Ao admitirem, casuisticamente, que os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), poderão ser reeleitos, os cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que assim votaram estão, a um só tempo, não apenas estuprando a Constituição Federal (tal qual advertiu Helena Chagas em recente artigo) que deveriam fazer respeitar, mas também usurpando um poder que não lhes foi dado. Como se não bastasse, oferecem a Jair Bolsonaro e sua trupe argumentos para alegarem que não são eles – ou apenas eles – aqueles que colocam em risco o Estado Democrático de Direito.
Ao buscarem mirabolantes interpretações para, oportunisticamente, atenderem interesses políticos do momento, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Kassio Nunes Marques parecem ignorar que a Constituição Cidadã – que, repita-se, por dever de ofício eles devem respeitar e fazer respeitar, jamais modificá-la – foi fruto de uma ampla mobilização nacional.
Modificar os artigos que não foram caracterizados como cláusula pétrea – como o Parágrafo 4º do artigo 57 que tentam reinterpretar -, até é possível. Não, porém, no plenário do STF. Dependerá da aprovação de três quintos (60%) dos atuais congressistas (ou seja, 308 deputados e 49 senadores). Jamais por apenas cinco cabeças que se sentem coroadas, mas nunca receberam um voto sequer dos eleitores brasileiros.
Em tempo, uma atualização: Na noite de domingo, 06/12, os três ministros que faltavam votar – Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux – apresentaram seus votos que , como os de Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e Cármen Lúcia, foram contrários à possibilidade de reeleição dos atuais presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Estes seis, portanto, mantiveram o que a Constituição expressamente determina. Esta reportagem, porém, continua tendo validade na medida em que demonstra com os demais ministros tentaram burlar a Carta Magna
Estes cinco ministros do STF deviam ter claro que a atual Constituição levou às urnas, no sábado 15 de novembro de 1986, nada menos do que 69.166.810 de brasileiros – entre os quais, pela primeira vez, os autointitulados analfabetos, até então alijados do processo eleitoral. Foram definir os 487 deputados federais e 49 senadores (aos quais juntaram-se 23 eleitos em 1982) que, a partir de fevereiro de 1987, assumiram a tarefa de, durante 21 meses, debaterem e promulgarem aquela que se tornou a Constituição Cidadã. Nem eles, porém, decidiram sozinhos. Estavam sujeitos a pressões da própria sociedade.
Na realidade, a instalação do Congresso Constituinte foi o que se pode afirmar de etapa final de uma ampla mobilização da sociedade em torno da nova Carta Magna brasileira, que buscou enterrar de vez os 21 anos de ditadura militar que sufocaram o país. Uma mobilização incentivada, em 1985, pelo então presidente eleito Tancredo Neves, antes de cair doente.
Como bem demonstrou a historiadora Maria Helena Versiani, assessora de Pesquisa História do Museu da República no artigo Uma República na Constituinte (1985-1988), publicado na Revista Brasileira de História (vol.30 nº.60 – São Paulo, 2010), antes e durante os debates dos congressistas constituintes, houve uma intensa participação da sociedade, de forma mais variada possível. Inclusive com 122 “emendas populares”, cada uma delas subscrita por, no mínimo, 30 mil cidadãos brasileiros, além do referendo de, ao menos, três entidades da sociedade civil. Algo muito intenso para, três décadas depois, ser modificado por apenas cinco cabeças que se acham coroadas, trancadas em suas casas nesse momento de home office, sem qualquer espécie de debate.
Houvesse um pouco mais de preocupação dos ministros do STF em torno do texto constitucional, descobririam que o parágrafo que tentam interpretar da forma inversa de como aparece na Carta Magna – ou, como diz a ministra Rosa Weber em seu voto, “vislumbrar indevidamente, em cláusula de vedação, uma cláusula autorizadora” -, foi uma imposição de ninguém menos do que o próprio presidente do Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães. Ele tentou evitar exatamente o que alguns desses ministros hoje admitem: a perpetuação de políticos na presidência do Legislativo.
Tal como lembrou Nelson Jobim, que aos 74 anos leva na sua bagagem experiências no Executivo (ministro nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff), no Judiciário (foi presidente do STF entre 2004/06) e no Legislativo, inclusive como um dos constituintes.
Em entrevista a Tânia Monteiro, de O Estado de S.Paulo – Ex-ministro, Nelson Jobim se diz ‘perplexo’ com discussão sobre reeleição de Maia e Alcolumbre -, explicou a preocupação de Guimarães, por muitos considerado “pai da Constituição”: “A decisão do ‘Doutor Ulysses’ era para evitar a perpetuação de presidentes”.
O também ex-deputado constituinte Miro Teixeira recorda até os argumentos usados por Guimarães para impor o parágrafo que impede a reeleição sucessiva às mesas do Congresso Nacional: “Não passarei o resto da minha vida provando que não fiz uma regra para me beneficiar dela”. Bastante prestigiado por seu papel no comando da Constituinte, Guimarães não admitia a hipótese defendida por vários dos seus pares de ser reconduzido à presidência da Câmara.
A perpetuação de que falava Guimarães, como se verifica, é o que almeja conquistar o atual presidente da Câmara, Maia – ele próprio, filho do ex-deputado constituinte César Maia. Afinal, há quatro anos e seis meses ele ocupa a cadeira e a residência oficial da presidência da Câmara.
Foi eleito em julho de 2016 após a renúncia do então presidente Eduardo Cunha. A partir do entendimento de que exercera um mandato tampão, admitiram sua reeleição em 1 de fevereiro de 2017, dentro da mesma legislatura (55ª). Já em fevereiro de 2019 sua reeleição no cargo foi respaldada no entendimento de que se iniciava uma nova legislatura, a 56º, a atual, que se encerrará em fevereiro de 2023.
O entendimento de que a mudança de legislatura permite a reeleição imediatamente subsequente no mesmo cargo foi adotada em 1999, quando Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) e Michel Temer (PMDB-SP) conseguiram um segundo mandato consecutivo para comandar, respectivamente, o Senado e a Câmara.
Em 2012 houve então a mudança nos Regimentos Internos das duas casas. Incorporaram o texto autorizando a reeleição em legislaturas diferentes: “Não se considera recondução a eleição para o mesmo cargo em legislaturas diferentes, ainda que sucessivas.”
Contra esse enxerto nos Regimentos Internos é que se voltou o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Roberto Jefferson – um aliado de Jair Bolsonaro, que deseja afastar Maia da presidência da Câmara – através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.524, que está sendo julgada pelo plenário virtual do STF.
O relator da ADI, ministro Mendes, em uma interpretação favorável a Maia e a Alcolumbre, estipulou que o Legislativo, internamente, poderá decidir a questão, mas ressalvou que “o limite de uma única reeleição ou recondução, acima veiculado, deve orientar a formação das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a partir da próxima legislatura, resguardando-se, para aquela que se encontra em curso, a possibilidade de reeleição ou recondução , inclusive para o mesmo cargo.”
Com isso, admitiu a reeleição dos dois, no que foi seguido pelos ministros Toffoli, Lewandowski e Moraes. Ou seja, a perpetuação no poder contra a qual Guimarães se voltou. Já Nunes Marques admitiu-a apenas ao presidente do Senado, uma vez que Maia já foi reeleito.
O ministro Marco Aurélio Mello, ao inaugurar a divergência com relação à posição do relator, foi explícito em seu voto, inclusive afastando a possibilidade de reeleição quando sucessiva, ainda que em legislaturas diferentes. Ele expôs no seu voto:
“Indaga-se: o § 4º do artigo 57 da Lei Maior enseja interpretações diversas? Não. É categórico. A parte final veda, de forma peremptória, sem o estabelecimento de qualquer distinção, sem, portanto, albergar – o que seria um drible – a recondução para o mesmo cargo na eleição imediata.
O vocábulo tem sentido único: o de inviabilizar que aquele que exerceu o mandato, aquele que esteve na Mesa Diretora, concorra ao subsequente. A interpretação é conducente à conclusão de ser possível, a quem já foi Presidente de uma das Casas, voltar ao cargo, desde que em mandato intercalado“.
Mais adiante, deixou claro que o preceito constitucional não diferencia legislaturas para permitir reeleições consecutivas:
“Improcede a distinção ante a legislatura, porquanto, a partir do momento em que se tem a coincidência do primeiro mandato com o segundo biênio da legislatura, chega-se ao afastamento do disposto no §4º do artigo 57, e, aí, ausente a quebra da sucessividade quanto à recondução dos integrantes da Mesa, e ocorrida a reeleição para a Casa do Congresso, viável será sempre a recondução.”
Ao acompanhar a divergência, o voto da ministra Rosa Weber foi na mesma toada, rejeitando, inclusive, a reeleição mesmo em legislaturas diferentes:
“De todo inviável, diante da literalidade do texto transcrito, compreender “permitido” onde a Constituição consigna “vedado”. Não há alternativa: “vedada a recondução” significa que os congressistas integrantes da Mesa na condição de membros eleitos não podem ser conduzidos novamente, na eleição imediata, ao mesmo cargo. A limitação diz com o período imediatamente subsequente, seja na mesma legislatura ou na seguinte, no mínimo, quanto ao ponto, à falta de qualquer distinção pelo constituinte originário. A recondução dos integrantes da Mesa, na eleição consecutiva, aos mesmos cargos por eles já ocupados inequivocamente configura reeleição (ocorra na mesma legislatura ou não, repito). E reeleição vedada, de maneira clara e objetiva pelo texto constitucional.
Neste domingo (06/12) o julgamento está com cinco votos a favor da reeleição de Alcolumbre e três contrários. Já em relação a Maia, há um empate de quatro votos a favor e contra sua reeleição. Faltam os votos de Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, que poderão ser dados até dia 14. Há a possibilidade remota de algum dos três pedir “preferência” para que o debate saia do plenário virtual e passe ao plenário, por meio de vídeo conferência.
Caso isso não aconteça, caberá aos três impedir que o Supremo configure o que Helena Chagas classificou de “estupro da Constituição”, autorizando uma reeleição que a Carta Magna veda. Devem levar em conta que fiscalizar o cumprimento da Constituição não lhes dá o direito de modificá-la a bel prazer, de acordo com as conveniências políticas pessoais, ignorando o que 559 parlamentares eleitos pelo voto de mais de 69 milhões de brasileiros decidiram em outubro de 1988.
Do contrário, estarão se igualando aos bolsonaristas.
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