceu em 1883 na cidade alemã de Jena e foi batizado com o nome de Hermann Curt Unckel. Assassinado por seringalistas, morto por índios ou talvez falecido por causas naturais, seu corpo foi enterrado em 1945 em Santa Rita do Weil (AM), às margens do rio Alto Solimões, sob o nome de Curt Nimuendajú.
[Nimuendajú significa aproximadamente “aquele que soube abrir o seu caminho neste mundo” ou “descendente da Nimuendá”, divindade Apopocuva-guarani (Nhandeva), uma das quatro tribos que o batizaram com nomes próprios de sua religião-mitologia.]
Ao longo de 42 anos, este alemão de nascimento, que escolheu a cidadania brasileira, pesquisou mais de 40 grupos indígenas – para isso, enfrentou, no mato, fazendeiros armados e, nas capitais, nacionalistas xenófobos durante o Estado Novo. Apesar de criticar o nazismo (que exigia a pureza racial), foi proibido de trabalhar como etnólogo pouco antes do governo de Getúlio Vargas declarar guerra à Alemanha em 1942. Nesse ano, foi detido sob acusação, sem provas, de ser “espião” da sua pátria de nascimento.
[Até hoje, continua pouco conhecido no seu país de adoção. Às vezes, ainda é lembrado como “o alemão“ na literatura etno-antropológica.]
Autodidata, escreveu mais de 50 obras. A primeira – As lendas da criação e da destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapokuva-Guarani – foi publicada em 1914, originalmente em alemão. Curt Nimuendajú criou e praticou o método considerado padrão na pesquisa antropológica contemporânea. Contudo, os louros da inovadora metodologia da “observação participante” no trabalho de campo ficaram para o etnólogo polonês Bronislaw Malinowski.
[Malinowski propôs que o pesquisador deve pensar o maior número possível de “problemas” (questões) teóricos antes de entrar em contato com os índios. Nimuendajú, ao contrário, ouvia os indígenas e sentia suas questões (temas) como se fosse um deles, extraindo conteúdos etno-antropológicos. Considerando essa diferença radical, Nimuendajú praticou o método da “participação observadora”, algo assim como uma Etnografia ativista.]
Mesmo reconhecendo a potencialidade do então iniciante antropólogo francês Claude Lèvi-Straus, recusou, por motivos éticos, sua proposta de pesquisarem juntos nos anos 30 do século passado no Paraguai. Por essas mesmas razões, discordou do marechal Cândido Rondon e da militarização do Serviço de Proteção ao Índio – órgão estatal precursor da Funai. Ele criticou igualmente a catequisação religiosa, quer católica, quer protestante. Em 1933, lançou um manifesto individual, exigindo reparação histórica, moral e material aos indígenas. Em termos concretos, reconhecimento à existência étnica diferenciada, criação de territórios próprios, preservação da cultura, religião e sistema econômico. Algumas das propostas sugeridas encontram-se inscritas na Constituição Federal promulgada em 1988.
[Encontrei o documento nos arquivos do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e o incluí como anexo à biografia de Curt Nimuendajú.]
Uma frase do manifesto desnuda paradoxos inicialmente incompreensíveis: “Vergonhosa é a usurpação, em conivência com as autoridades, das últimas terras ocupadas pelas tribos (…) como também o é o estado de promiscuidade sórdida que tanto desmoraliza o civilizado como aniquila o índio”. Esse duplo aspecto está geralmente ausente nas reportagens (e teses acadêmicas) que eu li até hoje. Dois exemplos atuais: a reportagem Favela Amazônia, de Leonêncio Nossa (O Estado de S. Paulo, 5/7/2015), ou as de Eliane Brum (www. http://elianebrum.com), mostra claramente que a disputa entre o David indígena e o Golias “civilizado, cristão” continua. Excelentes trabalhos jornalísticos. Mas não fica claro que as situações nelas descritas apenas atualizam a “promiscuidade sórdida” citada por Nimuendajú. Uma leitura em paralelo da biografia do Nimuendajú e dessas reportagens oferece possíveis padrões de contextualização – temporal, espacial.
[Pode-se perceber, por exemplo, que, em meio a mudanças (“positivas”, “negativas”), a maior delas possivelmente é a das perspectivas/expectativas que certos grupos de indígenas e de não-indígenas manifestam. Some-se a isso a transformação individual de alguns membros de ambas as “comunidades” e têm-se aí realidades relativamente diferentes daquelas captadas por Nimuendajú ao longo da primeira metade do século 20.]
Abaixo um trecho do livro de Pane Baruja
[O livro está disponível gratuitamente, em formato PDF, em : facebook.com/pages/4-biografias-gringo-ind < e em > www.de-gringo-a-indigena.de <.]
* Jornalista e pedagogo, mora na Alemanha.
A terceira e última “pacificação” é documentada por ele mesmo. Desde finais do século 19, os Parintintin habitam uma região de aproximadamente 22 mil quilômetros quadrados entre os rios Madeira, Machado e Marmelos, no Amazonas. Ao longo desses anos, sucedem-se ataques de seringueiros, que invadiram as terras indígenas, que se defendem, ganhando fama de cruéis entre os moradores da região.
Em setembro de 1921, Nimuendajú recebe a missão de “pacificá-los”. Doente, só no final de março do ano seguinte instala um posto avançado às margens de um afluente do rio Alto Maicy-Mirim. Do outro lado, está uma aldeia Parintintin. Ele escolhe essa perigosa proximidade porque acredita que, aos poucos, os indígenas irão aceitar a presença dos sertanistas e descobrir as vantagens que ela traz.
Após meses de escaramuças, em 28 de maio de 1922 acontece o primeiro contato pacífico. Os indígenas ganham machados e miçangas das mãos de Nimuendajú e conversam. Ele se sente confirmado na sua avaliação:
O grande milagre estava feito: as feras indomáveis, os antropófagos com os quais só se pode falar pela boca do rifle tinham pacificamente conversado e trocado presentes comigo durante quase três horas!.[1]
No dia 12 de junho de 1922, novamente doente, entrega a direção do posto ao seu ajudante Amaro e retorna a Belém.[2] Sua ausência coloca em risco os avanços já realizados, pois os sertanistas caem na indisciplina, mantêm relações sexuais com as indígenas e abusam dos homens. Seis meses depois, Nimuendajú volta ao posto. Em português claro, ele expressa que: “Em primeiro lugar, tanto o encarregado do posto como todos os trabalhadores devem se comportar como homens sérios e respeitáveis, evitando as brincadeiras brutais e estúpidas com os índios, especialmente as obscenidades deles, enfim toda a intimidade demasiada com os homens e mais ainda com as mulheres.”26[3]
Com os indígenas, por outro lado, dá início a uma demonstração de pacífica autoridade:
Antes de tudo, expliquei aos índios que nós formávamos uma empresa particular, avulsa, mas que havia trás de nós um poderoso chefe, cujas ordens cumpríamos e que era o senhor de todas estas coisas que eles estavam recebendo de nossas mãos e de muito mais, e que este chefe não queria que fizéssemos guerra uns aos outros. Levei-os ao portão e aí expliquei-lhes, in loco [sic], porque, naquele assalto de 28 de maio de 1922, não fiz fogo sobre eles quando avançavam contra a casa, mas saí ao encontro deles com presentes nas mãos. Eles ouviram tudo com a maior atenção (…) e depois prometeram solenemente: acabou-se a nossa guerra contra vos! Com grande rapidez a notícia percorreu a tribo toda. Índios que eu nunca tinha visto chegavam ao posto, levaram-me para o terreiro e diante de todos pediam: “Conta do nosso chefe! Tu mesmo falaste com ele? O que foi que ele te disse? O que ele manda dizer a nós?”[4]
A batalha decisiva, porém, é travada na retaguarda. No Rio de Janeiro, o “chefe”, o general Rondon, atribui a façanha da “pacificação” ao antecessor de Nimuendajú. Ainda, parabeniza o influente seringalista local, Manuel Lobo, que, conforme o antropólogo Miguel Nunes Pereira, pagava o abastecimento do posto do SPI e dos indígenas.[5] Com certeza que isso terá abalado Nimuendajú. Ele passa a duvidar do sucesso final da empreitada.
Nunes Pereira acrescenta que Nimuendajú adverte que o SPI deve investir pesado até chegar a bons resultados: “A verdadeira pacificação ainda está muito longe [de acontecer] e a Inspetoria tem de contar ainda, durante anos, com despesas avultadas e no primeiro tempo se pode considerar feliz se conseguir manter o estado atual das coisas, isto é, a suspensão das hostilidades coletivas contra o Posto do maicy. Querer evitar as excursões guerreiras dos Parintintin contra os outros civilizados seria, na época atual, uma pretensão ridícula”.
A situação econômica torna-se insustentável, ao ponto de Nimuendajú propor ao SPI suspender a empreitada, enquanto ainda for possível organizar “uma retirada em ordem”. Assim, a até então bem encaminhada mas inconclusa “pacificação” chega ao fim:
Em 17 de janeiro [de 1923] deixei novamente o posto, ainda com grandes esperanças para o futuro. Mas enquanto eu no sertão ainda estava trabalhando, em Manaus e no Rio de Janeiro está [já fora] decidida a sua sorte.
Sem recursos para concluir a obra de pacificação, o inspetor Bento Lemos pediu-me, como meu último serviço, que desse as disposições adequadas para a retirada da guarnição do posto, e com isto me vi dispensado[6].
Nesse artigo no famoso Journal de la Societé des Américanistes de Paris, de 1924, Nimuendajú revela de maneira muito sutil sua profunda decepção com o fim abrupto da “pacificação”:
Desta forma perdeu-se por completo o trabalho dispendioso e cheio de perigos de um ano. Os Parintintin por ora só atendiam a mim, a Garcia [um substituto] e a mais ninguém. Em tempos calculáveis não haverá mais trato pacífico com essa tribo, motivo porque resolvi dar a publicidade as minhas observações pessoais, reunidas no presente trabalho.
Nos bastidores, sua indignação não conhece limites. Em carta a José Garcia, sertanista que assumira o comando do posto para concluir a retirada, ele confessa a sua amarga desilusão: “Cada vez mais admiro a sua tenacidade. Eu não teria aguentado nem a centésima parte disto. Mas não se iluda. Não espere jamais recompensa pelos sacrifícios! Ninguém lhe fará justiça; pelo contrário, você será o bode expiatório e servirá para desculpar os erros dos outros. Por mais que me entristeça a sorte dos meus pobres companheiros não posso ir em socorro deles, porque já me convenci que o maior mal da pacificação foi este de ter sido eu, o alemão, [sic] o chefe dela. Portanto, é preciso que eu desapareça. E desapareci”.
Curiosamente, diz acreditar no senso de justiça do general Rondon: “Faço, no entanto, todo o possível para que a sua situação desesperada, com todas as minúcias, chegue ao conhecimento do general Rondon. Talvez… Ele já me fez um dia justiça, a mim.”30 [7]Será que “a justiça” que Rondon fez foi readmiti-lo, em 1921, no SPI, depois da “suspeita de espionagem” de 1915?
Nunes Pereira fala dos remorsos de Nimuendajú, sugerindo que a esperteza do já calejado sertanista na tentativa de “pacificação“ desses indígenas teria gerado um inesperado efeito psicológico: “Curt Nimuendajú (…) tinha arrependimento de haver aproveitado, com incrível tática, a rebeldia dos jovens Parintintin que percebera vir se avolumando contra os velhos da tribo”.31 [8]
O próprio “pacificador“ fala de “crime” ao se referir a esse episódio de sua vida: “O governador [do Pará] quis me empurrar goela abaixo a pacificação dos Açuriní (da margem direita do meio Xingu). Eu porém rejeitei imediatamente: a pacificação dos Parintintin foi o meu último crime dessa natureza (…).”[9]
Em 1934, desabafa pessoalmente com o pesquisador sueco Stig Rydén: “Espero que Deus me perdoe pelo pecado de ter realizado a pacificação entre os índios e os brancos, pois assim chegaram as doenças dos brancos para os índios, que morreram mais em consequência destas do que nas lutas contra os brancos”[10].
O etnólogo Gusinde registra, em 1946, uma promessa de Nimuendajú: “Nunca mais ajudarei a pacificar uma tribo”[11].
A decepção de Nimuendajú centra-se na “pacificação” como a maneira de garantir a continuidade física e cultural dos indígenas. Ele sente na prática aquilo que Lima escreveria décadas mais tarde sobre o SPI, essa “potência ilusória que se oferece como a única alternativa ao conflito ou à total escravidão (…)”[12].
Mesmo assim – ou por isso mesmo – persiste no objetivo. Ao longo de seis anos, utiliza outro método com outra tribo em outra região do Brasil. Ele quer garantir as terras dos Canela no Maranhão, que consegue mensurar pessoalmente para facilitar uma futura demarcação. Os detalhes estão no capítulo 13 – Cosmogonias indígenas adotam Nimuendajú.
Reconhecimento dos indígenas
Mesmo em meio a tantos dissabores que se acumulam ao longo dos anos, Nimuendajú também vivencia momentos excepcionais entre os indígenas.
À margem de um afluente do rio Madeira, na região dos Lagos do Sampaio, ele assiste como os Múra: “(…) queriam à fina força que me demorasse entre eles para ajudá-los na defesa dos seus direitos contra os intrusos. Chegaram mesmo a me oferecer a pouca criação que tinham, queriam me dar castanhas, etc. e iam para Manaus para reclamar na Inspetoria dos Indios a minha volta para o meio deles!”36[13]
Entre os Palikur, no Oiapoque, na fronteira com a Guiana, aos 42 anos de idade o sisudo Nimuendajú deixa-se levar pela emoção:
Anteontem e ontem assisti a uma dança em casa do pajé Lexan Yuyú (fotografado de frente e de lado, sentado no seu banquinho em forma de pássaro). Cachiri muito! Bebi um bocado e estava bom – bom mêmo [sic]. Mas o resultado foi que depois, quando o ar se encheu com o cheiro do cachiri misturado com o aroma do urucu fresco, quando os maracás tiniam nas pontas das varas compridas e o terreiro estremeceu ao ritmo da dança, me voltou tão vivamente a recordação daquele tempo quando eu fiquei homem entre os Guarani que não pude mais resistir: tirei os sapatos e entrei no meio. (Que vergonha para os meus cabelos brancos!). Ainda hoje estou cansado. Mas foi bonito. [14]
[1] – Nimuendajú, Os índios Parintintin do rio Madeira, Journal de la Societé des Américanistes de Paris, Nouvelle serie, XVI, p. 218.
[2] – Mais de 30 anos depois, o escritor português Ferreira de Castro narra um diálogo fictício entre Nimuendajú e o médico carioca Bonifácio, que o aconselha a voltar para casa e tratar-se da “anemia”, cf. Ferreira de Castro, O instinto supremo, Editora Civilização Brasileira, 1968, p. 199.
[3] – Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 1946, p. 35. 136
[4] – Nimuendajú, Curt, Os indios Parintintin, p. 291.
[5] – Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, pp. 36 e 35. 137
[6] – Os índios Parintintin, pp. 220 e 211.
[7] – Nunes Pereira, p. 36.
[8] – Ibid. p. 38. 138 O próprio “pacificador“ fala de “crime” ao se referir a esse episódio de sua vida: “O governador [do Pará] quis me empurrar goela abaixo a pacificação dos Açuriní (da margem direita do meio Xingu). Eu porém rejeitei imediatamente: a pacificação dos Parintintin foi o meu último crime dessa natureza (…).”
[9] – Carta a Nordenskiöld, Belém, 22/10/1925, MG.
[10] – Rydén, Stig, introdução do livro In Pursuit of the Past Amazon, Curt Nimuendajú, 2004, Gotemburgo, p. 9.
[11] – Gusinde, Martin, Beitrag zur Forschungsgeschichte der Naturvölker Südamerikas, Archiv für Volkerkunde, v. I, Viena, 1946, p. 6134.
[12] – Lima, p. 175.
[13] – Borba, 10/04/1926, CS, p. 92.
[14] – Arucauá, 23/05/1925, CS, p. 78