Por Gilmar Mendes, Renan Calheiros volta à berlinda
14 de janeiro de 2017
Tiro n’água
16 de janeiro de 2017

Marcelo Auler

das causas da suspeiçãoAo comentar, no último dia 10/01, a viagem que fez no avião presidencial para Lisboa (Portugal), onde passa férias, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), rebateu críticas a esta estranha “carona”. Ele, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi responsável pela reabertura do processo que analisou – e aprovou – as contas da campanha de Dilma Rousseff, na eleição de 2014. Ao tentar atingir a então presidente acabou levando a reboque o seu vice, hoje presidente Michel Temer que está no cargo graças ao golpe do impeachment. Por ter este processo em andamento, foi criticado ao aceitar a “carona”, mas na entrevista que concedeu a Jorge Bastos Moreno desmereceu aqueles que falam que o processo e a viagem são incompatíveis. Ainda classificou essa discussão de “um assunto menor”:

“Não são (incompatíveis) porque nunca discuti esse tema com o presidente Temer e ele nunca me abordou sobre esse assunto e creio que jamais abordará”, explicou.

Tanto Mendes, jurista experiente, como Temer, reconhecido constitucionalista, porém, podem ter se esquecido de um detalhe importante que desmente tratar-se de “um assunto menor”: o inciso II do artigo 145 da Lei 13,105/2015, mais conhecida como Código de Processo Civil. Ali, com todas as letras está exposto que “há suspeição do juiz que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo”. A pergunta que fica no ar e foi colocada pelo Blog para alguns operadores do Direito é:

Uma viagem a Lisboa, no avião presidencial, é um presente? Há um motivo de suspeição?

Do Face Book de Ciro Gomes. (reprodução).

A “carona” no avião presidencial mereceu comentários e críticas, como a de Ciro Gomes no Face Book.

A discussão gira, a princípio, em torno da palavra “presentes“.

Segundo o dicionário Houaiss ela significa “objeto doado, ofertado; regalo, mimo, brinde, lembrança” ou ainda, “qualquer coisa que se concede a alguém; dádiva, dom”.

O termo foi introduzido no novo Código aprovado em 2105. No anterior, Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, a palavra usada era “dádiva” – “receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo”.

 Para um tradicional jurista, aposentado da Procuradoria Geral da República, é  tudo uma questão de interpretação.

“A palavra “presentes” não é de técnica jurídica. Usá-la no texto da lei foi uma coisa mal feita. A lei deveria se utilizar dos conceitos juridicamente consagrados – doação, vantagem de qualquer natureza. Mas, “presentes”, por definição, não tem precisão jurídica. Juridicamente, presente só se compara com o futuro e o passado. É de outro tipo de categoria jurídica. Não diz respeito a bens, ou serviços… O Direito Civil tem os seus conceitos, que devem ser aproveitados pelo Código de Processo Civil. Este, não pode criar conceitos novos. Acho que seria bom perguntar o sentido a quem colocou neste texto a palavra “presentes“. Se houvesse uma crítica de técnica jurídica, talvez não passasse”, ironiza.

Ele foge do debate sobre a “carona” para Lisboa. No seu entendimento, é uma questão “indiferente, até porque, o conceito de suspeição ou o impedimento que esteja no Código de Processo Civil ou no Código de Processo Penal, não esgota o conceito fundamental que é constitucional: o da imparcialidade do magistrado.

“Este que é o conceito fundamental, já que a lei ordinária, seja codificada ou não, não pode restringir o conceito fundamental da imparcialidade que se encontra em toda a parte introdutória da própria Constituição. Discutir em detalhes um texto de hierarquia inferior não ilumina o assunto”, diz.

juristas acusam .... foto blogA parcialidade do ministro Mendes, no entendimento deste jurista, está bem exposta nos pedidos de impeachment protocolados no Senado em setembro. Tais pedidos, como narramos nas reportagens Juristas acusam Renan Calheiros e Gilmar Mendes: troca de favores e Por Gilmar Mendes, Renan Calheiros volta à berlinda, foram indeferidos e arquivados liminarmente por ato individual do presidente daquela casa. A decisão de Renan Calheiros, considerado suspeito por responder a processo no STF, deverá ser discutida na Suprema Corte por conta de dois Mandados de Segurança ali impetrados. como narram estas matérias.

Os questionamento feito pelo Blog a diversos operadores do direito – A carona de avião a Lisboa é um presente como previsto no CPC? -, mesmo sob a proteção do OFF, não mereceu resposta de todos.Mas, as que chegaram demonstram bem como o assunto gera polêmica, independentemente de posições políticas.

Dentre os procuradores da República consultados, as respostas foram no mesmo sentido, ainda que eles tenham posições políticas divergentes, por exemplo, com relação à Operação Lava Jato. Um limitou-se a dizer: “No caso sim!”. Ou seja, foi um presente.

Já seu colega, defensor da Lava Jato, foi mais crítico: “Claro que sim, ainda que às custas da viúva. Só que ministro do STF no Brasil não está sujeito a regras processualistas e orgânicas, basta ver o quanto o Gilmar já descumpriu a regra da Loman (Lei Orgânica da Magistratura) que proíbe falar de causa alheia, mal de colegas etc..”

A terceira resposta enviada por membro da PGR em São Paulo, crítico aos abusos da Lava Jato, coincide com a dos seus colegas: “Eu acho que foi presente. Vale uma representação ao TSE. Quem faria?”

Já um colega seu do Rio de Janeiro diz que considerar a carona um presente “É frágil porque há sempre o argumento da visita institucional, que estava indo como autoridade“.

Um advogado que milita na Justiça Eleitoral, tem pensamento parecido. Mas, ele próprio alerta que está com a minoria:

“Respeitando as opiniões em contrario, e pedindo todas as vênias, não vi nada de mal no fato. A independência do magistrado é mostrada nas suas decisões. O fato de o ministro não ter ido ao “funeral” certamente será explicado”.

Depois, acrescentou: “Acho que era um voo fretado. Pago pelo Governo, que ia decolar de qualquer maneira, lotado ou não. Melhor o ministro ter ido assim do que ter comprado uma passagem, em voo normal, e ter pedido depois o reembolso que seria feito com o seu, o meu, o nosso dinheiro. Sinceramente, não vejo o fato como um “presente“. Pelo que entendi, várias personalidades públicas foram no mesmo voo. Não entendo caracterizado um “presente”. Porém, esta é apenas a minha modesta opinião“.

Já um colega seu criminalista, foi curto e direto: “E que “presente”!!!!

Na verdade, o voo foi no avião presidencial. Outro convidado de Temer foi o ex-presidente José Sarney. Embora convidado pelo presidente da República, Gilmar Mendes, mesmo na condição de presidente do TSE não estava em missão oficial. Tanto assim que não houve pagamento de diárias pelo tribunal. A representação do Judiciário brasileiro, caso necessária, caberia à presidente do STF ou alguém por ela designado.

tap preçoMendes se encontra em férias. Conforme explicou a assessoria do TSE, ele deu plantão como presidente da corte até 31 de dezembro. No mês de janeiro, quem responde pelas emergências é o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que tem assento na corte eleitoral como representante do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Como o próprio Mendes admitiu à Folha de S. Paulo, em entrevista publicada dia 10, ele “estava de férias em Lisboa mas precisou retornar a Brasília para “atender uma questão pessoal” e disse que voltaria a Portugal no domingo (15)”. A carona, portanto, o fez economizar uma passagem aérea.

Se viajasse neste domingo, 15, pela TAP, saindo de São Paulo, Mendes desembolsaria, no mínimo, R$ 5.928.118, na classe econômica. Na primeira classe, pagaria o dobro: R$ 11.963,00 (veja ilustração acima). Pela TAM, a passagem mais em conta sairia por R$ 12.953,77. Na hipótese dele adquirir a passagem com antecedência, poderia viajar pela TAP por R$ 4.118,22 na classe econômica (preço de uma passagem a ser adquirida sábado, dia 14, para o domingo, dia 22). Sendo ou não a “carona” um “presente”, ela lhe proporcionou, sem dúvidas, uma boa economia. 

Na mesma entrevista à Folha, Mendes alegou que “Se fosse para combinar uma coisa espúria, obviamente, pode fazer isso em qualquer lugar. Não precisa ir a Portugal“. E defendeu a necessidade de se “acabar com esse modo de suspeita” sobre a conversa entre agentes do mundo político. Disse que não vê “nenhum tipo de conflito” ao aceitar uma carona do presidente para ir à capital portuguesa”.

Parece que ele esquece daquilo que foi lembrado por uma advogada fluminense que hoje atua em outro estado: não basta apenas ser honesto, é preciso parecer honesto:

“A resposta do ministro confirma que ele não vê problemas em se beneficiar de favores do chefe do Executivo. Como se ele fosse um cidadão acima de qualquer suspeita e que por isso não deve se curvar aos comportamentos éticos e legais que fazem com que a mulher de Cesar não seja apenas honesta, mas também pareça honesta. Esse é um ônus do serviço público. Qualquer que seja. E deve ser observado com mais razão ainda por membros de poder, porque têm que ter autoridade moral para suas funções fiscalizatórias”.

A questão da ética foi muito lembrada. Um desembargador aposentado, no Rio, analisou a questão de forma mais ampla. Partiu do pressuposto de que ele foi para o funeral e que acabou não comparecendo à cerimônia por causa de uma alegada labirintite. Entende que como membro do STF ele poderia ir em caráter individual, mesmo não representando o órgão. Como presidente do TSE, ele representa o órgão mesmo de férias, oficiosamente, já que presença em funeral não é ato administrativo nem judicial. E se o faz em férias, não podia receber diárias.

Michel Temer deu carona a Gilmar Mendes para Portugal, mas o ministro do STF não esteve no funeral de Mário Soares. Passeio?

Apesar da carona de Michel Temer, Gilmar Mendes não esteve no funeral de Mário Soares. Passeio?

Recorda, ainda, que o presidente da República tem a prerrogativa de levar convidados no avião presidencial. Foram comuns notícias de comitivas de empresários em viagens de presidentes. Com maior razão ele poderia justificar a gentileza ao presidente de qualquer tribunal superior.

Mas, adverte, o que fica de antiético é a viagem em face da relação juiz-réu, como saiu no artigo de Omar Catito Peres, aqui publicado Nota de Falecimento! E acrescenta:

“Em abstrato, dar passagem de avião de graça é “presente”. No caso particular, esse probo ministro é presidente do TSE e membro do STF, pelo que tinha justificativa teórica para comparecer ao funeral. Nesse contexto sempre poderá afirmar que até economizou verba do TSE ou do STF com passagem de avião pegando carona.

O que é censurável é aceitar carona, que é uma gentileza, de alguém que é réu em ação na qual é juiz. Nesse aspecto a justificativa que ele deu, reproduzida acima, não convence.

E moralmente ficou muito discutível o motivo que ele deu para justificar a carona, a ida ao funeral. Isso impediria que se chamasse a viagem de “presente”.  Como não foi ao funeral,  então seria viagem particular, a ser paga do próprio bolso. Mas, soube que ele não foi “por causa de uma crise de labirintite”. E parece que continuou lá mais algum tempo. Como tudo que cerca esse personagem sinistro, é nebuloso e de legalidade questionável”.

A ausência do ministro no funeral leva outro membro do Ministério Público da União a não ter duvidas em classificar a carona como um “presente”. Da mesma forma pensa uma juíza aposentada do Rio. Ela nem entra no debate da presença ou não no funeral ao responder se foi ou não “presente”:

“CLARO QUE SIM! Um juiz que tem sob sua atribuição julgar A não pode dele receber nada! Pelo menos era assim na minha época. Mas na minha época juiz não falava fora dos autos e nem se manifestava sobre causas de outros Juízes. Art. 36 da LOMAN! Hoje parece que tudo está de ponta a cabeça! Por isto mesmo me mantenho ausente ! Em prol da minha sanidade!” (grifos do original)

Curiosamente, um deputado federal da oposição a Temer e que também advoga, não vê problema na viagem em si, por conta do funeral de Mário Soares. Ele, porém, prevê que “se poderá sim arguir suspeição na oportunidade do julgamento“.

Já uma juíza federal em início de carreira, tal como o deputado entende que a viagem pode ter sido institucional, representando o TSE, por isso não a considera um presente. Mas levanta outra questão: “O que deve ser averiguado é se ele usou a viagem institucional para tratar de temas do IDP que todos sabem tem estreita relação com Lisboa”.

IDP é o Instituto Brasiliense de Direito Público que tem como um dos sócios o ministro Gilmar Mendes. Em Lisboa ele mantém convênios com a Universidade de Lisboa, referente ao Instituto de Ciências Jurídico-Políticas (ICJP) e com a Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Direito).
Tendo interesses comerciais em Lisboa, a estadia na capital portuguesa pode ter sido usada para tratar de negócios.

A mesma juíza, porém relega tudo isso. Concordando como que falou o desembargador aposentado – embora desconhecesse o comentário dele – ela destaca que “a parcialidade dele (ministro Mendes) é muito mais abalada pelas manifestações prévias sobre as causas em julgamento. Isso é muito mais grave”, diz.

Já uma advogada carioca, antiga defensora dos Direitos Humanos entende que o artigo 145 do CPC “não se aplica ao caso”, não só por não se tratar de um “presente“, mas também porque nossas leis “são interpretadas restritivamente. A norma geral do Direito é a interpretação restritiva da norma legal”, afirma.

Para ela, no caso cabe sim a Lei de Improbidade Administrativa, “mais grave do que este artigo citado do CPC”. Ela até admite que a ação de improbidade não terá efeito imediato e direto na suspeição do magistrado no processo em que tramita no TST, mas, como ela diz, “todo o resto – inclusive, com o que consta dos pedidos de impeachment – estará feito o samba enredo”. Será?

 

4 Comentários

  1. C.Poivre disse:

    Tirando os analfabetos políticos, como os coxinhas, não há mais dúvida que o Golpe de Estado que provocou a atual tragédia brasileira política e econômica está relacionada à traição ao país para entregar a estrangeiros nossas riquezas. Qual entidade da área de Direito irá denunciar os traidores já sobejamente conhecidos? A OAB, o IAB, os juizes ou membros do MP democratas e patriotas através de suas entidades? Algum deputado ou senador que ainda não foi cooptado pelos agentes estrangeiros?
    Alguém ou alguma entidade tem que tomar a iniciativa de pedir uma investigação para desvendar esta traição ao país que redundou no golpe antidemocrático de 2016:

    CRIME DE TRAIÇÃO À PÁTRIA:

    “Art. 13 da Lei 7.170/83 – Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos.
    Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.”

  2. João de Paiva disse:

    Corroboro o que escreveu e disse o Procurador da República Eugênio Aragão. Por isso reproduzo o que ele escreveu e publicou sobre o episódio da suspeitíssima carona oferecida por michel temer e aceita por gilmar mendes.

    __________________________________________________________

    Então tá…

    Vamos todos fingir que é normal o presidente do Tribunal Superior Eleitoral pegar carona com um sedizente presidente da república (com letras minúsculas mesmo) para ir a Lisboa, supostamente para participar das cerimônias funerais do maior democrata português da contemporaneidade. É normalíssimo, porque o tal presidente do tribunal é quem vai pautar um processo que pode significar o fim do que se usou chamar, na mídia comercial, de “mandato” do sedizente presidente da república. O tal presidente de tribunal é inimigo notório da companheira de chapa do sedizente presidente que urdiu um golpe para derrubá-la. Mas, claro, tem toda isenção do mundo para julgar ambos.“Nada haverá de suspeito”, como diria o insuspeito jornalista Ricardo Noblat. Quem ousaria dizer o contrário?

    A carona (ou boleia, como diriam nossos irmãos lusos) veio a calhar. É, antes de mais nada, uma bela viagem 0800, com todos custos cobertos por mim, por você, por nós, obsequiosos bobões. A ideia é só aproximar réu e julgador e – por que não? – usufruir um pouquinho do que a capital portuguesa tem de melhor a oferecer: as tabernas, o fado, as ginjinhas, as pataniscas de bacalhau ou os famosos pastéis de Belém. Nestes tempos bicudos, nada melhor que uma “escapadela” para enfrentá-los com maior disposição. Ninguém é de ferro. As exéquias do democrata lusitano certamente são a menor das preocupações do réu e de seu julgador, pois vê-los prestar suas últimas homenagens ao gigante da política portuguesa parece tão obsceno quanto fosse ver Lula prestá-las a Augusto Pinochet.

    Vamos todos fingir que neste país chamado Brasil há um patriótico chefe do ministério público, que faz muito bem em ir a Davos. Lá vai cantar uma ode ao combate à corrupção que se usou chamar de sistêmica ou organizada pelas bandas de cá. Ou, quiçá, até de uma forma de governança. Isso também é normalíssimo, porque em Davos se reúnem bancos e fundos de envergadura global para traçar estratégias sobre novos investimentos e analisar a conjuntura política e econômica no planeta. Claro, faz sentido. Com as proezas ditas de si e de seu poderoso órgão acusador, vai atrair enorme interesse por investimentos nobres em seu país. Finjamos que grandes empresas adoram investir em economias tingidas de corrupção sistêmica, certificada pelo chefe da acusação.

    O poderoso órgão de acusação, regiamente sustentado com nossos impostos, como é sabido também, sacrificou no altar da moral purgatória mais de um milhão de empregos e pôs fim a um projeto de desenvolvimento nacional e de uma sociedade inclusiva. Mas, claro, tudo com a melhor das intenções. Fez um nobre serviço à democracia do tal Brasil, permitindo ao réu a caminho de Lisboa instalar-se no poder sob as bênçãos de seu julgador caroneiro, para liquidar, num verdadeiro off-sale, os ativos econômicos do país, as jóias da família. Disso empresários em busca de lucros gostam. Mas esse deve ser o menor problema do chefe do ministério público, pois vê-lo em Davos parece tão obsceno quanto ver George Soros num Encontro Nacional dos Procuradores da República em Comandatuba.

    Vamos todos fingir que temos um preocupado ministro da justiça que declara publicamente apoio ao governo do Amazonas para debelar, em seu sistema penitenciário, a guerra assassina entre facções de traficantes. Normalíssimo, oras. O azarado ministro, de boa-fé, não se lembrou ter negado o pedido desesperado de uma governadora, de uso da Força Nacional que, talvez, pudesse ter salvo a vida de trinta e poucos brasileiros em Roraima, massacrados na vindita de uma facção contra outra, que dizimara quase sessenta concidadãos em Manaus.

    É aceitável, afinal, que o governador do Amazonas, destinatário do apoio do tal ministro da justiça, tenha sido financiado em sua campanha eleitoral pela empresa copiosamente remunerada para administrar a penitenciária onde trucidaram os quase sessenta brasileiros. Faz todo sentido, por isso, que pontifique: “nenhum dos mortos era santo!”, como se aplaudisse os padrões da administração penitenciária contratada de seu doador. E faz todo sentido que o tal governador se julgue Deus, para condenar os trucidados ao fogo eterno. Não é que ele mesmo poderia estar lá, se fossem levar a sério, no tribunal do julgador caroneiro, o imperativo de cassação de seu mandato por compra de votos? Deixá-lo falar de falta de santidade é tão obsceno quanto imaginar o cramunhão ser canonizado.

    A literatura popular alemã contém antiquíssimo anedotário de autoria controvertida sobre uma cidadezinha chamada Schilda. Seus habitantes, os ingênuos Schildbürger, são os protótipos de néscios que fazem, com naturalidade, tudo de forma a nada dar certo. Inventaram um papel higiênico que se pode usar nos dois lados: a prova de sua eficiência está na mão… O Brasil de nossos fingimentos virou uma enorme Schilda. Fazemos os maiores absurdos, mas não perdemos a esperança ingênua de acertar. E não entendemos quem ouse não concordar.

    Um julgador pegar carona com um réu a ser por ele julgado; um chefe do ministério público ir a Davos para ajudar a atrair investimentos numa economia que chama de podre, ou um ministro da justiça se esquecer de que negara meios a uma governadora para evitar um massacre, mas que agora, diz, vai dá-lo a um outro governador que faltou bater palmas para o banho de sangue no xilindró sob sua responsabilidade: tudo isso não é muito diferente do uso de papel higiênico nos dois lados. Mas quem fica com as mãos borradas somos nós que fingimos estar tudo bem.

    Bem vindos à Schilda brasileira!

  3. Armando Coelho disse:

    O cinismo golpista toma ares pornográficos. Logo, o assunto vai se tornar provido para menores. Como assim? Jogaram o código processual penal e a constituição na sarjeta?

  4. […] Fonte: Carona para Portugal é “presente”? | Marcelo Auler […]

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