Ao mesmo tempo em que diz investigar a mais letal operação policial do Rio de Janeiro, que em 6 de maio provocou 28 mortes no complexo do Jacarezinho (Zona Norte da capital fluminense), o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), em conjunto com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), dará palco e plateia para o delegado Allan Turnowski, secretário de Polícia Civil do Rio, discorrer sobre a “Segurança Pública e os Desafios no Século XXI”.
“Querem incutir no MP a visão policialesca da repressão”, explicou ao BlOG, de forma sucinta, um Procurador de Justiça fluminense, ao comentar o evento que ocorrerá na quinta e na sexta-feira (24 e 25 de junho) de forma virtual. “Tentam blindar a polícia”, acrescenta. Já um colega seu, procurador Regional da República em outro estado desabafou: “nada é por acaso. Há uma disputa no Ministério Público sobre a Operação do Jacarezinho. Boa parte dos membros gostou do massacre. O que me entristece é ver o Procurador Geral de Justiça nessa”. Já um subprocurador-geral da República aposentado, ao saber do evento, aberto a uma plateia de até 150 membros e servidores dos Ministérios Públicos de todo o país. foi mais simples e direto no comentário: “PQP. Só tem reaça”.
Os três não foram os únicos a protestarem. Em ofício encaminhado, com uma semana de antecedência (17/06), ao Procurador-Geral da República, Antônio Augusto Brandão de Aras, e ao Procurador Geral de Justiça do Rio, Luciano Oliveira Mattos de Souza, quatro entidades ligadas à luta contra a violência – a Rede de Comunidade e Movimento Contra Violência, a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luiza Mahin e a Frente Estadual Pelo Desencarceramento/RJ – apontaram a “parcialidade“ do Ministério Público e pediram, sem êxito, que o convite ao delegado fosse revisto. Na carta (íntegra abaixo) dizem:
“(…) manifestamos nosso repúdio a tal evento e a manifestação de parcialidade do parquet, REQUERENDO que seja revisto o convite ao Secretário da Polícia Civil para a mesa que versa sobre “articulação”, em especial pelos danos à imagem de isenção das investigações ao ter na mesa o próprio órgão a ser investigado e/ou fiscalizado.”
No documento, as entidades tocaram no ponto essencial, ou seja, o debate que vem sendo travado, no Supremo Tribunal Federal (STF), a respeito das operações policiais realizadas no Rio de Janeiro com total desrespeito aos direitos dos cidadãos e ameaças concretas a integridade física dos mesmos. Lembraram:
“Há que se reconhecer que o tema é um dos mais candentes para o estado do Rio de Janeiro, especialmente por seu modelo de segurança pública estar sob questionamento em duas instâncias judiciais distintas. A primeira trata-se da ADPF n. 635 que busca estabelecer um parâmetro constitucional para as operações policiais. Já a segunda refere-se a sentença condenatória internacional sob as chacinas ocorridas na Favela Nova Brasília (1994 e 1995) exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2017, que questiona não somente o modelo de segurança pública, como a ausência de independência de órgãos investigativos.”
No caso das operações policiais, que uma decisão, inicialmente monocrática do ministro Edson Fachin impedia de serem realizadas durante a pandemia – posicionamento depois respaldado pelo plenário daquela corte – a carta das entidades lembra que, um ano após o deferimento da mesma, o Rio de Janeiro registrava mais de 500 investidas das polícias fluminenses em regiões onde vivem comunidades pobres.
São dados fornecidos pelo próprio “parquet estadual na coletiva do dia 11 de maio, esclarecendo que destas, 44 viraram inquéritos civis (PIC) na instituição. Este ponto merece especial destaque, pois durante toda a coletiva foi demarcado pelo Ministério Público que esta seria uma importante saída para uma investigação mais autônoma do que a tradicionalmente feita por inquérito policial ou inquérito militar quando se trata de violações de direitos humanos, especialmente execuções, em operações das policiais. Ou seja, romperia com a lógica de investigação realizada pelo próprio órgão que realiza a violação.”
Logo, a polícia que realizou ao menos 44 operações sobre as quais promotores viram necessidade de investigar é a mesma que agora está sendo chamada a debater com membros e funcionários dos Ministérios Públicos sobre os desafios de segurança pública no século XXI.
O debate contará com outros palestrantes, como o ministro da Justiça, Anderson Torres, e o conselheiro do CNMP Luiz Fernando Bandeira de Mello, advogado licenciado na OAB por ter se tornado consultor legislativo do Senado, cargo que exercia até ser indicado por aquela casa legislativa para o Conselho como seu representante. Ambos previstos para falarem na manhã da quinta-feira, após a abertura do encontro que contava com a presença do governador Cláudio Castro e o próprio PGJ, Mattos.
A fala de Turnowski foi marcada para o início da tarde de quinta-feira. Em seguida o palco seria ocupado pelo deputado federal Emanuel Pinheiro da Silva Primo (PTB-MT), de 26 anos, em cuja biografia postada no site da Câmara dos Deputados apresenta-se como empresário. Provavelmente a justificativa para sua participação é responder, desde março, pela presidência da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado – CSPCCO – da Câmara Federal. No currículo não há qualquer referência a experiências na área da segurança pública que lhe permita oferecer conteúdo aos promotores, procuradores e servidores dos Ministérios Públicos do país.
Mo final da tarde de quinta a previsão era da palestra do diretor geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Seria precedido por outro convidado que causou estranheza para muitos, o advogado Fabio Medina Osório, mestre em Direito, que foi promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e Advogado Geral da União no governo de Michel Temer. Mas ele tornou-se mais conhecido ao admitir como sócio do seu escritório de advocacia o então candidato ao governo do Rio Wilson Witzel, logo após ele deixar a magistratura federal para concorrer na eleição.
Também pouco se sabe do seu conhecimento a respeito de segurança pública, já que se especializou em leis sobre corrupção. Foi como sócio de Witzel que ele apareceu nas páginas dos jornais. Em agosto de 2020, como noticiou O Globo – ‘O governador não ouviu os conselhos que lhe dei’, diz ex-sócio de Witzel em escritório – queixou-se que o seu ex-sócio não ter “ouvido seus dois conselhos: livrar-se de colaboradores ‘de conduta imprópria’ e não romper com o presidente Jair Bolsonaro”. Na época, ele também já reforçava a defesa do hoje ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles no processo que o condenou por improbidade administrativa na Justiça de São Paulo, tal como noticiou, em julho de 2020, o jornalista Guilherme Amado, da revista Época. Bo seminário, após sua fala, terá vez o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, hoje um adversário político do presidente Jair Bolsonaro.
O BLOG questionou a assessoria de comunicação da Procuradoria Geral de Justiça do Rio sobre o seminário e a participação destes convidados, com destaque para o delegado responsável pela polícia que vem sendo investigada pelo Ministério Público do Rio, na resposta a instituição lavou as mãos: “O evento está sendo organizado pelo CNMP. Sua demanda, portanto, deve ser direcionada ao órgão.”
No Conselho Nacional do Ministério Público, o BLOG foi encaminhado para a Comissão de Segurança Pública do Conselho Nacional do Ministério Público, da qual recebemos a seguinte explicação:
Temos a informar que:
O evento “Encontro Técnico Segurança Pública: desafio no século XXI” tem o intuito de reunir representantes de diversas esferas governamentais e civis envolvidas com segurança pública para debater essa importante frente de trabalho que também envolve o Ministério Público.
A participação de representantes dos governos federal e estadual no Rio de Janeiro, além do presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, tem justamente o objetivo de engajar todos os atores públicos nesse debate que busca caminhos para o enfrentamento da criminalidade de forma integrada e interinstitucional.
O MP brasileiro, a academia – por meio da Fundação Getúlio Vargas, e a sociedade civil organizada – representada pelo Instituto Igarapé, também se farão presentes no evento e estão entre os palestrantes do seminário.
Uma das missões institucionais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é orientar e fiscalizar a atuação do Ministério Público brasileiro. Nesse sentido, o Conselho dispõe de uma comissão especializada em segurança pública, com membros auxiliares e colaboradores com experiência de atuação nessa área.
Entendemos que pensar e atuar em busca da segurança pública para a sociedade é um caminho que se percorre de forma integrada e interinstitucional.
CNMP – Comissão do Sistema Prisional Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública.
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