Apesar de, por tradição, os magistrados serem tratados com deferência especial, no sistema judiciário brasileiro não há hierarquia. Ou seja, juízes, advogados e promotores estão em pé de igualdade. Isto vale em todas as instâncias, do juiz de primeiro grau aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O que deve prevalecer no relacionamento entre eles é o respeito mútuo, a cordialidade. Como, de resto, deve ocorrer também em relação às partes, sejam vítimas ou réus, ainda que já condenados.
Teoricamente, ministros dos tribunais superiores, que deveriam ser escolhido entre os brasileiros com mais de 35 anos apenas pelo notório saber jurídico, teriam tudo para estarem hierarquicamente, em termos de conhecimento e prática, acima dos demais operadores do Direito nas entrâncias inferiores. Na prática, com a politização/partidarização das escolhas para preenchimento destes cargos, o que se verifica são exemplos negativos que acabam provocando não o respeito à possível superioridade pelo saber e acúmulo de experiências. Mas, sentimento de desprezo ou revolta, por atos, gestos e discursos totalmente incompatíveis com a função que exercem.
É o que acontece com Gilmar Mendes, ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com uma total falta de modesta e humildade, ele se posiciona acima de tudo e de todos, palpita sem que seja consultado, sente-se o dono da verdade, sem falar que no dia a dia, atropela as leis e a própria Constituição, que pela cadeira que ocupa na mais alta corte do país, tem por obrigação fazer respeitar. Tudo sem que seus pares considerem necessário frear seus ímpetos. Isto ficou claro nos dois mais recentes episódios que protagonizou.
Na segunda-feira, 03/04, falando a empresários reunidos pelo Lide (Grupo de Líderes Empresariais), em São José dos Campos (SP), no Vale do Paraíba, sobre os filtros existentes na escolha de ministros dos tribunais superiores – que, como notamos, nem sempre funcionam a contento – acabou, gratuitamente, atacando o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e classificando-o de um ‘laboratório do Partido dos Trabalhadores (PT) que conta com simpatizantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
“(…) ficou um pouco de lado o TST, o Tribunal Superior do Trabalho. Esqueceram-se dele. E foi o laboratório do PT. Foi aonde deu certo o laboratório. A vocação de ocupação de espaço, de aparelhamento, foi exitoso, exatamente, no âmbito do TST. Hoje, o Tribunal é composto por muitos simpatizantes ou indicados pela CUT. E nós temos um direito do trabalho engessado. O país com 13 milhões de desempregados e com sistema inflexível.”
Foi seu segunda ataque à Justiça do Trabalho. Provavelmente por não conseguir influenciá-la como gostaria. Em consequência, tornou-se alvo de diversas Notas Oficiais, algumas das quais tocaram em pontos chaves, para os quais ele, certamente, não terá defesa, como mostramos na postagem “Entidades denunciam partidarismo de Mendes“.
O seu engajamento político partidário é apenas um dos aspectos que ressalta de suas atitudes, gestos e palavras. Há questões mais graves justamente por serem exemplos claros de que, mesmo estando no tribunal encarregado de fazer cumprir e valer a Constituição, ele a atropela assim como às demais leis, em especial a Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman.
Na quarta-feira (05/04), por exemplo, diante de um questionamento de O Estado de S. Paulo sobre o conflito de relatar processos do interesse de entidades que financiam projetos do seu Instituto Brasileiro de Direito Público (IBDP) – Patrocinadores de evento de Gilmar têm ações no STF -, de pronto negou tal conflito. Contraditoriamente, porém, imediatamente optou por se dar por impedido no Recurso Extraordinário com Agravo 850.698, em que é parte a Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro. Já o deveria ter feito antes, ao menos desde agosto passado, quando entrou em vigor o novo Código de Processo Civil.
Afinal, a entidade, além de ser patrocinadora do 5º Seminário Luso-Brasileiro de Direito, realizado pelo IBDP, que acontecerá em Lisboa, é defendida pelo escritório de Sérgio Bermudes, onde trabalha Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima Mendes, esposa de Mendes. Curioso é que este Recurso deu ingresso no STF em novembro de 2014, mas só agora Mendes foi reconhecer seu impedimento, como mostra o andamento processual na ilustração ao lado. Ao decidir por se dar por impedido, ele fez consta dos autos:
“Diante da ampliação das hipóteses de impedimento do magistrado prescrito pelo Código de Processo Civil/2015, declaro o meu impedimento no presente processo, nos termos do art. 144 VIII do Código de processo Civil.”
Promulgado em março de 2015, o novo Código Civil – Lei nº 13.105/2015 – entrou em vigor um ano depois. O artigo 144 trata do impedimento dos juízes. Seu item VIII impede ao magistrado atuar em processos “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”. Por si só, antes mesmo do patrocínio da Fecomércio-RJ ao seminário do IBDP, este detalhe já seria causa de impedimento de Mendes em atuar em qualquer processo patrocinado pelo seu “amigo/irmão”, como definiu o próprio Sérgio Bermudes.
Isso, porém, não é tudo. No artigo 145 – dos casos de suspeição – há mais um motivo que deveria ter levado Mendes abandonar, desde a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, toda e qualquer ação de interesse do escritório de Bermudes. O item II, deste artigo, estipula a suspeição do juiz “que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo”.
Ao deixar a presidência do STF, em abril de 2010, “Mendes e Guiomar embarcaram em uma viagem de cinco dias a Buenos Aires – presente de Sergio Bermudes, que os acompanhou“, descreveu Luiz Maklouf Carvalho, na reportagem O Supremo, quosque tandem?, na Edição 48 (setembro de 2010) da Revista Piauí.
Da mesma reportagem tiro o trecho em que Maklouf relata como Mendes e Bermudes se aproximaram a ponto de o advogado considerá-lo um irmão, com quem fala duas vezes ao dia:
“Gilmar Mendes e Sergio Bermudes começaram pelo ódio. O primeiro, quando advogado-geral da União, chamou o segundo – renomado professor de direito e dono de respeitada banca cível no Rio – de “chicanista” em um programa de televisão. Bermudes é dos que mandam cartas. A que enviou a Mendes tinha os seguintes trechos:
Gilmar, você agrediu-me brutalmente; agrediu, virulentamente, os processualistas; agrediu os advogados brasileiros e conspurcou a dignidade do cargo que imerecidamente ocupa.
Insistindo em mostrar as patas, você, muito obviamente, questionou a minha seriedade profissional.
Minha esperança é que você deixe o cargo que ocupa e que não merece por causa do seu desequilíbrio, do seu destempero, da sua leviandade, e que abdique da sua propalada pretensão de alcançar o Supremo Tribunal Federal, onde se requer, mais que um curso no exterior, reflexão e serenidade, em vez do açodamento e da empáfia que você exibe.
Perguntei a Sergio Bermudes como se haviam reconciliado. “Nunca falamos sobre isso até hoje”, respondeu. Contou que no primeiro encontro que tiveram, ambos palestrantes de um simpósio universitário, cumprimentaram-se como se nada tivesse acontecido. Depois, ele mandou um livro de presente; e Mendes mandou-lhe outro. A raiva virou amizade”.
Curiosamente, Mendes acabou também patrocinando uma típica “chincana” processual já na condição de ministro do Supremo tribunal. Foi quando reteve, respaldado em um pedido de vista, por um ano e cinco meses, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.650, que questionava o financiamento empresarial de campanhas eleitorais. A ação estava praticamente aprovada por maioria de votos, mas ele ainda assim a reteve até o dia 10 de setembro de 2015. Devolveu-a ao plenário, um dia após a Câmara dos Deputados aprovar de forma definitiva, as doações de empresas a políticos. A manobra, porém, não deu o resultado esperado. No dia 19 de setembro, o STF concluiu a votação suspensa pelo pedido de Mendes, e por maioria de votos confirmou o impedimento do financiamento privado às campanhas eleitorais, contrariando o desejo de Mendes. Dias depois, em 29 de setembro, foi a vez da então presidente Dilma Rousseff vetar o projeto aprovado pelo Congresso.
A agressão que atingiu Bermudes no passado agora se volto contra a Justiça do Trabalho. Aparentemente, é uma agressão gratuita, de quem, ao contrário do que diz o Estatuto da OAB, citado na abertura desta matéria, se sente hierarquicamente superior. O grave é que com ela, mais uma vez o ministro do Supremo Tribunal Federal atropelou não só o tratamento “respeitoso e recíproco” de que fala o Estatuto, mas também a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Mas, talvez o que Mendes não esperasse, era a saraivada de críticas que recebeu de todos os lados, como estamos mostrando na postagem a seguir: Entidades denunciam partidarismo de Mendes.
3 Comentários
Melhor um Gilmar Mendes que assume publicamente que é partidário do que outros juizes que querem se passar por “imparciais ” do não vem ao caso…
Excelente matéria. A grande mídia deveria ter vergonha por se omitir diante de uma barbaridade dessas. Esse homem é tudo, menos juiz.
Senhora Marília Oliveira concordo plenamente com V.Sa.