Entre a ordem superior, de um governo ilegítimo – diga-se – e o respeito à Constituição, leis em normas técnicas, teoricamente se deveria optar pela Constituição.
Aparentemente é isto o que diz o Memorando Circular nº 61 da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho (MTb) emitido na tarde do dia 16, em oposição à malfadada Portaria nº 1.129.
Assinada dia 13 pelo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, ela foi estrategicamente divulgada na segunda-feira (16/10).
O Memorando 61 da SIT/MTb, porém, segundo experiente auditor que dedica sua vida ao combate ao trabalho escravo, é um papel para inglês ver. Um faz de conta. Pode não passar de uma tentativa de amenizar a situação e deixar o caso cair no esquecimento. Afinal, como diz o auditor no qual o Blog confia plenamente por ser testemunha do seu trabalho, “como iremos ignorar a Portaria Ministerial? Se é para não ser seguida, que a revoguem. O que querem é distrair as atenções”.
A prevalecer a Portaria. o governo Temer viverá mais um escândalo internacional. Tal como ocorreu ao tentar extinguir a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca). No caso da Renca, a pressão interna e externa foi tanta que o presidente golpista e mal visto por todos abandonou a ideia um mês depois de assinar o primeiro decreto liberando a área à sanha das mineradoras. A tendência da pressão internacional no caso da fiscalização ao trabalho escravo é real. Não será estranho, inclusive, se uma censura, ainda que de forma diplomática ou, quem sabe, como se fosse uma oração, partir do Papa Francisco.
Mas, em uma hipótese que deve ser considera em se tratando do grupo que se aboletou no poder e dele não quer sair, pode estar em trama um jogo maquiavélico. A Portaria foi editada em surdina e veio ao conhecimento público -estrategicamente, como dissemos – às vésperas de a Câmara decidir o futuro da denúncia contra o presidente. Ela atende os anseios da bancada ruralista. Quem garante que, após obter os votos destes deputados, o governo golpista não irá, invocando a pressão popular e possivelmente externa, dar o feito por não feito?
Na canetada de um ministro, sem a participação da chamada área técnica, modificou-se a forma como os auditores do trabalho fiscalizam e autuam a exploração da mão de obra por meio degradantes, considerada análoga ao escravagismo. Foi uma jogada de um governo ilegítimo e impopular para agradar a um nicho da sociedade.
Uma tentativa do presidente se safar da segunda denúncia pelos supostos crimes que cometeu. Mas, é um agrado perfeito aos barões da agricultura brasileira que ainda não se convenceram do fim da escravidão.
Agrado que se torna óbvio na satisfação do ministro da Agricultura, o agropecuarista Blairo Maggi. Em nota de apoio, diz que “ninguém quer ou deve ser favorável ao trabalho escravo, mas ser penalizado por questões ideológicas ou porque o fiscal está de mau humor não é justo. Parabéns presidente Michel Temer. Parabéns ao ministro (do Trabalho) Ronaldo Nogueira“.
Trabalho escravo, ministro, não é questão ideológica. É fato concreto. Exploração do homem pelo homem, ou, talvez, do homem pela fera capitalista que só visa o lucro.
Constatá-lo e autuá-lo não depende do bom ou do mau humor de um auditor, mas sim da disposição política de um governo. Os auditores do trabalho já demonstraram que eles querem e sabem fazer este trabalho. Mais ainda, mostraram a coragem em muitas vezes enfrentar a jagunçada destes donos de terra.
Mas, o governo ilegítimo de Temer, que recebe o apoio dos agronegócio, não tem disposição política nem vontade real de atingir estes senhores feudais, seus aliados.
No Memorando Circular nº 61, que sequer foi assinado pela secretária de Inspeção do Trabalho, a auditora Maria Tereza Jansen, mas por seu substituto, João Paulo Ferreira Machado, a instrução é de que os auditores continuarem agindo como vinham fazendo.
Ou seja, permaneçam respaldando a fiscalização na Instrução Normativa nº 91/2011. Esta, legitimamente esmiúça o que realmente é trabalho análogo à escravidão, respeitando o que preceitua o artigo 149 do Código Penal.
Uma das principais ilegalidades da Portaria 1.129 é justamente modificar o conceito de trabalho análogo à escravidão que está no Código Penal.
O Memorando diz que a secretaria “está analisando o teor e alcance da nova Portaria sendo possível esclarecer, de plano, que foram detectados vícios técnicos e jurídicos na conceituação e regulação do tema que pretende disciplinar, bem como aspectos que atentam contra normativos superiores à Portaria, tais como a Constituição da República Federativa do Brasil, a Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho e o Código Penal, entre outros“.
Fala ainda que “de grandeza tal o conjunto de dificuldades que já se exsurge da mencionada Portaria, que a SIT pleiteará sua revogação“. Parte, então para o aconselhamento aos auditores do trabalho no sentido de manterem, “por ora, as práticas conduzidas pelos normativos que até então regulam a fiscalização para a erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo, notadamente a Instrução Normativa nº 91, de 5 de outubro de 2011 e a Portaria Interministerial nº 04/2016“.
Na prática, segundo o auditor que o Blog ouviu, isso não acontecerá. Ninguém irá descumprir a Portaria, ainda que a tentação e a vontade para isso exista.
“Isso é um abrandamento da situação por parte da secretaria de Inspeção do Trabalho. Mas quem assinou a portaria foi o ministro, logo, a secretaria não tem poderes para revogá-la. O apelo é no sentido de revogar. Se não revogar, ele e o país ficarão muito mal no plano internacional. Ela (a portaria) está confrontando tudo o que é compromisso que o país assumiu internacionalmente frente a outros entes que mantêm uma legislação cidadã. Uma legislação do trabalho com garantias e valorização social do trabalho”.
O auditor continua na sua análise:
“Essa nova linha de pensar discriminada na Portaria publicada no dia 16, avilta o ser humano e é tão licenciosa a ponto de restringir o conceito de trabalho escravo aos casos em que a liberdade de ir e vir fica comprometida ou quando for encontrado uso ostensivo de armamentos. Estas eram práticas antigas, corriqueiras no passado, que encontrávamos nas inspeções entre 1995 (quando começamos o trabalho) até, mais ou menos, 2004. Hoje isso já não é comum. As práticas atuais são outras e a Portaria as ignora. Além disso, o que é pior, a Portaria condiciona a atuação dos auditores do trabalho a um Boletim de Ocorrência policial. Acaba criando um monopólio na autuação que qualquer livro de direito penal repudia. A Constituição garante aos auditores do trabalho o exercício de sua competência, natural independentemente da presença policial. A participação da polícia ajuda, mas nossa atuação não pode lhe ser condicionada”.
Pressão começou – Desde segunda-feira (16), estão reunidos no campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na X Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, 42 professores e pesquisadores de diversas áreas de conhecimento, provenientes de 14 estados do Brasil, um pesquisador italiano, de Padova, um professor no México, alguns procuradores do trabalho e juízes do trabalho, uma representação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e ainda a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA . Deste fórum partiu a dura nota exposta acima no quadro.
O encontro termina nesta quarta-feira (18) com a presença da Secretária Nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan. Certamente ela ouvirá o que quer e o que não quer a respeito do assunto. Aliás, ela mesma já condenou a Portaria, o que prova que mesmo dentro do governo ilegítimo eles não se entendem.
Também a Procuradoria Geral da República em conjunto com a Procuradoria do Trabalho, na tarde desta terça-feira, expediu recomendação ao ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, pela sua imediata revogação.
O entendimento dos dois órgãos é de que a portaria é ilegal por contrariar o artigo 149 do Código Penal. A recomendação é ampla. Lembra, por exemplo, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos “deixa claro que a ocorrência da escravidão dos dias atuais prescinde da limitação da liberdade de locomoção, evidenciando-se quando um homem exerce sobre o seu semelhante, direta ou indiretamente, um dos denominados ‘atributos do direito de propriedade’”.
Na Portaria do ministro Nogueira, o conceito de trabalho análogo à escravidão fica totalmente limitado, como expôs o auditor do trabalho acima. Isso também sobressai na Recomendação dos dois Ministérios Públicos, como registrado na Recomendação (veja integra abaixo):
“A Portaria nº 1.129, de 13 de outubro de 2017 é manifestamente ilegal, porquanto contraria frontalmente o que prevê o art. 149 do Código Penal e as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, ao condicionar a caracterização do trabalho escravo contemporâneo à restrição da liberdade de locomoção da vítima“.
Recomendação do MPF e do MPT ao Ministério do Trabalho
5 Comentários
Vc devia defender todos os SACANEADOS, nao so os do teu partido, seu JORNALISTA DE BOSTA
[…] Auler, em seu blog, levanta hoje a hipótese de que haja um conteúdo de encenação ou de, ao menos, um “se […]
Parabéns ao excelente jornalista Marcelo Auler!
Ainda há jornalistas sérios neste país.
Excelente reportagem, como de hábito.
A dúvida que fica é: sendo manifestamente inconstitucional e confrontando com o Art. 149 do CPP e Convenções 29 e 105 da OIT, as quais o Brasil se obrigou a cumprir, por que os auditores da Secretaria de Inspeção do Trabalho não poderiam se recusar a cumprir essa Portaria nº 1.129, assinada/baixada pelo MTb no dia 13 e outubro de 2017 e divulgada em 16 de outubro de 2017?
Uma portaria não pode se sobrepor a uma lei ordinária, muito menos ao que é estabelecido no CPP, ao que foi pactuado/convencionado pela OIT (a que o Brasil se obrigou cumprir). Ademais a flagrante inconstitucionalidade – considerada crime pela PGR – torna a Portaria nº 1.119 inválida e jurìdicamente nula. Se eu fosse auditor do Trabalho eu a ignoraria solenemente, atendo-me aos normativos anteriores no trabalho de inspeção e combate ao trabalho escravo.
Adendo ao comentário.
A edição e baixamento/publicação pode ser apenas um bode colocado na sala. É bom não esquecer que o traidor-golpista-usurpador-corrupto profissional-chefe de quadrilha, hoje ocupando a presidência da república, já atuou como professor de Direito Constitucional. Portanto a edição e publicação desa Portaria, cuja inconstitucionalidade é flagrante, configura crime doloso. Não ficarei surpreso se tal portaria for revogada tão logo a bancada ruralista garanta sobrevida a ‘MT’, rejeitando a 2ª denúncia contra ele apresentada pela PGR ao STF.