No mesmo dia 10 em que assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux liberou para julgamento, “com o pedido de inclusão em pauta”, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6298, 6299 e 6300 e 6305. Nelas, as associações dos Magistrados Brasileiros – AMB e dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE (6298), o Partido Trabalhista Nacional – PNT (6299), o Partido Social Liberal – PSL (6300) e Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP (6305) questionam a constitucionalidade do chamado Juízo das Garantias. Criado pela Lei nº. 13.964/2019 aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro passado, esse novo personagem do judiciário brasileiro contrariou Sérgio Moro e os lavajatistas em geral.
O interesse público nesse julgamento pode ser medido pelo número de entidades e órgãos do judiciário que ingressaram com o pedido para funcionarem como amicus curiae (amigos da corte) nestas ações. Ao menos 14, entre os quais estão o Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (Anadep), o Ministério Público do Estado do Maranhão e ainda a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas ( Abracrim) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). Com posições divididas, eles querem defender suas teses pró e contra o Juízo das Garantias em sustentações orais no momento da apreciação da causa.
A decisão de Fux, embora possa parecer uma sinalização da proximidade do debate da questão no plenário do Supremo pelos onze ministro, soa a muitos no meio jurídico como uma “esperteza”. Ao disponibilizar a ADI para a pauta de julgamento do plenário da corte ele simplesmente retirou o processo das mãos do ex-presidente Toffoli, a quem caberá responder pelas as ações que até então estavam sob relatoria do agora presidente. Co esta medida, pode estar engavetando o processo. Afinal, a partir de agora, como presidente do STF, ele é quem controlará as pautas de julgamento, não existindo nada que determine o prazo em que levará o assunto ao debate.
Fux pode estar simplesmente evitando surpresas que lhes sejam desagradáveis. Poderá manter o caso na gaveta enquanto durar seu mandato na presidência (dois anos). Tal como fez na questão relacionada à discussão em torno do auxílio moradia pago a magistrados e membros dos ministérios públicos. Um debate que ele evitou por nada menos do que quatro anos. Só liberou o processo depois da negociação política no governo de Michel Temer que garantiu a incorporação do benefício aos salários.
São conhecidas as divergências entre Fux e Toffoli a respeito do Juízo das Garantias. Não apenas entre ele. Trata-se de uma inovação contra a qual se debateram, por exemplo, os lavajatistas, a começar pela chamada República de Curitiba. Em especial, o então ministro da Justiça, ex-juiz Sérgio Moro. Este se sentiu traído por Bolsonaro de quem esperava o veto do artigo que criou esse novo personagem no cenário jurídico nacional.
Certamente foi por saber das posições de Fux contrária ao Juízo das Garantias que Toffoli, em 15 de janeiro, quando respondia sozinho pelo STF durante o recesso, despachou nestas ADIs liminarmente. O fez sabendo que a relatoria delas, por sorteio, era de Fux. Este, então na vice-presidência, o substituiria no plantão cinco dias depois, a partir da segunda-feira, dia 20. Foi, como noticiamos no Blog, em 16 de janeiro – Juiz das Garantias: Toffoli puxa o tapete de Fux -, uma tentativa do então presidente garantir a execução daquilo que o Parlamento decidiu, o Executivo sancionou, mas Fux era contrário.
Na liminar, o então presidente até esticou o prazo para a implantação do Juízo das Garantias. Previsto na lei para se iniciar em 23 de janeiro, Toffoli, com o argumento da impossibilidade prática de implantar a mudança em tempo tão exíguo, adiou sua instalação por 180 dias. Prazo que culminaria no mês de julho. Data em que ele ainda ocupava a presidência do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Assim, pretendia pessoalmente cuidar de tal implantação.
Ao decidir, monocraticamente, nas ações distribuídas para relatoria do seu então vice-presidente, Toffoli antecipou-se. Quis demonstrar seu entendimento a respeito da constitucionalidade da lei. À época, outros ministros da corte, em conversas com jornalistas, também aprovavam a lei e esse novo personagem jurídico.
Na sua decisão, Toffoli fez questão de registrar seu entendimento de que a “Lei nº 13.964/2019 veio a reforçar o modelo de processo penal preconizado pela Constituição de 1988. Tal medida constitui um avanço sem precedentes em nosso processo penal, o qual tem, paulatinamente, caminhado para um reforço do modelo acusatório”.
Fux, dias depois, ao decidir suspender sine die a implantação desse novo personagem jurídico, demonstrou a discordância com a lei aprovada pelos congressistas. Na ementa da decisão cautelar que assinou ele fez constar: “O juiz das garantias, embora formalmente concebido pela lei como norma processual geral, altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em nível tal que enseja completa reorganização da justiça criminal do país, de sorte que inafastável considerar que os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria (Art. 96 da Constituição)”.
Alegou ainda a questão das despesas com a implantação do Juízo das Garantias – “especialmente com as necessárias reestruturações e redistribuições de recursos humanos e materiais, bem como com o incremento dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia da informação correlatas” – e a falta de previsão orçamentária para este gasto.
O questionamento sobre a constitucionalidade do que o Congresso aprovou também foi levantado ao afirmar que “os princípios da legalidade, do juiz natural e da razoabilidade restam violados pela proibição de o juiz que conheceu a prova declarada inadmissível proferir sentença. A ausência de elementos claros e objetivos para a seleção do juiz sentenciante permite eventual manipulação da escolha do órgão julgador, conduzindo à inconstitucionalidade a técnica eleita legislativamente”.
Posição que contraria o que disse a OAB na petição em que pede o ingresso como amicus curiae. Ali, a Ordem deixa claro que para ela “a figura do juiz de garantia é constitucional. Mais do que isso, é medida fundamental para assegurar a efetividade da garantia constitucional da imparcialidade do juiz, explicitamente assegurada na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de que o Brasil é signatário”.
Avançando, a petição assinada pelo presidente nacional da Ordem, Felipe Santa Cruz, e ainda pelo presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, Marcus Vinícius Furtado Coelho, afirma que o Juízo das Garantias, que já existe em ordenamentos jurídicos estrangeiros, tal como instituído pela Lei n. 13.964/2019, não viola qualquer dispositivo constitucional, até por não se tratar da criação de um novo órgão do Poder Judiciário Nacional, diversamente do que aponta a petição inicial da AMB.
Ao suspende a implantação destes Juízos, Fux falou em promover audiências públicas que acabaram inviabilizadas pela pandemia do coronavírus. Ficou evidente que o ministro queria rediscutir aquilo que o Congresso já debatera durante um longo tempo. Inclusive, com a participação de um colega de Fux no STF, o ministro Alexandre de Moraes, entre outros personagens jurídicos. Na liminar suspendendo os efeitos da lei, Fux expôs seu desejo de rediscutir a questão e alegou até a necessidade de participação “democrática” da sociedade:
“(…) entendo que, nesse momento preliminar, é prudente a suspensão ad cautelam dos dispositivos impugnados, permitindo-se o adequado colhimento de informações das autoridades interessadas, a ampla participação dos amicus curiae, e, oportunamente, a realização de audiências públicas para a democrática participação da sociedade civil nessa discussão sobre ponto que pode reestruturar por completo a justiça criminal do país, inclusive com a colheita de dados empíricos“.
Mas, com o home office nada pode ser feito. Apenas houve os pedidos de ingresso como amicus curiae. Como não conseguiu levar este debate para o Supremo, ao encaminhar o pedido de “pauta” para estas ADIs ele, na verdade, retira as ações das mãos do seu sucessor nos processos que relatava. Impede, desse jeito, qualquer medida futura de Toffoli a favor da aplicação de uma lei aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente.
Desta forma, ao contrário de nossas previsões nas matérias publicadas em janeiro, nem Toffoli conseguiu realmente puxar o tapete do seu então vice-presidente, como também não se concretizou a previsão de que Na queda de braço no STF, Fux poderá ser a vítima. Antes pelo contrário, na disputa interna na mais alta corte do país, Fux ganhou mais uma batalha. Para satisfação de Moro e dos lavajatistas que, pelo menos por enquanto, poderão continuar dizendo: ‘In Fux we trust‘.