Apesar de o presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo), desembargador Reis Friede, ter suspendido, na terça-feira à tarde, a liminar do juiz federal Márcio Santoro Rocha, da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias (RJ), tornando sem efeito a decisão do presidente Jair Bolsonaro que autorizava o funcionamento de lotéricas e templos religiosos, as igrejas continuam impedidas de serem abertas.
Na mesma data em que Friede suspendeu a decisão do juiz de Caxias, em Brasília, o juiz Manoel Pedro Martins de Castro Filho, da 6ª Vara Federal, em decisão liminar também suspendeu a eficácia dos efeitos do inciso XXXIX do artigo 3º do Decreto no 10.282/2020. É o inciso que classificou como essencial as “atividades religiosas de qualquer natureza”. Como o TRF-2 não tem jurisdição sobre a Seção Judiciária Federal de Brasília, a liminar de Castro Filho continua valendo. Ou seja, templos religiosos estão impedidos de funcionar.
Na Ação Civil Pública nº 1017648-92.2020.4.01.3400 apresentada pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal, o juiz Castro Filho inicialmente determinou que a União adote “as medidas necessárias, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a fim de impedir que “atividades religiosas de qualquer natureza” permaneçam incluídas no rol de atividades e serviços essenciais para fins de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”.
Ao mesmo tempo, porém, determinou “a suspensão da eficácia do inciso XXXIX do artigo 3º do Decreto no 10.282/2020, na sua redação atual, eis que seu teor não se coaduna com a gravíssima situação de calamidade pública decorrente da pandemia que impõe a reunião de esforços e sacrifícios coordenados do Poder Público e de toda a sociedade brasileira para garantir, a todos, a efetividade dos direitos fundamentais à vida e à saúde”. O que passou a valer.
No Rio, através de um Agravo, o procurador regional da República André Terrigno Barbeitas recorreu ao presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES), desembargador Reis Friede, pedindo a reconsideração da decisão de terça-feira (31/03). Na ocasião, o desembargador suspendeu a liminar expedida pelo juízo da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias (RJ) que ao mesmo tempo anulou não só a abertura de igrejas como a de lotéricas, também previstas no decreto de Bolsonaro.
Caso o presidente do TRFR-2 não aceite revisar sua decisão, Barbeitas quer seu pedido julgado no Órgão Especial da corte, composto por 14 magistrados mais antigos. O procurador regional, tal como seu colega Paulo Fernando Correa já havia se manifestado no pedido de suspensão feito pela Advocacia Geral da União (AGU), defende uma modulação na decisão do juiz Santoro Rocha.
Para o Ministério Público Federal é possível “autorizar o funcionamento das casas lotéricas, limitando suas atividades unicamente àquelas que prestam serviço como braço bancário da Caixa Econômica Federal, vedando expressamente a comercialização de todo e qualquer jogo ou aposta, determinando-se, outrossim, a estrita observância do distanciamento mínimo entre as pessoas”.
Na Ação Civil Pública impetrada em Caxias pelo procurador Júlio José de Araújo Júnior foram dois os argumentos usados. Ambos desprezados pelo desembargador. Assim como em Brasília, Araújo Júnior sustentou que a liberação da abertura das igrejas colide com a necessidade do isolamento social para fazer frente à propagação do coronavírus. Tese referendada pelos seus dois colegas junto ao TRF-2. No Agravo, Barbeitas expõe:
“Ao deferir o pleito formulado pela União Federal (…) a Presidência dessa Corte acabou criando periculum in mora inverso a afetar mais ainda grande contingente de pessoas (…) sendo certo que o Decreto em foco coloca em risco a eficácia das medidas de isolamento e achatamento de curva de casos da COVID-19, que são fatos notórios e amplamente noticiados pela imprensa”.
Reforça ainda que “tais medidas são fundamentais para que o Sistema de Saúde – público e privado – não entre em colapso, com imprevisível extensão das consequências trágicas a que isso possa levar”. E insiste nos argumentos usados por seus colegas, de que o “acesso às igrejas, templos religiosos e lotéricas estimula a aglomeração e circulação de pessoas, e não é por outra razão, inclusive, que medidas extremas foram tomadas mundo a fora, inclusive com a realização compulsória de atos de cremação de cadáveres sem a presença de familiares e amigos”.
Barbeitas, tal como Correa, apelou até mesmo para o mais significativo dos exemplos, vindo do Papa Francisco: “O exemplo maior da necessária observância dessa regra de caráter mundial é a emocionante missa papal celebrada semana passada, em uma Praça São Pedro deserta. Levar pessoas para dentro de um recinto fechado, ainda que limitada fosse a capacidade do templo ou do espaço, seria expô-las ao risco de se contaminar com o vírus, fato que se busca desesperadamente evitar, ao menos neste momento em que se busca o achatamento da curva da doença”. Em seguida reforçou:
“Em suma, não se afigura razoável em plena pandemia — onde é sumamente desaconselhável a aglomeração de pessoas —- reputar os cultos religiosos presenciais como atividade essencial e, como tal, imune ao isolamento!”
O segundo argumento sustentado pelo Ministério Público Federal do Rio é que o decreto de Bolsonaro não tem força jurídica para modificar a Lei nº 7.783/1989, que estipulou as categorias essenciais. A Lei versava sobre o direito de greve. Como decisão aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente, na época José Sarney, uma lei não pode ser modificada – mesmo que para acréscimo – por um mero decreto presidencial. No Agravo, Barbeitas registra:
“(…) sendo certa ainda A TOTAL ILEGALIDADE DO DISPOSTO NO DECRETO EM EXAME, NOTADAMENTE QUANTO à definição de atividades essenciais das ATIVIDADES DE CULTOS RELIGIOSOS EM TEMPLOS (E DECORRENTES AGLOMERAÇÕES) e a abertura dos “canais lotéricos” para todas as suas finalidades nas CASAS LOTÉRICAS fora das hipóteses ressalvadas na manifestação ministerial do Ev. 02, eis que a definição de serviços ou atividades essenciais depende de Lei, sendo que a Lei nº 7.783/1989 é um parâmetro normativo nessa definição. Diante da reserva legal, nova previsão de serviços e atividades essenciais deveria ter sido inserida na própria Lei, e não submetida ao poder regulamentar”. (grifos do original).
Como lembrou Barbeitas nesse seu recurso, “o Decreto é ato normativo secundário, de natureza regulamentar infralegal, que deve, portanto, obediência plena à Lei que lhe é superior, cabendo somente a esta impor obrigações e deveres de caráter geral (art. 5º, caput, da CF). Ou seja, o Decreto 10.292/2020 ao inserir “atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde” (XXXIX) e “unidades lotéricas” (XL) como atividades essenciais o fez em contrariedade ao disposto na Lei nº 7.783/1989.”
]Na medida em que a Lei de 1989 considerou como serviço essencial a chamada compensação bancária, os procuradores da República no Rio entenderam ser possível admitir que as Casas Lotéricas, desde que funcionando como braço do sistema bancário – o que não admite a venda de jogos – possam ser inseridas como essenciais. Defenderam, portanto, a modulação na decisão do juiz de primeira instância.
Até que o recurso seja apreciado – quer pelo presidente do TRF-2, por meio de revisão, quer pelo Órgão Especial – a suspensão da liminar fica valendo. Logo as lotéricas podem funcionar plenamente. Mas as Igrejas, por conta da decisão do magistrado de Brasília, terão que ficar fechadas. A não ser que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao qual se subordina a seção Judiciária federal da capital, reveja a decisão.
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