A definição que serve de título desta reportagem, é de Frei Betto, que dispensa apresentações. É assim que ele chama o “gaúcho de nascimento, mineiro de coração (arrebatado por Lúcia Ribeiro, juiz-forana) e carioca por adoção”, Luiz Alberto Gómez de Souza que nesta terça-feira (27 de outubro) estará lançando seu livro de memórias, “Um andarilho entre duas fidelidades: religião e sociedade“.
Diz ainda Frei Betto sobre o livro de Gómez Souza, um Doutor em Sociologia: Institut d’Hautes Études pour l’Amérique Latine – Paris III (Sorbonne Nouvelle), Paris, 1979:
“Em tempos de magras esperanças e gordas desilusões, soa como uma boa nova este relato autobiográfico de Luiz Alberto Gómez de Souza.
Homem de muitas fidelidades, ele se destaca no panteão de minhas admirações como exemplo de militante incansável e, na expressão de Gramsci, “intelectual orgânico” movido por profunda fé cristã e a utopia evangélica da conquista de um mundo no qual “todos tenham vida e vida em plenitude” (João 10, 10).
Conheci-o no início da década de 1960, quando nós dois integramos a direção nacional da Ação Católica Brasileira. E há décadas somos parceiros no Grupo Emaús, que reúne cristãos afinados com os pressupostos da Teologia da Libertação.
Embora Luiz Alberto seja um consagrado intelectual, este não é um livro “acadêmico”. Trata-se de um memorial que abrange épocas históricas cujos episódios emblemáticos tiveram a participação do autor (…)
A leitura desses episódios marcantes de nossa história recente, através dos passos de Luiz Alberto, é um convite para acreditarmos que não estamos sós na busca de outros mundos possíveis. Ao autor se juntam tantas pessoas combativas, como Dom Helder Camara, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) e Betinho (Herbert de Souza), cujos retratos ele tão bem descreve, com exímio talento literário, ao final deste livro.”
Gómez Souza ainda nos presenteia no capítulo “Retratos” com poemas e textos que homenageiam sua querida Lúcia;, Dom Hélder, irmão dos pobres; Ernani Maria Fiori; Gustavo Gutiérrez; Betinho e sua geração; Alceu de Amoroso Lima e suas conversões; Mario Pedrosa; Richard Shaull; Henryane de Chaponay; e Candido Mendes, o homem que vê antes.
Abaixo algumas das recordações eu Gómez trás em seu livro:
“Quatro de abril de 1964. Situação tensa, poucos dias depois do golpe. Chamam-me à noite para informar que um colega da Ação Popular (AP) tinha sido preso. “Que fazer?”, perguntava no telefone sua noiva, aflita. Eu não podia fazer nada, estando possivelmente também na mira da repressão. “Fala com teu pai”, respondi, pois se tratava de deputado que apoiava os militares. Foi quando resolvemos levar as crianças para a família da Lucia em Juiz de Fora. Fui cair na ratoeira da operação “Arrastão”. Afinal, dali partira o golpe com o general Mourão Filho, autodenominado “Vaca Sagrada”. Chegamos na madrugada do dia 5. Detectaram nossos passos, mas respeitaram o fato de viajar com duas crianças. Entretanto, bem cedinho, vieram buscar-me. Meu sogro, com posições políticas diferentes das minhas, mas afetuosamente solidário, acompanhou-me à região militar, onde foi recebido com muita cortesia, tratando-se de pessoa conhecida e respeitada na cidade. Mal ele se retirou, porém, fechou-se o semblante do major Alencar, do estado-maior da 4ª Região Militar.
Abriu uma gaveta e dali tirou um cassetete no qual estava escrito: “diálogo”. “Vamos dialogar”, indicou.
No entanto, em vez disso, não sabendo ao certo o que perguntar, encaminhou-me para uma sala onde se amontoavam outros detidos. Até hoje, a palavra “diálogo” me traz agridoces recordações. Na ocasião, não foi tão divertido assim. A memória coloca filtros.
Outro cenário, meses depois, no Ministério da Educação. Em 1963, eu trabalhava numa sala contígua ao gabinete do ministro Paulo de Tarso dos Santos, quando este, que já despachava em Brasília, vinha ao Rio. Atrás da minha mesa havia um belo quadro de Guignard, As gêmeas. No segundo semestre de 1964, fui chamado ao segundo andar e encontrei-me na mesma sala, só que meu lugar estava ocupado por um militar encarregado de um Inquérito Policial Militar (IPM) e com a missão de realizar uma varredura no ministério. E eu me sentei numa incômoda cadeira do outro lado da mesa, de frente para a tela de Guignard. Invertiam-se os papéis. Veio uma primeira pergunta:
“Você é socialista?” Resolvi apelar para meu mestre Emmanuel Mounier, com sua opção por um personalismo comunitário, e respondi: “Sou personalista.” O inquisidor deu um murro na mesa e gritou: “Isso não existe.”
Samuel Silva Gotay conta o fato na abertura de seu livro El pensamiento cristiano revolucionario en América Latina y el Caribe (1981), dando uma interpretação errônea, como se eu tivesse medo de declarar-me socialista. Era mais bem um subterfúgio a que tínhamos que recorrer na ocasião, nessa corrida de gato e rato. Marcio Moreira Alves também relata o ocorrido no livro sobre os cristãos nos tempos do golpe (O cristo do povo, 1968).
Um último fato daqueles tempos. Consegui uma licença de saúde no ministério, em outubro de 1964, para atender a um convite de minha saudosa amiga Caroline Pezzullo, ex-dirigente da Juventude Operária Católica dos Estados Unidos, diretora da Commission for International Development (CID), que ela criara para intercâmbios da América Latina com os Estados Unidos. Fui, no começo de novembro de 1964, visitar universidades, especialmente centros de estudos latino-americanos, e ali dar detalhes sobre o golpe. Julgava passar despercebido, mas soube depois que minha viagem tinha sido detectada e vigiada de perto pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), criado pouco antes. Era ingênuo na ocasião, como tanta gente de esquerda. Estávamos mais acompanhados do que pensávamos. Eu estava visitando uma das muitas universidades americanas, creio que em Ann Arbor, viajando num ônibus que percorria o campus.
Eis que entra, em algazarra, um bando de mulheres, que descobri logo serem brasileiras da Camde (Campanha das Mulheres pela Democracia), as marchadeiras que pediam o golpe e que ali estavam para a mesma missão, só que de sentido contrário. Fui para o final do veículo e fiquei quieto.
Uma das mulheres da comitiva senta ao meu lado, olha-me intensamente e lança a pergunta: “Você não é o marido da Lucia Assis? Eu estive no seu casamento.” Levantei-me o mais rápido que pude e desci na primeira parada. Até hoje não sei de quem se tratava, mas pude sentir como o mundo é pequeno e não passamos despercebidos.
São recordações do tempo do golpe, que me pegou com 28 anos, no começo talvez de uma carreira política interrompida. Lembraria esses e outros fatos anos mais tarde, no Chile, dia 11 de setembro de 1973, em novo golpe militar. Voltaram, curiosamente, em Nova York, em outro 11 de setembro de 2001, também terça-feira, 28 anos depois, quando um milênio se fechava e um novo século era inaugurado. Não quero com isso dizer que só ficaram as lembranças azedas. Pelo contrário, tenho uma curiosa tendência de ocultar estas e de lembrar aquelas positivas. Mas quis começar por esses três fatos, para que o leitor pudesse ver como nossa vida é determinada por acontecimentos que vão além de nossas pobres vontades”.
Livraria da Travessa, Ponteio Edições e Educam convidam para o lançamento
27 de outubro, terça-feira, 19 horas.
Local: Livraria da Travessa
Rua Visconde de Pirajá, 572 – Ipanema