A censura sem critério nas obras de Chico Buarque
25 de maio de 2015
Compartilho: “Reforma Cunha”: poder da grana e partidos ameaçados
26 de maio de 2015

A noite em que Chico Buarque me mandou à merda!

Marcelo Auler*

Sem sombra de dúvidas, é um lance de sorte a qualquer foca, no início de sua carreira ter a chance de entrevistar alguém do naipe de Chico Buarque de Hollanda. Isso aconteceu comigo, em 1976, quando eu mal completava três anos como repórter.

Ao longo dos meus 40 anos de jornalismo estive frente à frente com Chico Buarque em três ocasiões. Na primeira, em outubro de 1976, a conversa me rendeu a publicação de duas boas entrevistas as quais, levando-se em conta o momento político que vivíamos e a evolução natural pelas quais todos passamos, ainda merecem ser lidas, motivo pelo qual estou compartilhando-as, principalmente para quem não viveu aquela época.

Há nelas coerência e simplicidades, além de uma boa aula sobre o que era a censura aos artistas na época da ditadura militar. Serve também de alerta a quem hoje clama pela volta dos milicos.

O terceiro encontro foi uma pequena roda de conversa, na copa da casa em que ele morava na Gávea, ainda casado com Marieta Severo, em 12 de fevereiro de 1989. Fui ali, pelo Jornal do Brasil cobrir o encontro do já candidato à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, com artistas e intelectuais.

Já na madrugada do sábado (13/02), após os debates na biblioteca, estava no pequeno grupo formado pelo casal de anfitriões, dona Maria Amélia, mãe do compositor, Lula e Frei Betto em um bate papo informal, literalmente na cozinha. Não era propriamente um intruso, embora sem maiores intimidades com o casal, apenas aguardava o momento de, atendendo ao pedido de Betto, levar dona Maria Amélia até sua residência.

Capa do Jornal Movimento  ed.69

Capa do Jornal Movimento ed.69

Foi, porém, no segundo encontro – na noite do dia 27 de dezembro de 1976 – que o foca extrapolou por confiar demais no sucesso das duas entrevistas publicadas (no Jornal Movimento, de 25/10/76, e no Pasquim, nos mês seguinte). Encontrei-o na Capela A do cemitério São Francisco Xavier (Caju, zona Norte da cidade) no velório do dramaturgo Paulo Pontes.

Além da grande amizade, os dois criaram a peça que fez estrondoso sucesso à época, Gota d’Água. Escreviam, há seis meses, uma nova comédia: “O dia em que Frank Sinatra veio ao Brasil”.

Não faltavam motivos, portanto, para o compositor se abalar com a perda do parceiro. Mas, o foca não levou em conta nada disso, e tão logo avistou seu recente entrevistado, confiante e impertinente, aproximou-se pedindo uma declaração sobre o falecido.

Ouvi um sonoro “Vai à merda” que me fez sair da capela sem saber aonde esconder a vergonha.

Afinal, jornalistas, mesmo a serviço, em determinados momentos consegue ser um chato. E eu o fui naquele momento.

Meu primeiro encontro com Chico foi facilitado pelo fato de a entrevista ser para o jornal Movimento, uma publicação da esquerda que circulou entre 1975 e 1981. Chico era membro do Conselho Editorial do jornal, composto por oito personalidades, entre os quais Fernando Henrique Cardoso e Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo

alinhada-Chico-Buarque---Movimento-Pag.16

www.marceloauler.com.br Movimento Ed. 69 Pag. 16

Comecei a escrever no jornal, como colaborador, em dezembro de 1975, quando ainda estava na Rádio Globo. Nossa grande dificuldade era driblar a censura – semanalmente o material redigido era enviado à Brasília para passar no crivo da Polícia Federal – que persistiu do número um (7 de julho de 1975) à edição 154 (12 de junho de 1978). Com uma média inicial de18 textos censurados semanalmente, o jornal viveu sempre com dificuldades econômicas, por não arrecadar com as vendas (cerca de 15 mil jornais) o necessário para a sua produção. A censura também afastava anunciantes.

Foi o próprio jornal que fez o contato com ele. O “gancho” da entrevista era a sua decisão de parar com os shows para dedicar-se mais à produção literária e teatral, além de continuar compondo, como explicou na conversa. Nosso encontro deu-se no teatro da Pequena Cruzada (na Lagoa Rodrigo de Freitas), no meio de uma tarde, pouco antes de um ensaio com o MPB-4 para um show que apresentariam em Roma – o último daquela fase de sua vida.

Na mesma semana em que a 69ª edição de Movimento circulou com a entrevista (25 de outubro) a revista Veja, na sua edição 425, apresentava-o nas suas páginas amarelas, em um trabalho feito por Antônio Chrysóstomo.

Chico foi gentilíssimo, em uma conversa sem qualquer espécie de restrição, na qual falamos de musica, teatro, censura, seu público e outras questões. Tudo, porém, girou em torno da obra do artista. Mesmo sabendo que o material passaria pelas mãos dos censores em Brasília, nada foi deixado de lado. Depois, na edição, alguns cuidados foram tomados. A palavra censura, por exemplo, foi trocada por “problema”, sempre entre aspas. Eram artifícios que tínhamos que usar:

“Não, eu não vou dar este gostinho a ninguém. Os “problemas” continuam existindo, mas em momento algum eu pensei em parar por causa deles, Sempre que uma música não dá insisto com outra, e olha que eu tenho insistido muito”, comentou quando questionado se pararia por conta da censura/”problemas”.

www.marceloauler.com.br Movimento Ed. 69 Pag.18

www.marceloauler.com.br
Movimento Ed. 69 Pag.18

Foi assim, por exemplo, que saiu sua explicação para ter recusado, junto com Paulo Pontes, receber o prêmio Molière, como melhores autores do ano, por conta de Gota D’Água (então em cartaz). Sem falar a palavra proibida, explicou ter condicionado sua ida à possibilidade de denunciar que vários autores deixaram de concorrer com suas obras censuradas.

“Não podíamos aceitar este prêmio. A não ser que fizéssemos esta ressalva em público, e isso ia atrapalhar o brilho da festa. Não permitiram que nós fizéssemos esta ressalva em público, não permitiram que déssemos este pequeno testemunho, então não fomos”.

Algumas questões não foram reproduzidas no texto apresentado aos censores e, portanto, não saíram no jornal. Nem por isso ficaram perdidas. Primeiro eu as usei em um trabalho de faculdade fazendo com o meu grupo um programa radiofônico em que o Chico falava dos seus “problemas” tendo como fundo as músicas “problemáticas”. Fez sucesso.

Dois meses depois, em dezembro, após suspenderem a censura no jornal Pasquim – aonde eu também colaborava – Ziraldo editou toda a parte da entrevista que eu deixara de aproveitar no Movimento (veja postagem abaixo:

A censura sem critério nas obras de Chico Buarque)

Na publicação em Movimento, algumas respostas foram verdadeiras “pérolas”, frases com bastante efeito. Como, por exemplo, ao rebater as críticas ao preço dos ingressos para a Gota D’Água, que diziam não serem preços populares;

“Nunca, nem eu nem Paulo Pontes, falamos que estávamos fazendo teatro para o povo. É impossível fazer teatro para o povo. Teatro para o povo, no Brasil, é novela (…) O que nós tentamos fazer com Gota D’Água é um teatro ao lado do povo, mas sempre tivemos plena consciência de que quem o assistiria seria a classe média. Eu sou um cidadão de classe média e nada me impede de estar ao lado do povo”. Esta frase tornou-se o título da entrevista.

Outra resposta de efeito justificava-se na época quando sua relação com a TV Globo praticamente não existia. Ele admitia fazer trabalhos em televisões, recusava, porém, trabalhos para novelas. Achava que existia uma concorrência desleal delas com o teatro. Quando coloquei a TV Globo na conversa e questionei algum possível preconceito, ele foi direto:

“Não tenho preconceito. Contra a TV Globo eu tenho experiências e experiências que me levam a não querer fazer mais nada para ela. Não é preconceito, seria um pós-conceito”.

Era sua opinião, respaldado em experiências daquela época – 38 anos atrás. Depois disso, muita coisa mudou e ele até fez musicais com Caetano Veloso na Globo. Ninguém, porém, pode dizer que foi incoerência. Afinal, a emissora há muito modifica sua forma de agir, moldando-se às conveniências. Já Chico, permanece o mesmo.

* Texto revisado em 19/01/2016 com pequenos acertos, sem alterações substanciais.

6 Comentários

  1. […] A noite em que Chico Buarque me mandou à merda! […]

  2. Alexandre coiro disse:

    MITO!

  3. […] Leia também: A noite em que Chico Buarque me mandou à merda! […]

  4. […] Leia também: A noite em que Chico Buarque me mandou à merda! […]

  5. Tite Borges disse:

    Estava lá nessa conversa com a Memélia e o Betto!!!

  6. marcia luiza vieira disse:

    Adorei!!!!!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com