Ao impedir a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no velório do seu irmão, Genival Inácio da Silva, o Vavá, o judiciário brasileiro impôs ao réu uma pena que não consta de sua sentença e que lhe causará um dano irreparável.
Lula, que via no irmão mais velho uma espécie da figura do pai após este lhe abandonar quando criança, ficou sem poder ao menos se despedir dele, ainda que já sem vida. Algo que jamais poderá ser reparado. Tudo por conta de decisões jurídicas que desrespeitaram um direito previsto na lei. Direito que, com muito mais naturalidade do que se imagina, é respeitado cotidianamente no Sistema Penitenciário brasileiro.
Em 2015, último levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, nada menos do que 175.325 detentos deixaram suas celas para sepultar familiares. Média de 480 por dia. Ou seja, estas saídas de preso se tornaram rotineiras.
Ainda assim, este direito não foi garantido ao ex-presidente por três instâncias judiciárias diferentes. Inicialmente, de forma direta, com argumentos toscos, pela juíza Carolina Moura Lebbos, da 12ª Vara Criminal Federal de Curitiba, e pelo desembargador Leandro Paulsen, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ambos, depois, desmoralizados pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.
Já a decisão do ministro Dias Toffoli, presidente do STF, embora reconhecesse o direito do preso e o dever do Estado em atende-lo, criou óbices que só demonstraram tratar-se de uma proibição dissimulada. Além de ter sido exarada tardiamente, impôs diversas condicionantes que a inviabilizavam: impedia o preso de ir ao velório; limitou o encontro a parentes; e determinava que o encontro fosse em uma “Unidade Militar na Região” (São Bernardo do Campo).
Bizarramente, admitiu, “a possibilidade do corpo do de cujos ser levado à referida unidade militar, a critério da família”. Virou motivo de chacota nas redes sociais.
“Toffoli foi para o deboche: concedeu habeas corpus para o morto visitar o irmão preso. Era melhor ter deixado para um general assessor despachar ou simplesmente ter indeferido de verdade, não de brincadeirinha. Escarneceu da família de Lula no momento da dor maior”.
Deputado Wadih Damous (PT-RJ)
Engana-se quem acha que as críticas surgiram apenas dos petistas. Na verdade, as decisões do judiciário simplesmente atropelaram a lei confirmando o tratamento diferenciado que o ex-presidente Lula vem recebendo. Tratamento de preso político.
Mesmo entre juristas que criticam Lula e apoiam a Lava Jato, o episódio mereceu reprimendas. Exemplo é o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Walter Fanganiello Maierovitch, ex-secretário Nacional Antidrogas do governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi ele um dos primeiros a lembrar do dano irreparável imposto ao réu, acrescentando ainda a condição de Lula como “preso provisório”:
“Indeferir o pedido de Lula para comparecer ao enterro de Vavá, seu irmão, contraria o direito Natural e é ilegal em países civilizados. E indeferir a pretexto de “falta de meios logísticos” é um escárnio. E não vou especular se Lula aproveitaria o enterro de Vavá. Um preso provisório, com situação jurídica indefinida, não deve sofrer restrições a causar dano irreparável. Pano rápido. Já participei da cruzada para preso provisório votar, pois não havia perdido a cidadania, o direito ao sufrágio. Com relação a velar e sepultar uma mãe ou um irmão, só um preso perigoso, — que não é o caso de Lula—, pode ser impedido, no interesse maior da segurança social.”
As decisões simplesmente impediram Lula de ver o irmão e dele se despedir pela última vez. Oportunidade que jamais se repetirá. É o dano irreparável. Ainda que provocado por um outro dano, também irreparável. A falta de liberdade. Sem falar no impedimento da sua candidatura à presidência da República, sem que estivesse com os direitos políticos cassados, a partir de sentenças que não se sustentam juridicamente.
Há quase um ano – abril de 2018 – Lula teve sua liberdade cassada, apesar de ser o que Maierovitch chamou de “preso provisório”. Algo reconhecido pelo próprio Toffoli, na sua decisão tardia e dissimulada. No 41º parágrafo, em cinco palavras, devidamente grifadas no original, entre outras 2.253 que espalhou ao longo de oito laudas, ele reconhece ao se referir ao regime de cumprimento da pena: “ainda que de forma parcial”.
Fosse cumprida a Constituição, da qual o Supremo deveria ser guardião, Lula não poderia estar preso pois não tem a chamada “condenação transitada em julgado”. Sua pena poderá ser revista nas instâncias que ainda apreciarão os recursos. Logo, a prisão em si é o principal dano irreparável que lhe foi causado. Impediu-o até de acompanhar e confortar o irmão em sua enfermidade. Não bastasse isso, nesta quarta-feira (30/01) foi impedimento de se despedir dele.
Impedimento que não ocorreu, em maio de 1980 – portanto, quatro anos antes de existir a atual Lei das Execuções Penais (Lei nº 7.210, de julho de 1984) – quando Lula estava preso no antigo DOPS de São Paulo, por conta das greves dos metalúrgicos do ABC paulista. Vivíamos na ditadura e ninguém duvidava dele ser um preso político, como hoje duvidam.
Ainda assim, teve autorização do delegado Romeu Tuma – ao que parece, sem qualquer consulta ao judiciário – para, em um Chevette descaracterizado da polícia, na companhia de apenas dois policiais à paisana, ir ao velório e ao enterro da mãe, dona Lindu. Mais de duas mil pessoas estavam lá e ele, cumprindo o acordado, não fez qualquer pronunciamento público. Tampouco tentou fugir.
Hoje, Lula está preso por conveniência política dos que lhe fazem oposição e conivência do atual presidente do STF, Toffoli, e de sua antecessora, Cármen Lúcia. Ambos se recusaram a levar ao plenário a discussão sobre prisões após a condenação em segunda instância. Sabem que isto pode colocar o ex-presidente em liberdade.
Têm medo da liderança que o antigo líder metalúrgico ainda detém no país. Como definiu Helena Chagas em sua coluna – Lula vira preso de alta periculosidade política – no blog “Os Divergentes“:
“O ex-presidente foi enquadrado como preso de alta periculosidade política. As instituições do poder morrem de medo do que poderá vir a dizer ou fazer, de uma eventual mobilização de seus seguidores e do impacto disso no cenário político — ainda que no espaço restrito e no curto tempo de um velório”.
Esse medo de que fala Helena Chagas é que fez com que o Judiciário brasileiro neste episódio da morte, velório e enterro de Vavá, o irmão que Lula via quase como um pai, submetesse o réu a uma verdadeira tortura; “um tratamento desumano ou degradante”.
Uma tortura que, como lembrou o advogado e procurador de Justiça aposentado Roberto Tardelli, é “imposta pela Polícia Federal, sob proteção do Ministério Público, com o beneplácito do Judiciário”.
Da mesma forma como denunciaram cerca de 430 advogados, professores universitários e defensores na nota (íntegra, aqui) em que repudiaram o impedimento dele comparecer ao enterro do irmão. Ali expõem:
“O Ex-Presidente Lula não estaria preso se o STF não alterasse indevidamente a interpretação da Constituição Brasileira. Não deveria estar preso se tivesse direito a um juiz imparcial em primeira instância. Não deveria estar preso segundo os mais respeitados Professores de Direito Penal do País. Mas se nada disso importasse, se a lei e a jurisprudência, por qualquer razão, pudessem ser deixadas de lado para condenar Lula, uma única norma deveria ser a ele assegurada:
Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.
Mais do que um princípio presente em todos os tratados internacionais sobre direitos humanos, trata-se de uma conquista ética da civilização, uma resposta às crueldades medievais e das ditaduras do século passado em face dos cidadãos condenados, independentemente da gravidade da acusação que lhes pesasse”.
A coincidência é que as proibições da juíza Lebbos e do desembargador
Paulsen – que contaram com a concordância dos procuradores da República que compõem a Lava Jato de Curitiba – foram calçadas no relatório feito pelo delegado federal Luciano Flores, nomeado superintendente do DPF no Paraná a partir do governo Bolsonaro.
Trata-se do mesmo delegado que, em março de 2016, a partir de uma decisão arbitrária e ilegal de Sérgio Moro – o hoje ministro da Justiça – conduziu coercitivamente Lula para depor na delegacia do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Apesar da condução ilegal e de todo o constrangimento criado – fizeram buscas na casa de Lula, inclusive levantando o colchão da cama do casal – o tratamento entre as partes foi, na descrição de quem esteve presente, cordial. Isso depois de Flores, inicialmente, evitar apresentar o mandado de condução coercitiva, que surgiu ao lhe ser cobrado.
Queria, pelo que deduziram, levá-lo na base do “convite”. Talvez para descaracterizar o ato ilegal. que surgiu ao lhe ser cobrado. Ainda assim, no aeroporto houve até uma patética cena do ex-presidente ter solicitado a seus seguranças que comprassem lanche para o café da manhã, que acabou degustado por condutores e conduzidos.
Ao final, quando o saguão de Congonhas estava tomado por defensores do ex-presidente, Lula dispensou os policiais federais de o conduzirem em casa. Garantiu-se na saída sozinho, com os seus. Evitou qualquer espécie de confronto. Todos deixaram o local ilesos.
No entanto, quase três anos depois, Flores, para justificar o não acolhimento do pedido de Lula para ir ao velório do irmão, alegou a possibilidade de ele fugir. Certamente ele não esqueceu que o ex-presidente – contrariando um grande número de seguidores e correligionários – justamente para evitar conflitos, apresentou-se à Polícia Federal quando decretada sua prisão.
Fez isso contra a vontade de uma multidão aglomerada na porta do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo disposta a evitar a sua prisão. A preocupação do ex-presidente era a de não gerar conflitos e não colocar em risco a integridade dos seus adeptos ou mesmo dos agentes que o foram prender em 7 de abril de 2018.
Agora, porém, Flores apelou para a possibilidade de conflitos como justificativa para não atender ao pedido do ex-presidente. No que foi devidamente seguido pelos membros do Ministério Público Federal, pela juíza e pelo desembargador. Todos alegaram – erroneamente, como depois mostrou Toffoli – que o previsto na lei não era direito, mas apenas uma possibilidade passível de não ser atendida.
Os procuradores da malfadada “República de Curitiba”, como salientou Bernardo Mello Franco em sua coluna em O Globo, chegaram a admitir o que antes tentavam esconder. Relata Bernardo:
“Ao opinar contra o pedido de Lula para acompanhar o velório do irmão, um direito assegurado em lei, os procuradores de Curitiba escreveram que o ex-presidente “não é um preso comum”. Já tinha dado para perceber.“
Cabe ainda lembrar que, recentemente, por coincidência ou não, após a ascensão de Flores como superintendente da Polícia Federal do Paraná, a juíza Lebbos, provocada pelo Ministério Público Federal, cortou o que considerou regalias de Lula: a visita religiosa uma vez por semana, e a proibição da ida de Fernando Haddad como advogado do réu.
Todos – delegado, procuradores, juíza e desembargador – acabaram desmoralizados pela decisão do ministro Toffoli, que desconsiderou os argumentos usados. Na interpretação do presidente do STF, o que foi relacionado por Flores “não deveria obstar o cumprimento de um direito assegurado (…) Prestar assistência ao preso é um dever indeclinável do Estado”, ensinou o ministro aos que não reconheceram o direito do preso.
Ao que tudo indica, a Toffoli também não interessava atender ao pedido. Reconheceu o direito, mas inviabilizou a ida de Lula ao velório/enterro não apenas com as condições impostas, mas principalmente com a demora na resposta.
Com isso, o Judiciário – com a contribuição de todas as instâncias, do delegado de polícia ao presidente do STF – proporcionou a Lula mais um dano irreparável. Ao mesmo tempo, porém, assinaram o atestado de que o ex-presidente é sim um preso político. Quanto a isso já não há mais como contestarem.
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1 Comentário
O Brasil, desde meados de 2016, está sob uma ditadura pior que aquela imposta em 1964, porque dissimulada e travestida de “legalidade” e “institucionalidade”. O sistema judiciário e as FFAA, assim como o governo federal, desde 2016, são comandados por ORCRIMs institucionais, como tenho mostrado há 4 anos.