No que pese o afastamento do governador Wilson Witzel (PSC-RJ), por decisão monocrática, em um processo judicial, sem ter passado pelo crivo do Poder Legislativo, cheirar fortemente a desrespeito constitucional e, principalmente, desrespeito aos votos por ele obtidos em uma eleição jamais contestada, não se pode alimentar “teorias conspiratórias” que surgem em momentos com estes. Nessas ocasiões é que postagens irrefletidas viram falsas notícias (fake news) e se disseminam nas redes sociais como se verdades fossem.
É o caso, por exemplo, das conclusões precipitadas que apontam o afastamento de Witzel como estratégia para a ascensão do vice-governador, Cláudio Castro, alguém próximo aos Bolsonaros. Aponta-se que esta aproximação poderá levar à Procuradoria Geral de Justiça do Rio, alguém do interesse da família do presidente.
É certo que, permanecendo no governo do Estado, ainda que interinamente, Castro terá o poder de substituir o procurador-geral de Justiça Eduardo Gussen, cujo mandato expira em 17 de janeiro, sem direito a uma nova reeleição.
Por esta teoria conspiratória que viraliza na rede, Castro, próximo aos Bolsonaros, selecionaria alguém que atendesse aos interesses deles, inclusive por conta das investigações envolvendo “rachadinhas”, Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e todos os seus cúmplices. Ainda que Castro possa vir a ter que escolher o futuro chefe do Ministério Público Estadual – desde que permaneça no cargo até janeiro, frise-se – ele estará bastante limitado na hora de substituir Gussen.
Afinal, ao contrário do que acontece com a Procuradoria-Geral da República (PGR), cujo procurador-geral é escolha direta – e pessoal – do presidente da República, nas Procuradorias de Justiça dos estados os governadores não têm essa liberdade toda. No âmbito federal, como ficou claro com a escolha de Augusto Aras e se repetiu durante toda a gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso, a Constituição não fala em escolha do nome através de lista tríplice preparada pelos membros do Ministério Público da União.
A lista tríplice foi introduzida e sempre respeitada nos governos do PT. Neles, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silve e Dilma Rousseff indicaram sempre o mais votado pela eleição promovida pela Associação Nacional dos Procuradores da República. Já Michel Temer respeitou a lista tríplice, mas não indicou o primeiro da lista. Raquel Dodge foi a segunda mais votada, recebendo 587 votos, atrás de Nicolau Dino que teve 608 votos
Já nos estados, por previsão constitucional (artigo 128, parágrafo 3º – vide ilustração acima), os Procuradores-Gerais de Justiça são, obrigatoriamente, indicados pelo governador a partir da lista tríplice definida por consulta direta a todos os membros da ativa do respectivo Ministério Público Estadual. No caso do Rio de Janeiro, cerca de mil promotores e procuradores de Justiça podem participar desta indicação.
Logo, a sucessão de Gussen depende muito mais dos próprios membros do MPE do Rio de Janeiro do que de acertos a serem feitos por Cláudio Castro ou qualquer outro governador. Ele terá que optar entre os três nomes mais votadas pelos promotores e procuradores de Justiça. Se entre eles houver algum bolsonarista, é uma questão de escolha dos promotores e procuradores. Não de conchavo político do governador com quem quer que seja.
Verdade que entre os membros do MPE do Rio já surgiram alguns bolsonaristas, há muitos direitistas que saíram dos armários e uma quantidade ainda maior de antipetistas. Mas, em geral, a categoria mantém certo controle na escolha dos chefes, ainda que alguns ex-procuradores de Justiça tenham tido passado bastante duvidoso e realizado acordos espúrios, notadamente durante o governo de Sérgio Cabral. Quem conhece aquela casa diz que dificilmente bolsonaristas estarão entre os três mais votados.
Ao mesmo tempo, independentemente do nome a ser escolhido para substituir Gussen a partir de 17 de janeiro, o futuro Procurador-Geral de Justiça do Rio terá muita pouca influência nas investigações em torno de Flávio Bolsonaro & Fabrício Queiroz. Trata-se de um caso já bastante adiantado e que, como Mônica Bergamo anunciou neste sábado (29/08) em sua coluna na Folha de S. Paulo, já na semana deve ser motivo de denúncia judicial contra os envolvidos. Poderá ser apresentada ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça, embora os promotores preferissem protocolá-la na primeira instância, por não reconhecerem o direito ao foro especial ao ex-deputado estadual, Flávio Bolsonaro, hoje senador.
Ou seja, ainda que a previsão de Mônica não se confirme – hipótese pouco provável por ser conhecer bem a seriedade do trabalho dela – muito certamente neste mês de setembro a questão envolvendo o senador, Queirós, os familiares deste e os demais cúmplices, já estarão ajuizadas. Parte-se do princípio, com base em tudo o que já foi noticiado, que nenhum magistrado deixará de receber a acusação, instaurando a ação penal.
Isso independerá de o Supremo Tribunal Federal (STF) bater o martelo a respeito do local onde o hoje senador deve ser julgado. Fará isso no bojo da Reclamação apresentada pelo Ministério Público do Rio, contra a decisão do órgão especial do Tribunal de Justiça fluminense que deu ao ex-deputado estadual o foro na segunda instância. Uma Reclamação que tem o ministro Gilmar Mendes como relator e deve ser pautada para decisão dos demais ministros da segunda turma daquela corte. A prevalecer o entendimento anterior dos ministros, o processo cairá nas mãos do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, titular da 27ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro.
Essa investigação, não se pode esquecer, vem sendo feita pelo MPE desde 2008. Os promotores que cuidam dela, ao longo deste período, diferentemente do que ocorreu com a Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba, respeitando o devido processo legal, amealharam grande quantidade de provas que evidenciam as digitais do filho 01, Flávio – e algumas também do pai, Jair Bolsonaro – no esquema criminoso de peculato, ou seja, subtração ou desvio de dinheiro público, através das nomeações de funcionários fantasmas na Assembleia Legislativo do Rio (Alerj)
Mesmo que a denúncia, em uma hipótese difícil de se acreditar, não saia antes da substituição do procurador-geral de Justiça, quem assumir o cargo pouco poderá fazer para impedir a abertura desta ação penal, tal a prova material amealhada e as informações que a sociedade possui a respeito.
A interferência do futuro procurador-geral, portanto, poderá ser tentada ao longo da tramitação do processo, mas este já estará sob o comando de um magistrado, seja de primeira ou segunda instância.
Não muito diferente é a situação do filho 02, Carlos Bolsonaro, cujo esquema de rachadinha no seu gabinete na Câmara dos Vereadores começou a ser investigado mais recentemente. Esta sim, se demorar, poderá ficar para ser decidida no próximo ano, com um novo Procurador-Geral. Mas deve-se recordar também que Carlos, por ser vereador, perdeu o foro especial que a Constituição do Estado lhe ofertava, ilegalmente.
Foi a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que, acolhendo voto do ministro Alexandre de Moraes, no último dia 13 de junho, considerou inconstitucional a prerrogativa de foro estabelecida pela Constituição do Estado do Rio em favor dos parlamentares municipais (vereadores). Logo, as investigações sobre o 02 dos Bolsonaros continuarão nas mãos de promotores de primeira instância.
Cabe ainda lembrar que até as investigações em torno os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes, pouca interferência poderão sofrer, uma vez que já se encontram em estado bem adiantado também. Nesse crime, aliás, já se afastou a possibilidade de envolvimento dos Bolsonaros. Resta, porém, uma melhor apuração das relações deles com as milícias que se espalham pelo Rio.
Ainda que membros de todos os ministérios públicos tenham autonomia de ação, podendo agir sem sofrerem interferência das suas chefias, é verdade que há sempre formas de procuradores-gerais de Justiça interferirem em determinadas investigações. Mas são casos bastante específicos, mais difíceis de ocorrerem.
Enfim, no debate que se deve travar sobre a legalidade do afastamento de Witzel, não é possível alimentar as teorias conspiratórias que enxergam nele um jogo direto de interesse dos Bolsonaristas por conta das tramoias que seus filhos patrocinaram com servidores fantasmas tanto na Assembleia como na Câmara dos Vereadores do Rio. Especialmente no caso do 01, cujas ilegalidades já foram levantadas e em breve devem ser apresentadas, como denúncia, ao Judiciário. Não haverá possibilidade de retorno.
A família presidencial passou a ter interesses em derrubar o governador do Rio, por motivos diversos, em especial quando ele, em uma elucubração sem pé nem cabeça, anunciou o desejo de se candidatar à Presidência da República. Hoje, isso soa como mera loucura, até por ajuda do próprio Witzel.
Em apenas 20 meses de desgoverno ele já deixou um rastro imenso de irregularidades, em especial na área da saúde. Lembre-se, que bem recentemente, em endereços ligados ao um dos seus homens de confiança, o ex-secretário de Saúde Edmar Santos, foram encontrados nada menos do que R$ 8 milhões em espécie. Agora, Witzel e seus cúmplices, a começar pela sua mulher, precisam responder por todas estas ilegalidades. Porém, isso deve ser feito dentro do devido processo legal, respeitando-se sempre o Estado Democrático de Direito. Que assim seja.
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