No início de 1977, a psicopedagoga Divina Maria e seu marido, o engenheiro agrônomo João Benko Neto, após alguns anos de vida em comum com outros casais no que batizaram de Comunidade Uru, trocaram Uberlândia, no triângulo mineiro, pela pequena cidade goiana de Abadiânia, à beira da BR-060, no meio do percurso entre Goiânia e o Distrito Federal.
Foram recomeçar a vida no sítio Emaús. Ali, desde os anos 60, se recolhia o frei dominicano Mateus Rocha depois de ver interrompida, pelo golpe militar de 1964, sua experiência como reitor da Universidade de Brasília (UnB). Responsável, no final dos anos 50, pela criação, em Belo Horizonte (MG), dos conhecidos grupos da Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Universitária Católica (JUC), Frei Mateus foi quem apoiou, incentivou e orientou a comunidade Uru. Ao vê-la desfeita naquela época dura da ditadura militar – “imaginaram até que nós treinávamos jovens para a guerrilha do Araguaia”, explicou Benko, certa feita – o religioso acolheu o casal, na época apenas com sua primeira filha, Potira.
No último dia 22 de junho, após 60 dias internado em UTI na capital do estado, Benko retornou à Abadiânia para ser enterrado na cidade onde conviveu dia a dia com Frei Mateus, até 1985, quando um acidente de carro levou seu amigo e apoiador. Ao despedir-se do município, 43 anos depois de ali ter aportado de mãos vazias, o engenheiro agrônomo deixou um legado considerável. Legado construído pelo casal com “força, coragem, determinação, que sempre adubaram o nosso sagrado chão”, como resumiu Divina no poema recitado ao final da celebração eucarística em memória do seu companheiro de 50 anos, segunda-feira passada (29/06).
Com perseverança, Benko e Divina firmaram-se na cidade a partir de uma barraca erguida à beira do asfalto da BR-060, onde comercializavam frutas, plantas ornamentais, mudas, cerâmicas, etc. Embora aparentemente fosse algo amadorístico, tiveram a preocupação de cumprir formalidades. Na época, registraram oficialmente a empresa que criaram, inclusive providenciando seu CNPJ: Jerivá.
Embora montada pelo casal, a barraca atendia aos demais moradores da região, como descreveu o próprio Frei Mateus, em carta endereçada a Herbert Souza, o Betinho, que naquela época, 1978. vivia no exílio e era muito mais conhecido como “irmão do Henfil”:
“Quem produz alguma coisa, vende na barraca. É aberta a todos. Dá alguma coisa”, registrou o religioso ao amigo dos tempos de JEC e JUC. Assim como Betinho, o próprio Henfil, além de outros jovens mineiros como Carlos Alberto Libânio Christo, Frei Betto, e Vinicius Caldeira Brant (já falecido) formaram-se politicamente nos movimentos que Frei Mateus incentivou.
Preocupação ecológica sempre
Nos anos iniciais do casal em Abadiânia, a barraca “dava” muito pouco. Benko dedicava-se principalmente às plantas ornamentais, cultivadas a partir do conhecimento adquirido na faculdade e da experiência na Comunidade de Uru. O negócio, porém, ganhou impulso a partir de 1979, após exporem as plantas em Brasília, durante dois fins de semana, no Clube da Imprensa e no Iate Club. Com elas – e o espaço obtido na mídia – conquistaram fregueses para a barraca.
Às plantas ornamentais, frutas e legumes que produziam em Emaús, logo juntaram o café, o pão de queijo e quitutes que Divina até hoje prepara divinamente. Assim, pouco a pouco o negócio prosperou e abriu vagas para outros moradores da região. Sempre com a preocupação de o trabalho ser “ecologicamente correto, socialmente responsável e economicamente viável”, como descrevia Benko ao falar da iniciativa. Um negócio que cresceu nessas quatro décadas.
O “Complexo Jerivá” tem hoje quatro pontos de venda – duas lojas na BR-060, ambas em Abadiânia, e outras duas nos shoppings Flamboyant (em Goiânia) e Outlet Premium (em Alexânia) – e os chamados “pontos personalizados” na rede de supermercado Pão de Açúcar, também em Goiânia. As lojas contam com cafeteria, lanchonete, restaurante com bufê (comida servida em panelas de ferro) e empório.
Até o projeto arquitetônico dos prédios teve preocupação com a ecologia como, por exemplo, reaproveitamento da água. Para tal, os Benkos contaram com a ajuda de um amigo conquistado na convivência com Frei Mateus: o arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o “Lelé”.
“Lelé”, ao lado de Oscar Niemeyer, participou da construção de Brasília. Compôs ainda a primeira turma de professores da faculdade de arquitetura da UnB, onde conheceu Frei Mateus. Demitiu-se, em 1967, junto com 209 professores e servidores, em protesto contra a repressão na universidade. Anos depois, ao assumir a construção do Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. recorreu a Benko. Encarregou-o de criar o jardim que permanece até hoje em torno do prédio
Técnicas agrícolas compartilhadas
Para abastecer as lojas, o grupo conta com a Fazenda Jerivá com 175 hectares, dos quais 66 (37%) são destinados ao cultivo da safra. Tem ainda uma moderna agroindústria que prepara os produtos oferecidos nos empórios das suas lojas, garantindo assim o slogan “De nossa fazenda para sua mesa”.
Ao todo, o Complexo Jerivá, que vem sendo administrado por Fernando, um dos filhos do casal, garante emprego direto para cerca de 320 pessoas. Eles compõem a chamada “Família Jerivá”. Muitos dos antigos colaboradores aposentaram-se, mas continuaram atuando. Alguns acompanham os Benkos desde os primórdios da empresa.
As lojas do Jerivá são por demais conhecidas entre aqueles que circulam por Goiás. Talvez, o que poucos de seus frequentadores saibam é como tudo aquilo foi criado e é gerido. O que existe por detrás dos produtos ali comercializados. Da preocupação constante com o bem estar de todos e do respeito à natureza na produção agrícola que desenvolvem.
Uma preocupação que atraiu à Fazenda Jerivá técnicos de diferentes países. Em 2015, recebeu a visita de representantes da África (27 pesquisadores), América Latina e Caribe (10) e Brasil (35). Foi promovida pela Embrapa, dentro do programa Plataforma de Inovação Agropecuária (Agricultural Innovation Marketplace). A meta era conhecer técnicas que beneficiem pequenos produtores, promovendo inovação e investimentos em pesquisa e desenvolvimento agrícola. As visitas continuam ocorrendo, embora de forma esporádica e em menor número de técnicos.
Uma das características do trabalho no Complexo Jerivá é aliar a criação de animais com a produção vegetal, usando os insumos da propriedade em todo o processo produtivo. Um modelo de produção integrada e sustentável que preserva a qualidade do solo e das fontes de água. Desta forma, dispensam o uso de ações danosas como os agrotóxicos, as queimadas e os desmatamentos.
Uma das características do trabalho no Complexo Jerivá é aliar a criação de animais com a produção vegetal, usando os insumos da propriedade em todo o processo produtivo. Um modelo de produção integrada e sustentável que preserva a qualidade do solo e das fontes de água. Desta forma, dispensam o uso de ações danosas como os agrotóxicos, as queimadas e os desmatamentos.
O baixo uso de insumos externos é possível graças à reutilização de compostos orgânicos, que voltam para terra e reduzem a dependência de adubação química. Entre os exemplos das práticas utilizadas na fazenda estão o soro de leite, resultado do processamento de laticínios, reutilizado na alimentação de suínos; as palhas e sabugos de milho, advindos da pamonharia, servem para o consumo dos bovinos; os bagaços das laranjas utilizadas para fazer suco, vão para a compostagem para produção de milho; a cama de vaca e frango, usadas para adubação na produção de milho, após a compostagem.
Curiosamente, na mesma época em que os Benkos aportaram em Abadiânia, outro João mudou-se para a cidade, decidido a montar seu centro de mediunidade. Foi muito badalado, inclusive internacionalmente. Em 2018, porém, ao virem à tona os escândalos sexuais que protagonizou, levou o nome do município para as páginas policiais dos jornais, internacionalmente. Seus escândalos até hoje causam enormes prejuízos aos munícipes.
João Benko, quatro anos mais novo, sem alarde nem escândalos, conseguiu, com sua fiel companheira Divina e, depois, com os filhos Potira, João e Fernando, erguer em Abadiânia um projeto ecológico e politicamente correto. Não foi pouca coisa. Mas o legado que deixa ultrapassa os “negócios” que o casal montou ao longo destas quatro décadas.
Discípulos de Frei Mateus, ambos desenvolvem e incentivam todo um trabalho comunitário. O Sítio Emaús há alguns anos foi por ele adquirido da Congregação Dominicana, com o compromisso de mantê-lo, por duas gerações, como um centro de encontros da comunidade local. Ou seja, seus filhos já assumiram o compromisso de continuarem abrigando o povo da região em busca de soluções para seus problemas. De forma fraterna, ao estilo das antigas Comunidades Eclesiais de Base, ainda que não seja uma.
Entre eles, tal como descreveu Benko em uma recente mensagem encaminhada ao editor deste Blog, continuará valendo o ensinamento de Frei Mateus, em torno de quem tudo isso começou. Na mensagem enviada, explicou:
“Somos de uma mesma origem – Frei Mateus – e ainda mais, somos de Uru. Então as coisas funcionam assim: eu precisei comprar alguma coisa, ia no caixa em comum e pegava o necessário. Assim as coisas funcionam então. Uns nos ajudaram no início, agora nós os ajudamos e, amanhã, estes mesmos ajudam alguém que esteja necessitando. É assim que as coisas funcionam. Abraços fraternos dos goianos“.
Talvez nem sempre “as coisas” funcionem como Benko descreveu. Ainda assim, vale o ensinamento que o casal sempre repassou aos que com eles conviveram. Foi lembrado por Divina no poema declamado na belíssima liturgia em homenagem ao companheiro de toda a vida, presidida por outro amigo do casal, o frei dominicano José Fernandes (assista aqui).No poema, Divina lembrou:
“Nossos sonhos, ideais, nunca, nunca foram pequenos. Mesmo nas agruras, miramos sempre longe”.
Que assim seja!
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5 Comentários
Morava em Brasília e desde 1975 ia
mensalmente a .Goiânia. Jerivá sempre foi e ainda e parada obrigatória. Conheci Frei Mateus em Brasília e o visitava na L-2 norte. Senti muito a morte de seu fundador e desejo que seus herdeiros possam continuar a obra de seu pai.
Esse joão ( minúsculo) que de Deus não tem nada, sinto muito, mas estragou essa bela história… o melhor é deletar essa parte. Parece que onde Deus cria o Éden, sempre aparece o demônio dissimulado..e tenta estragar tudo.
Prezado Marcelo Auler,
Belíssima história!
Contudo, a inclusão de João de Deus e a referência explícita à mediunidade nada acrescentam, exceto, possivelmente, o efeito – intencional ou não – de criminalizar também a mediunidade, contrapondo-a com a excelência do empreendimento de raízes espirituais católicas.
No imenso território pátrio, há muitos empreendimentos de excelência, inspirados pelas mais diversas tradições espirituais / religiosas, como é o caso narrado nessa belíssima histórica. Não será difícil encontrar, em cada caso, algum criminoso católico por perto! Mas isso não é necessário, de modo algum, porque todos esses empreendimentos tem valor próprio e não precisam de comparações para serem enaltecidos.
Prezado André
Não houve intenção, implícita ou explícita, de criminalizar a mediunidade. Mas sim de mostrar a diferença entre um João que foi incensado e bajulado, e acabou manchando a imagem de Abadiânia, e outro que, em silêncio, sem que a maioria percebesse, criou e deixou um legado importante para a cidade. Independentemente de credos religiosos.
abraços
Gostei muito do texto. Acho quel traduziu o pouco que conheci do casal. Parabéns.