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Marcelo Auler

Em abril de 2019, ao assumir o cargo de presidente do Grupo de Educação Fiscal Cidadã, na Secretaria Estadual de Educação e Cultura (SEEC) do Rio Grande do Norte, a auditora do Tesouro Estadual Alyne de Oliveira Bautista encontrou em sua sala seis mil livros de cidadania destinados a alunos das escolas públicas. Uma publicação elaborada pelo governo do Ceará que além dos impressos doou os direitos autorais do conteúdo ao governo potiguar para novas edições, caso necessário.

Com toda esta herança em seu gabinete, quatro meses depois, em agosto, Alyne se surpreendeu ao constatar que a SEEC estava adquirindo uma enorme quantidade de cartilhas também destinadas às escolas públicas, com conteúdos semelhantes às que dispunha em estoque vindas do Ceará. Uma compra no valor de R$ 3.875.370,00, que estava sendo realizada com uma alegada “inexigibilidade de licitação”, apesar do alto valor.

Tudo para ser utilizado na realização do “Setembro Cidadão”, programa cívico criado através de lei estadual promulgada sob desconfiança de atender interesses privados. Para respeitar a lei, a secretaria encampou o Programa Brasileiro de Educação Cidadã (PROBEC), que incluí a “capacitação do corpo docente multiplicador e a aquisição de cartilhas intituladas Cidadania A-Z”. Apesar do nome, o PROBEC é desenvolvido e coordenado por uma empresa privada: o Centro Brasileiro de Educação e Cidadania – CEBEC.

A aquisição do material pela gestão de Fátima Bezerra (PT) foi publicada no Diário Oficial de agosto de 2019. É a terceira “compra” efetuada pelos governos do Rio Grande do Norte junto ao CEBEC. As anteriores, também com inexigibilidade de licitação, foram no governo de Robison Faria (PSD): em 2016 (valor de R$ 1.300.000,00) e 2018 (R$ 450.000,00), desta feita através da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP).

Terremoto na vida pessoal culmina com prisão

No Diário Oficial,em agosto, o Contrato com a inexigibilidade de licitalçai.

O CEBEC, na Junta Comercial, está registrado em nome do juiz estadual Jarbas Antônio da Silva Bezerra, titular da 16ª Vara Criminal de Natal, e da servidora do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RN), Lígia Regina Carlos Limeira. Oficialmente, sua administradora é Tania Maria de Oliveira Patrício.

O que Alyne sequer imaginava é que a descoberta da possível malversação das verbas públicas naquele agosto (2019) provocaria um terremoto na sua vida pessoal. Culminou, no transcorrer dos 21 meses subsequentes, com um total de sete ações judiciais, um processo administrativo e, inacreditavelmente, sua prisão preventiva, executada na manhã da quarta-feira, 14 de abril. Decorridos sete dias, na noite desta terça-feira (20/04), ela ganhou direito à liberdade através de uma liminar concedida pelo desembargador Gilson Barbosa, do Tribunal de Justiça do Estado. Foram sete dias recolhida à Penitenciária Feminina do Complexo Penal Dr. João Chaves, em um espaço com outras três presas.

Alyne, com 53 anos de idade, dos quais 22 dedicados ao serviço público, não tem nenhuma mácula em sua ficha profissional, como atestou nota oficial emitida por quatro entidades representativas dos auditores fiscais: Sindicato dos Auditores Fiscais do Tesouro Estadual do Rio Grande do Norte (SINDIFERN), Associação dos Auditores Fiscais do RN (ASFARN), Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (FEBRAFITE) e Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO). As entidades afirmam:

Alyne é servidora pública estadual há 22 anos, tem uma ficha funcional limpa, jamais foi penalizada nem mesmo com uma advertência funcional, não tem ligações com o crime organizado, nunca foi condenada em quaisquer ações judiciais ao longo de sua vida, tem residência e local de trabalho fixos, e sempre pautou sua vida funcional e de cidadã pela civilidade e pelo cumprimento da lei. A sua prisão não está relacionada a qualquer conduta de improbidade administrativa no exercício de sua função de Auditora Fiscal e, ao que tudo indica, é consequência de um desenrolar de fatos a partir de uma denúncia feita por ela em 2019 e acatada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte, que resultou na suspensão de um contrato entre o Governo do Estado e uma empresa fornecedora de serviços”, diz a nota.

Crimes com penas de detenção

A prisão foi decretada pela juíza Ada Maria da Cunha Galvão, da 4ª Vara Criminal de Natal, atendendo ao pedido da delegada Karla Viviane de Souza Rêgo, da Delegacia de Defesa do Patrimônio Público e do Combate à Corrupção – DECCOR, após parecer favorável do Ministério Público. Na decisão judicial não fica explícito os crimes pelos quais a auditora é acusada. A mesma juíza, porém, em 2 de março, acatou denúncia contra a Alyne.

Ela foi apresentada pela promotora Ana Maria Moraes Machado, com base na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019). Uma lei promulgada em resposta ao ativismo acusatório promovido pelas polícias, ministérios públicos e judiciário, em torno de operações policiais realizadas nos últimos anos em todo o país. Agora, em Natal (RN), está sendo usada contra quem apontou possíveis desvios na administração pública.

Curiosamente, os crimes imputados à auditora – abuso de autoridade e desobediência (arts. 27 e 33) – não preveem a pena de reclusão. No máximo detenção, que só poderia ocorrer após sentença transitada em julgado. O processo contra Alyne, entretanto, mal começou.

O abuso de autoridade é descrito no art. 27 como “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.

O muiz Jarbas Antônio da Silva Bezerra e a cartiljha A-Z (foto: reprodução da internet)

A desobediência, no caso de Alyne, é atribuída ao suposto descumprimento de ordem da 3ª Vara Cível de Natal. Em maio do ano passado o juízo impediu a auditora de postagens em redes sociais. Consta que as postagens tiveram continuidade assim como mensagens enviadas a variados destinatários, por e-mail e/ou WhatsApp. No pedido encaminhado à juíza em 05 de abril, a delegada Karla Viviane fala ainda de supostas ameaças da auditora ao juiz Silva Ribeiro, sem descrevê-las.

Como alega a defesa da auditora entregue aos advogados José Araújo e seu filho, Joseph Araújo da Silva Filho, a desobediência teria ocorrido com relação à ordem do juízo da 3ª Vara Cível. Logo, deveria ter sido comunicada ao próprio juízo cível, para que tomasse as providências e as sanções que entendesse devidas. Como aplicar as multas previstas na decisão. Mas o juiz Silva Bezerra preferiu ingressar com representação criminal na Delegacia. para forçar a prisão da mesma, que acabou decretada pela 4º Vara Criminal de Natal.

No domingo (18/04) este BLOG procurou o juiz Silva Bezerra por meio do WhatsApp. Recebeu dele dois documentos – um relatório da delegada Karla Viviane, de 19 de janeiro, e a denúncia apresentada pela promotora Ana Márcia. Após ler ambos e incontáveis outros documentos do caso, o BLOG encaminhou-lhe, pelo mesmo aplicativo, algumas questões básicas, em busca de melhores esclarecimentos. Uma delas dizia respeito justamente à prisão por conta de possíveis crimes brandos, como desobediência e abuso de autoridade:

Questiono: Como magistrado o senhor entende que casos de desobediência, sem que ocorra violência, devem ser levados ao encarceramento? É a medida mais acertada? Isso não colide com toda a jurisprudência que vem sendo traçada pelos tribunais superiores de evitar o encarceramento?

Como resposta (veja ilustração), ele alegou impedimento em responder à diversas questões que apresentamos (que reproduziremos ao longo deste texto) em consequência do sigilo do processo. Um sigilo que já tinha sido quebrado, tanto que ele, na segunda-feira, compareceu ao programa Meio Dia RN, na Rádio 96fmnatal. Apesar disso, não se preocupou em nos responder e esclarecer como ele, como juiz criminal, entende a questão do encarceramento de réus acusados de infrações de menor potencial ofensivo.

Cipoal de processos

Esse imbróglio jurídico em torno dos contratos da CEBEC com os governos do Rio Grande do Norte surgiram como respostas às denúncias encaminhadas pela auditora Alyne não apenas a órgãos de controle. Elas também foram postadas em suas redes sociais e encaminhadas a políticos de uma maneira em geral.

Por sua vez, o juiz Silva Bezerra ingressou com diversas ações judiciais entre as quais os processos citados acima. Promove, na verdade, um verdadeiro “assédio judicial” contra a auditora. Ele e sua sócia na CEBEC, entendendo-se vítimas de perseguição, são os responsáveis pelas sete ações judiciais – apresentadas em três varas diferentes – e a administrativa. Ou seja, uma típica tentativa de intimidá-la

Promover ações em sua defesa é direito de todo e qualquer cidadão. Inusitado é a quantidade de processos criados. Mais ainda inusual é o fato dele distribuir ações criminais em torno da mesma disputa em juízos diferentes. Como se estivesse buscando decisões mais favoráveis.

As ações tiveram início a partir do momento em que o magistrado conseguiu identificar o e-mail da auditora nas denúncias que foram formuladas sob segredo, um direito do denunciante previsto na legislação. Isso faz com que Alyne e seus defensores o acusem de, com a ajuda da polícia e do judiciário, burlarem a proteção da identidade dos denunciantes de ilícitos e de irregularidades praticados contra a administração pública. Esta proteção está prevista na legislação e visa exatamente garantir a identidade de quem denuncia.

Na mensagem de WhatsApp que encaminhamos ao juiz no domingo também questionamos esta quebra de sigilo:

Questiono: Ou seja, houve quebra de sigilo. Isso não fere a legislação que garante o direito do denunciante ser preservado? Caberia à polícia ou ao órgão que recebeu a denúncia, caso verificasse ser ela falsa, investigar seu autor?

O questionamento não mereceu resposta do juiz, como explicamos acima. Ao participar do programa de rádio na segunda-feira, porém, ele comentou essa quebra do sigilo. Pelo que disse, ela não ocorreu em torno das denúncias apresentadas aos órgãos de controle.

Ações surgirtam após identificação da denunciante

Com base em decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça (STJ), obteve judicialmente o direito a uma perícia digital para identificar quem abastecia um site, mantido no exterior, no qual estavam publicadas as denúncias que o atingia. A perícia apontou o e-mail da auditora, dando-lhe a garantia de que as informações sobre os contratos sem licitação foram repassadas por ela.

Nesse caso específico, Silva Bezerra começou, em janeiro de 2020, ingressando com ação criminal por crime de calúnia, distribuído à 3ª Vara Criminal. Depois, em fevereiro, na mesma Vara, apresentou uma Representação Criminal por crime contra a honra. Em abril, apresentou uma ação de denunciação caluniosa, também na 3ª Vara Criminal.

Mas ali, quando o juiz titular percebeu que as denúncias levadas ao conhecimento dos órgãos de controle estavam sendo apuradas, decidiu sobrestar os processos aguardando uma definição de tais investigações, tal como mostraremos mais abaixo.

Juízos criminais diversos

Ainda em maio, o juiz Silva Bezerra e sua sócia ingressaram com uma ação cível de indenização por danos morais contra a auditora. Pede R$ 100 mil. Foi distribuída à 3ª Vara Cível de Natal e, nela, o juízo o atendeu determinando que a auditora deixasse de fazer postagem nas redes sociais.

Foi por ela ter, teoricamente, desobedecido essa determinação que Silva Bezerra alega a desobediência. Mas ele não a comunicou à Vara Cível. Preferiu apresentar uma representação junto à delegada Karla Viviane, da Delegacia de Defesa do Patrimônio Público e do Combate à Corrupção – DECCOR. Esta instaurou o Inquérito por crimes de desobediência e abuso de autoridade que acabou distribuído à 4ª Vara Criminal quando, pelos tramites processuais, deveria ter sido encaminhado por prevenção à 3ª Vara Criminal onde correm as demais ações envolvendo o caso.

Foi nesse processo da 4ª Vara Criminal que o Ministério Público apresentou a denúncia, acatada pela juíza Ada Maria. Mesmo processo onde acabou decretada a prisão da auditora. Uma das teses dos advogados José e Joseph Araújo na defesa de Alyne é justamente o erro na distribuição do caso.

Eles apontam a prevenção da 3ª Vara Criminal. Prevenção que existe para evitar divergências de entendimento em um mesmo caso, como ocorreu agora, pois enquanto o juízo da 3ª Vara suspendeu as ações no aguardo da definição das investigações que correm nos chamados órgãos de controle, a juíza da 4ª Vara, em posição divergente, acatou a denúncia e até decretou a prisão da auditora.

Alyne não nega que após ter apresentado suas suspeitas a seus superiores no Governo do Estado, através da Secretaria Estadual do Tesouro (SET), recorreu aos órgãos de controle – Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Corregedoria do Ministério Público do Rio Grande do Norte e Tribunal de Contas do estado (TCE). O fez, inicialmente, mantendo o segredo de sua identidade, como previsto na legislação. Depois de ter sido identificada, passou a se apresentar como “auditora fiscal”, o que leva o juiz vítima de suas denúncias a acusa-la de “abuso de autoridade”, por não ter nas suas funções de auditora a responsabilidade de fiscalizar contratos.

De qualquer forma, acusá-la de requisitar instauração de procedimento investigatório “à falta de qualquer indício da prática de crime” (tal como prevê o artigo no qual a enquadraram) é, no jargão popular, uma “forçada de barra”. Ao pé da letra, a auditora não requisitou nada. Ao constatar possíveis irregularidades no uso de dinheiro público, alertou quem de direito a respeito.

Ela alega que mais do que direito de fazê-lo como cidadã, na condição de funcionária pública tem obrigação de assim agir. De qualquer forma, caso fossem informações inverídicas, talvez pudesse responder por denunciação caluniosa. Acusação já levada ao juízo por Silva Bezerra, em um dos processos sobrestados.

MP já investigava o caso

Mas não foi isso que se constatou, como destacou o juiz Raimundo Carlyle, da 3ª Vara Criminal de Natal, nas primeiras ações impetradas pelo juiz Silva Bezerra contra a auditora por supostos crimes de injúria, difamação e calúnia. Como reportamos acima, ele negou os pedidos cautelares feitos na inicial que visavam impedir a divulgação dos fatos denunciados. Tentou conseguir na Vara Criminal o que já tinha obtido na Vara Cível: a proibição da auditora fazer postagens em redes sociais.

Para negar o pedido, o juiz Carlyle recorreu aos procedimentos administrativos “instaurados para apurar as alegações da querelada imputadas ao querelante junto ao Conselho Nacional de Justiça e Corregedoria de Justiça do Rio Grande do Norte (Pedido de Providências nº 0001756-73.2020.2.00.0000) e Tribunal de Contas do RN (Processo nº 2781/2020-TC).” Em seguida expôs:

(…) considerando que um dos fundamentos da medida seria o próprio interesse público em apurar a veracidade de notitias criminis, e, sendo assim, diante da deflagração de procedimentos administrativos que visam justamente esclarecer tais relatos, fica prejudicado, por ora, o pedido cautelar encetado pelo querelante em desfavor da querelada, medida já obtida, inclusive – segundo noticiado – em processo judicial civil perante a 3ª Vara Cível da Comarca de Natal, seara apropriada para obtenção do desiderato pretendido.

Na realidade, mesmo antes dos alertas da auditora, os contratos da CEBEC com a Secretaria de Educação despertaram a atenção da 1ª Promotoria de Justiça de Parnamirim. Ali teve início uma investigação (Notícia de Fato nº 31/2017) em de 2017, depois convertida em inquérito civil em 1 de março de 2019 (antes, portanto, de Alyne conhecer os fatos, em agosto). Isto é relatado em despacho do promotor Leonardo Cartaxo Trigueiro, 46ª Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Natal, datado de maio de 2020, que a partir da denúncia de Alyne também se debruçou sobre o caso.

TCE confirma suspeitas da auditora

Já no Tribunal de Contas do Estado as informações da auditora do tesouro foram esmiuçadas por três Auditores de Controle Externo da Diretoria de Administração Direta (DAD). Eles não só confirmaram as possíveis irregularidades no Contrato nº 28/2019, como propuseram a suspensão do mesmo. Foi o que levou a conselheira Maria Adélia Sales, relatora do Processo nº 2781/2020-TC, a deferir decisão cautelar, em 26 de maio de 2020, que determinou a suspensão do pagamento de R$ 2.015.880,00 dos R$ 3.875.370,00 acertados na contratação.

Cim antecedência o CEBEC patentou a marca da flâmula no INPI.

O que despertou a curiosidade do corpo técnico do TCE foi a “íntima ligação [da CEBEC] com a própria propositura da lei [Lei 494/2013] que instituiu o ‘Dia Estadual da Educação Cidadã’ e do mês ‘Setembro Cidadão’, protocolado no Gabinete Civil da Governadoria do Estado em 13/08/2013”.

Ao se debruçarem sobre o assunto, os auditores de controle externo verificaram a cronologia dos fatos:

  • Em 13 de agosto de 2013, o juiz Silva Bezerra e Lígia Regina encaminharam ao gabinete da então governadora Rosalba Ciarlini Rosado (PP) a proposta de projeto de lei instituindo o dia estadual da educação cidadã e a festividade do mês “Setembro Cidadão”;
  • Oito dias depois, em 21 de agosto, é formalizado o registro da empresa CEBEC na Junta Comercial;
  • Sete dias após a oficialização da abertura da empresa e quinze dias após a proposta feita pelos agora sócios na CEBEC, o governo do estado sancionou a Lei Complementar Estadual 494/2013, que criou as comemorações;
  • Em fevereiro de 2014 – seis meses após ter sido registrada – a CEBEC ingressou no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) com o pedido da patente do “laço” como símbolo do “SetembroCidadão” (vide ilustração). Obteve direito sobre a marca, por dez anos, em setembro de 2016.
  • Posteriormente, em 26 de setembro de 2018, através de uma nova Lei Complementar Estadual – nº 639/2018, altera-se a Lei 494/2013 incluindo um parágrafo no artigo 1º, que passa então a estipular que “o laço, com as cores representativas da República Federativa do Brasil, simboliza a luta por cidadania.” Símbolo sobre o qual o CEBEC detinha a patente desde 2016.

Na mensagem que o BLOG encaminhou ao juiz por WhatsApp no domingo, questionamos, sem obter resposta:

Qual o objetivo dessa empresa? Por que a criação se deu tão próxima ao pedido da criação do Dia da Educação Cidadã?

Não merecemos resposta, mas na entrevista à rádio, na segunda-feira, o juiz tentou desvincular os fatos, ou seja, a proposta da lei que criava o Dia da Educação Cidadã, do registro da CEBEC na Junta Comercial.

Segundo ele, a empresa foi idealizada por necessidade da emissão de notas fiscais das vendas de livros que ele e a sua sócia editavam, desde 2004. Alegou a demora burocrática para o registro ter saído em 2013.  Já a proposta da legislação decorreu de sua preocupação, há quase duas décadas, com educação cívica.

“Criação de reserva de mercado”

Detalhes do relatório do TCE

No trabalho realizado, os auditores de controle externo não só registraram tais coincidências como analisaram também a questão do símbolo criado para o chamado “Setembro Cidadão” imposto pela legislação estadual, um símbolo que com antecedência a CEBEC tratou de registrar no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) como de sua propriedade:

“(…) o ‘laço’ a que se refere o alterado dispositivo legal [Lei nº 639/2018], ou seja, a ‘flâmula do setembro cidadão’, que simboliza a luta por cidadania, é material de divulgação idealizado e patenteado pela empresa CEBEC – Centro Brasileiro de Educação e Cidadania, como se constata pela leitura dos parágrafos 11 e 12 do ofício encaminhado pela própria empresa no momento em que pleiteia, ela mesma, a contratação.”

Para os auditores, ficava caracterizado “uma forma não comum de criação de reserva de mercado pela própria empresa, pois a ‘própria legislação, de forma oblíqua, terminou por criar um certo direcionamento no que se refere à efetivação das ações educacionais e de divulgação relativas à educação cidadã, na medida em estabeleceu como ícone representativo da atuação estatal, não um símbolo oficial, mas uma marca de propriedade e de uso exclusivo de uma determinada empresa privada’.”

Em uma busca na internet constata-se que um dia depois de a CEBEC receber a concessão da marca desta flâmula, em 21 de setembro de 2016, o então governador Robison Faria promulgou Lei Nº 10.110. Com apenas três artigos, ela institui “a ‘Semana Estadual da Educação Fiscal Cidadã’ no Estado do Rio Grande do Norte”, estipulando que a mesma ocorrerá “naquela que coincidir com o Dia do Auditor Fiscal que é dia 21 de setembro.”

A lei leva ainda a assinatura do então Secretário do Tesouro, André Horta Melo. Este, à época, fez gestões junto ao governo do Ceará conseguindo as Cartilhas lá editadas. Aquelas cujas sobras Alyne encontrou em seu gabinete ao tomar posse.

Mesmo com as cartilhas gratuitas sobrando, no ano de 2016 a CEBEC assinou seu primeiro contrato com o governo do Rio Grande do Norte – Contrato 020/2016 SEEC – com valor de R$ 1.300.000,00. Incluía a aquisição das cartilhas para a “Semana Cidadã”, que ainda não tinha a flâmula incorporada como símbolo.

No domingo, pelo WhatsApp, o BLOG expôs ao juiz a proximidade das datas da concessão da patente da marca e da nova lei do governador Robison Faria e o questionou: “mera coincidência?”.

Não só não tivemos resposta como ainda, na entrevista à rádio, o assunto da flâmula não foi mencionado. Ficou sem explicação.

“Administração pública direcionou a ação”

Os auditores de controle externo também concluíram que o PROBEC (Programa Brasileiro de Educação Cidadã), idealizado pelo Sr. Jarbas Antônio da Silva Bezerra e pela Sra. Ligia Regina Carlos Limeira, com a marca de propriedade e uso exclusivo do Centro Brasileiro de Educação e Cidadania, apresenta, portanto, natureza privada com fins lucrativos. Demonstram assim a característica privada do programa adotado pelo governo do Estado, algo que também pesou na decisão da conselheira.

As conclusões dela simplesmente confirmaram as suspeitas levantadas pela auditora Alyne de favorecimento à CEBEC na sua contratação como empresa privada, com a indevida dispensa de licitação, o que afasta qualquer possibilidade de a auditora do tesouro ser acusada por denunciação caluniosa. De forma clara, Maria Adélia registra:

infere-se, a princípio, que a própria administração pública, revestindo-se de aspectos legais, direcionou as ações de educação e cidadania a uma única empresa privada, impedindo a concorrência não pela natureza intrínseca do objeto a ser contratado, e sim por aspetos extrínsecos e não relevantes (…) a inviabilidade ou a desnecessidade de competição – como forma de justificar a inexigibilidade de licitação – não parecem ter emergido naturalmente; a bem da verdade, tudo indica que foram criadas intencionalmente para atender a um interesse particular.” (grifos do original- g.o.)

Ela ainda deu destaque ao fato de os auditores de controle externo concluírem que a “contratação (…) foi, incomumente, provocada e deflagrada pela própria empresa interessada. O procedimento administrativo é originado com um expediente encaminhado pelo CEBEC ao Secretário Estadual de Educação. Sr. Getúlio Marques Ferreira.” (g.o)

Ou seja, a demanda pela Programa que a Secretaria adotou nas escolas não surgiu do seu corpo técnico como didática a ser adotada na rede estadual de ensino. Ela foi incorporada pela secretaria, sem maiores discussões e debates, a partir de uma proposta apresentada pela empresa da qual o juiz é sócio.

A incorporação do Programa contou com a efetiva participação do juiz nos grupos de trabalho criados em torno deste projeto que comprava os livros da empresa dele. Junto com a sua sócia, inclusive, estava nos grupos de WhatsApp relacionados ao projeto. A administradora da empresa não teve tal participação. Mas, na entrevista à rádio, ele garantiu que não cuidava da parte administrativa, apenas da parte didática.

Esta questão relacionada ao papel do juiz na empresa também foi abordada na mensagem de WhatsApp que o BLOG lhe enviou:

Questiono: Tal comportamento não se confunde com o do administrador de uma empresa? O senhor não participou destas reuniões como empresário envolvido e na defesa dos contratos firmados? Não fere a Lei Orgânica da Magistratura?

Ele, porém, não fez qualquer comentário a respeito. Provavelmente incluiu esse assunto entre os “demais questionamentos” que pretende responder “junto aos órgãos competentes”.

“Cartilhas grátis mais abrangentes”

A conselheira do TCE encampou ainda a análise do corpo técnico de que nada havia a justificar a compra da cartilha que “revela-se como uma espécie de dicionário com a compilação de alguns conceitos básicos, como por exemplo, o que é ‘Água’, ‘Advogado’, ‘Amor’, ‘Bandeira do Brasil’, ‘Cidadão’, ‘Dignidade’, ‘Desemprego’, ‘Ecologia’, ‘Emprego’, ‘Família’, ‘Greve’, entre outros.” (g.o.)

Ela explica: “Ou seja, não houve demonstração de que o material a ser adquirido se reveste de complexidade especial ou extraordinária a demandar a contratação de profissional ou empresa notoriamente especializado(a), existindo materiais (cartilhas) similares inclusive no sítio da internet, disponíveis para download, a maioria de forma gratuita, e que certamente atenderiam as necessidades do interesse público”.

Na decisão, ela reproduz o parecer dos auditores de controle externo que apresentam exemplos das cartilhas semelhantes “e até mais abrangentes, tratando do tema cidadania” que podem ser encontradas no mercado gratuitamente.

São elaboradas por diversas entidades e até mesmo por órgãos públicos e demonstram que “não se verifica qualquer característica, componente, ou particularidade que confira à cartilha Cidadania A-Z o caráter de exclusividade, ou seja, que comprove que apenas ela, de forma, exclusiva, atenderia a pretensão da administração pública, de modo a justificar, portanto, a inviabilidade lógica de licitar.”

O corpo técnico relacionou, como exemplo:

O trabalho dos auditores de controle externo conclui:

No caso desses exemplos de materiais consultados, todos estão disponíveis para download e permitem reprodução de forma gratuita. O que se evidencia com isso é que, em tese, nada obstaria que a Secretaria Estadual de Educação, por meio de convênio, parceria, acordos de cooperação ou qualquer instrumento congênere, obtivesse junto a esses órgãos as informações e as premissas necessárias para obtenção, reprodução, adaptação e implementação do material na rede de ensino pública do Estado do Rio Grande do Norte, o fazendo quer seja através de sua própria estrutura administrativa (órgãos, entidades e quadro de profissionais) ou, eventualmente, por intermédio de instituições de ensino privadas contratadas.”

Na mensagem de WhatsApp, encaminhada domingo, o BLOG também questionou Silva Bezerra a respeito:

Questiono: Fosse o senhor ordenador de despesas dentro do Judiciário a que pertence, o senhor empenharia verba pública em uma cartilha privada, quando poderia ter em mãos o mesmo produto gratuitamente? Com que justificativa?

Foi mais um questionamento sem resposta. Porém, na segunda-feira, no programa de rádio, sem se referir aos comentários do parecer do TCE, ele garantiu que a cartilha tem “simplesmente três cartas de exclusividade. Uma delas é da Câmara Brasileira do Livro. onde Jô Soares é sócio. É uma Câmara seríssima que diz que só existe aquele material didático”. Não ficou claro, porém, se o sócio Jô Soares foi quem avalizou a cartilha para que a Academia concedesse a Carta de Exclusividade.

A denúncia de corrupção desaparece

AO juiz Silva Bezerra denunciou corrupção por escrito e a negou durante entrevista

Quando questionado sobre os motivos de a auditora persegui-lo, como alega ocorrer, o juiz Silva Bezerra relacionava o comportamento dela a uma recusa dele em patrocinar uma peça de teatro infantil, a um custo de R$ 3 mil.

Isso, aliás, consta da representação criminal que apresentou na Delegacia de Defesa do Patrimônio Público e do Combate à Corrupção – DECCOR. Na representação ele diz:

solicitou pagamento de peça de teatro ao ver publicação do contrato do diário oficial, tanto é que junto no grupo de whatsapp, ao lhe ser negado o pedido, passou a denegrir a minha imagem” (sic).

Mas ao conceder a entrevista na Rádio 96fmnatal, na segunda-feira, acusou a auditora de inventar tal denúncia:

Quero deixar bem claro que ela está dizendo uma coisa que eu não disse. Ela está dizendo que eu acusei-a de corrupção. Não. Ela simplesmente fez um pedido de um patrocínio e eu passei para a área administrativa se poderia ou não ceder esse patrocínio e ela, simplesmente ficou, quando teve a resposta negativa, no outro dia nós passamos – está tudo aí registrado – … Diante deste contexto eu respondi que tinha conversado com a administradora que isso aí não é minha área…”

O pedido de patrocínio é admitido por Alyne nas peças de defesa que escreveu. Ocorreu, segundo disse, no final de julho, quando atendeu a um pedido do Secretário de Tributação, em busca de quem patrocinasse o teatro infantil na Semana de Educação Fiscal. Ela ainda buscou auxílio do Sindicato dos Auditores Fiscais do Tesouro Estadual do Rio Grande do Norte (SINDIFERN). Não tendo êxito, procurou pelo juiz Silva Bezerra com que tinha se encontrado, pela primeira vez, em 16 de julho.

A mensagem negando o patrocínio chegou depois de Silva Bezerra saber do questionamento sobre inexigibilidade da licitação

Mas ela nega a relação direta dos fatos feito por ele. Com fotos do WhatsApp mostra que sua negativa ao pedido do patrocínio lhe foi remetida às 11:48 do dia 21 de agosto de 2019. Garante que ele só enviou tal mensagem depois que ela, junto com a Secretária Adjunta, Suely Andrade da SEEC e a assessora desta, Maria Gurgel, terem questionado João Maria Mendonça, coordenador do NEEPDH sobre a contratação da CEBEC com dispensa de licitação. Na ocasião, nervoso, admitiu que a  “a ordem veio de cima”, sem dar mais detalhes.

Na descrição de Alyne, Mendonça, servidor da SEEC, é “amigo íntimo do empresário Jarbas Bezerra” e única pessoa na secretaria que fez avaliação do material da empresa. Trata-se ainda do responsável pela organização dos eventos de Cidadania da secretaria. Ele, após a cobrança feita pelas três, teria telefonado para o juiz Silva Bezerra relatando o pedido de explicações que recebeu, “antes das 11h48min”.

Diz ainda na defesa que escreveu e levou à delegacia, onde exigiram que o documento fosse apresentado por um advogado, que para sustentar a denuncia de corrupção, o juiz inverteu datas e horários dos fatos.

Com base em tais documentos, no domingo, na mensagem de WhatsApp que o BLOG encaminhou ao juiz, contava a pergunta:

Questiono: Houve inversão de datas e horários? O pedido de patrocínio para uma peça infantil pode ser considerado corrupção? O senhor, como magistrado, condenaria alguém com base nesses fatos?

Mais uma vez o questionamento ficou sem resposta. Mas, supreendentemente, na segunda-feira, na entrevista à rádio, o juiz simplesmente negou a denúncia que apresentou escrita à delegacia.

Na sexta-feira (16/04) seus advogados impetraram um Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado. Distribuído ao desembargador Gilson Barbosa, ele não tomou qualquer decisão, preferindo ante pedir informações à juiza Ada Maria, O ofício dela foi encaminhado na segunda-feira, sem nenhuma informação nova. No início da noite desta terça feira ele concedeu a liminar determinando a liberdade da auditora.

 

 

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7 Comentários

  1. Preciso entrar em contato contigo Marcelo, Leonardo Bastos, membro titular do Conselho de ética do PT de Sapucaia do Sul/RS e administrador da TV Repensar e gostaríamos de fazer uma live contigo na TV e parceiros, sobre esse caso da Alyne que está em contato comigo por whatsapp. Por favor entre em contato comigo nas redes sociais como @radiotvrepensar, todas elas e meu e-mail pessoal: [email protected]
    Obrigado

  2. Luiz disse:

    Marcelo Auler é muito bom, vai fundo nas questões e detesta o injustiças.
    Parabéns!

  3. HELDER VALADARES MOREIRA disse:

    Jornalismo feito com seriedade merece credibilidade!

  4. Fatima Regina Lacerda disse:

    Como faço para dar uma contribuição regular ao blog? Parabéns pela excelente matéria

    • Marcelo Auler disse:

      Querida Fatima. Ao final de cada reportagem/postagem do Blog há um quadro explicando como fazer depósitos na conta bancária.

      Esta conta está em nome da empresa M Auler Comunicação e Eventos M.E.
      CNPJ 05.217.326/0001-99
      Banco do Brasil Agencia 0288-7(cuidado, este dpigito as vezes atrapalha)
      Conta Corrente 119025-3

      há a possibilidade de doação pelo PayPal
      Doar pelo PayPal

      Através do botão do PayPal, que redireciona para o sistema de pagamento online mais utilizado no mundo. As transações feitas à partir desse botão serão creditadas diretamente na conta do Marcelo:(Este botão está no site se chega a ele clicando em Ajuda ao Blog que fica ao lado direito do BLOG, embaixo de anuncios)

      Para maiores informações visite http://www.paypal.com.br

  5. paulo sv campos disse:

    Boa noite.

    Muito obrigado por suas excelentes reportagens.

    Felicidades.

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