“Qualquer coisa que se diga parecerá pequena e insuficiente para dizer quem foi D. Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo”. (Ricardo Kotscho em “Coragem!”, palavra de adeus do amigo D. Paulo, no Balaio do Kotscho).
A notícia da morte de dom Paulo Evaristo Arns, nesta quarta-feira (14/12), às 11h45, me pegou em um engarrafamento na Via Dutra, na entrada de Resende (sul fluminense). Não fossem compromissos inadiáveis no Rio, teria retornado e ido ao velório me despedir dele simbolicamente. Impossibilitado de fazê-lo, passei a lembrar dos meus momentos com ele. Não foram muitos, mas foram significativos. O conheci pessoalmente em 1977, quando Ziraldo e Jaguar bancaram minha ida a São Paulo para entrevistá-lo com os dois e outros para o Pasquim. A entrevista foi publicada na edição 434, (que circulou na semana de 21 a 17 de outubro de 1977).
Ao homenageá-lo por aqui, poderia seguir no lugar comum de todos e falar de atitudes e posições mais conhecidas dele como toda a imprensa tem feito. Não, não estive no Ato Ecumênico, em homenagem a Vladimir Herzog, assassinado pelos militares torturadores, em outubro de 1975. Na verdade, um grande Ato Político que os corajosos dom Paulo, ao lado de bispos que eram mais do que simples colegas, verdadeiros “irmãos”, entre os quais dom Hélder Câmara, do Recife, e de aliados que se tornaram também “irmãos”, apesar de abraçarem religiões diferentes, caso do rabino Henry Sobel e do pastor presbiteriano Jaime Wright, realizaram. Os três tornaram-se referência internacional na defesa dos direitos dos perseguidos pelas ditaduras militares de todo o cone Sul. Naquele Ato, outra figura de destaque foi Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, idealizador do ato em si. Juntos, desafiaram o poder militar que tentara impedir o encontro. Mas, dom Paulo, fez o que estava acostumado: abrir as portas da Igreja aos perseguidos e às vitimas da violência do Estado, da mesma forma como abria seu coração a todos, sem preconceitos. Como um verdadeiro e humilde Pastor.
Este lado humano e ao mesmo tempo religioso é que veio com força à minha memória, ao relembrar uma singela passagem minha com o então já famoso mundialmente dom Paulo. Foi no sábado, 1 de setembro de 1984, quando nós, jornalistas da Folha de S. Paulo recebemos a notícia da morte do nosso colega Paulo Roberto do Valle Oliveira, o grande, na estatura, no profissionalismo e na amizade, Paulo Valle. Foi uma das primeiras vítimas da AIDS no país. Uma doença que surgiu um ano antes e gerou, na época, além de toda a apreensão, um grande preconceito, principalmente entre determinados setores da Igreja, pois era imediatamente associada ao homossexualismo. Naquele episódio, tivemos então a demonstração máxima da humanidade do “pastor Paulo Evaristo Arns”. Para ele, o respeito e o amor ao ser humano, estavam acima de tudo. Tal e qual o ensinamento de Cristo no “Amar ao próximo, como a si mesmo”.
Durante o velório, com alguns colegas, resolvemos e ligar para o cardeal, em pleno sábado, em busca de alguém para fazer a encomendação do Paulo. Surpreso, ouvi do próprio – que atendeu prontamente ao telefonema – que ele mesmo iria ao velório, no domingo pela manhã. Poderia pedir a um padre que o representasse, mas fez questão dele próprio realizar aquele simples oficio religioso. Um gesto de humildade.
Chegou ao velório no Hospital dos Servidores do Estado, no Ibirapuera, sabendo da causa da Lembro bem, que na conversa inicial, mostrou a preocupação com a AIDS. Ele tinha estado em Roma – caso não esteja enganado, por conta da defesa de Leonardo Boff -, e lá um religioso – não recordo se padre ou bispo – tinha falecido pela mesma causa. Não questionou nada, e fez uma bela despedida ao Paulo, falando do papel de comunicador, emocionando a todos (veja reportagem acima).
Na noite de quarta-feira, mesmo dia do seu transvivenciamento, soube pelo amigo Antônio Carlos Fester de outra demonstração deste lado humano do Pastor Arns. Foi quando um religioso de São Paulo, ao saber-se aidético, recolheu-se ao Hospital Emílio Ribas – especializado em doenças infectocontagiosas, e lá praticamente se escondeu de tudo e de todos.
Quando dom Paulo soube do fato, foi pessoalmente buscá-lo e alojá-lo em uma casa com toda a dignidade que merecia. Sem questionamentos. Depois, reuniu um grupo de assessores e auxiliares e sugeriu que os visitassem, mas com uma recomendação expressa: “vocês vão visitar o padre e ninguém vai perguntar como é que ele adoeceu. Não é para perguntar como adoeceu”. Ou seja, no linguajar católico mais tradicional, ele jamais ligou para o que alguns tratam como “pecado”. Para ele, como pastor, era mais importante o, suposto, “pecador”. Que, muito provavelmente, ele não o considerava assim.
A dedicação aos doentes e sofredores foi algo que o acompanhou o resto da vida. Mesmo aposentado, ele celebrava missas em hospitais levando esperança aos doentes. E os tratava com carinho especial, como demonstra a foto acima de dom Paulo com o inesquecível Carlito Maia, ao lado da esposa Maria Tereza Marsicano Rodrigues, na igreja São Domingos, em cerimônia de homenagem a Frei Tito. Um gesto que leva Maria Tereza desabafar: “Tempos que não voltam mais”.
4 Comentários
[…] ia publicar, também , as memórias de Marcelo Auler sobre D. Paulo Evaristo Arns, o pastor suave e amigo da humanidade, sobretudo quando ele vai […]
Como não emocionar com um texto tão brilhante? Vamos realmente lembrar sempre deste abnegado servidor de Cristo que sempre o imitou na vida! Chorei com seu testemunho, mto lindo e digno! Mto grata pela homenagem à Dom Paulo que mto fez por merece-la!
Marcelo, como sempre, um belo texto embora escrito num momento de, tenho certeza por privar de sua amizade, grande emoção.
Eu estive na missa de sétimo dia do Vladimir Herzog, na catedral da Sé. Era estudante da UNICAMP e fomos em caravana, enfrentando muitas dificuldades para chegar, pois haviam ruas interditadas desde Campinas, barreiras nas estradas, muitos helicópteros sobrevoando, carros da polícia e do exército, cavalaria e até alguns tanques. Tivemos que fazer o caminho mais longo para chegarmos à igreja.
Com esse ato de coragem em rezar uma missa para um, suposto, suicida Dom Paulo e seu dois companheiros de outras fés, citados no seu texto, demostraram cabalmente para a população que Vladimir Herzog foi, de fato, assassinado e não se suicidou como queriam fazer crer os militares que ditavam as regras.
Olá Marcelo! Só podia vir de você este belissimo texto, porque vivido. Talvez você não se lembre, mas no Governo Montoro tivemos muitos encontros para a publicação do Educação Democrática númãoero 1. Um jornal que abalou as estruturas da Secretaria da Educação e fez de nós heróis e vilões. E não éramos nem uma coisa e nem outra. Hoje, muita violência ocorre em nossas escolas – velada ou explícita. Mas vejo com alegria, os educadores que resolvem fazer a diferença, com todas as dificuldades que isso possa representar. Fiquei emocionada com seu texto.