Ao reproduzir alguns trechos do belíssimo artigo/análise de Eliane Brum, publicado na versão brasileira do El País de segunda-feira, 04/09, o faço prestando homenagem à autora que de maneira direta mostra a desigualdade gritante que vivemos no Brasil.
Desigualdade essa que está sendo corroborada pelo Poder Judiciário que, ao contrário do que se diz, nem sempre é cego.
Como de hábito, não reproduzirei o texto todo. Tento apenas provocar a leitura, endossando as críticas, para aqueles que ainda não tiveram oportunidade de ler o original. Há trechos que vale a reprodução pela forma como demonstram a tese original da autora de que estamos distantes de um país protegido pelos mantos da Justiça e da Igualdade – nem falaremos de Fraternidade.
A leitura, aliás, é mais do que recomendada aos que pretendem, a partir do feriadão do dia 7, assistir ao filme-propaganda da Lava Jato, que enaltece o trabalho da Força Tarefa sem mostrar posições e atitudes no mínimo duvidosas, como a própria autora aqui questiona. Muito embora, seu texto passe longe de demonstrar todas as dúvidas que a Operação vem suscitando, apesar do reconhecimento de que mexeu em uma ferida que precisava ser expurgada. Mas, talvez, os que fizeram a “operação” do tumor, não tenham tido a habilidade e a isenção necessárias.
“A Operação Lava Jato, mesmo com todas as falhas e abusos cometidos, assim como a vaidade descontrolada de parte de seus protagonistas, presta um grande serviço ao Brasil ao revelar a relação de corrupção entre o público e o privado. Uma relação que atravessa vários governos e vários partidos e vários políticos de vários partidos. E a Operação Lava Jato presta também um grande desserviço ao Brasil ao reforçar uma das ideias mais perigosas, entranhadas no senso comum dos brasileiros, e realizada no concreto da vida do país: a de que prisão é sinônimo de justiça. Num país em que o encarceramento dos pobres e dos negros tornou-se uma política de Estado não escrita – e, paradoxalmente, acentuou-se nos governos democráticos que vieram depois da ditadura civil-militar (1964-1985), reforçar essa ideologia não é um detalhe. Tampouco um efeito colateral. É uma construção de futuro.
A Lava Jato tem um grande impacto sobre a vida do país, que ecoará por muito tempo e, em alguns aspectos, será constituinte do Brasil dos próximos anos ou décadas. É por essa razão que me parece fundamental enfrentar as complexidades e as contradições desse processo para além do contra ou a favor (…)
Já escrevi (leia aqui) que o fato de a grande “purgação” nacional se dar por crimes contra o patrimônio e não por crimes contra a vida tem o efeito profundo de reforçar uma deformação: a de que a vida humana vale pouco, o que importa é o patrimônio (…) Com a Lava Jato, esse traço constitutivo do Brasil se tornou ainda mais cimentado. E as consequências não são nem serão pequenas.
Prisão como sinônimo de justiça é outra ideologia que está sendo reforçada pela Lava Jato. Assim como o pouco valor dado à vida, ela também é antiga e entranhada no imaginário nacional (…) Ao atingir os que nunca eram presos, os ricos, os poderosos, os políticos… a interpretação de prisão como justiça alcançou um outro patamar. Afinal, estes eram os “acima da lei”. E com a Lava Jato foram alcançados.
Os operadores da Lava Jato compreenderam bem o anseio popular e o usaram a seu favor, produzindo imagens amplamente disseminadas pelas TVs e pela internet de empresários e principalmente de políticos algemados e humilhados. Sem contar a “condução coercitiva” de Lula, que, da forma como foi feita, de imediato foi interpretada como “prisão”. Este espetáculo foi estratégico para o apoio da população à Lava Jato. Mas não só reforçou a interpretação de que a única forma de fazer justiça é prender, como açulou algo muito grave e também constitutivo do Brasil: confundir justiça com vingança (…)
Nesta construção ideológica, a Lava Jato tem o efeito de produzir uma ideia de que, agora, a justiça é para todos. Ou a prisão é para todos, já que justiça e prisão são usadas como sinônimos. Num dos países mais desiguais do mundo, atinge-se pelo menos uma igualdade: a de que todos podem – e são – presos. Esta ideia, porém, não é apenas manipuladora. Ela é comprovadamente falsa. E ela serve para mascarar a enorme desigualdade do Brasil. Também na justiça. E também na prisão.
Se o encarceramento em massa fosse solução para a violência, no Brasil se dormiria de porta aberta. Com mais de 650 mil presos – e crescendo – temos a terceira maior população carcerária do mundo. O Brasil só perde, por enquanto, para os Estados Unidos e para a China. A maioria dos presos é composta por pessoas negras, pobres e com pouca escolaridade. Esta população ocupa menos de 394 mil vagas. O que significa que, com uma taxa de ocupação de 163,9%, estão não apenas presos, mas amontoados (…)
No Brasil, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” é muito popular, embora a pena de morte não exista oficialmente no país. Mas “bandido” é uma palavra ampla demais. E que esconde coisas demais. A maioria dos presos praticou crimes contra o patrimônio e relacionados a drogas. Os que cometeram crimes contra a vida são uma minoria. Apenas na cidade do Rio de Janeiro, de 1.330 acusados por tráfico em 2013, 80,6% eram réus primários. Em São Paulo, outra pesquisa analisou os flagrantes por tráfico de drogas, mostrando que quase 60% das pessoas não tinham antecedentes criminais e apenas 3% portavam algum tipo de arma. A média apreendida era de 66,5 gramas de droga. Mas apenas 9% foram absolvidas ou responderam por porte. O restante teve penas de até cinco anos de prisão por tráfico (…)
(…) A política de “guerra às drogas”, como já está mais do que comprovado, é um desastre para o Brasil, causando o extermínio da juventude pobre e negra e eliminando potencialidades. Entre as várias razões para seguir com uma política que já se mostrou genocida, cara para os cofres públicos e totalmente ineficiente estão as de manter os interesses e os lucros do mercado de drogas e armas intactos, assim como os da poderosa indústria de segurança.
Um exemplo recente. Rafael Braga, 29 anos, foi preso nas manifestações de 2013, no Rio, por portar dois frascos lacrados: um de desinfetante Pinho Sol e outro de água sanitária da marca Barra. A Polícia Militar o acusou de portar material explosivo. O jovem negro e pobre tornou-se então o único preso político dos protestos de 2013. Depois de passar mais de dois anos na prisão, em janeiro do ano passado Rafael estava há apenas 40 dias cumprindo pena em regime aberto e já trabalhando como auxiliar de serviços gerais quando foi novamente preso.
Os PMs que o prenderam em flagrante afirmaram que ele portava 0,6 grama de maconha, 9,3 gramas de cocaína e um morteiro. Rafael diz que o material foi plantado e que ele foi torturado para que passasse informações sobre o tráfico no local, questões que desconhecia. Ainda assim, Rafael foi condenado com base apenas no depoimento dos policiais que o prenderam, uma aberração que é frequente neste tipo de caso. Em 20 de abril, Rafael foi condenado pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro a 11 anos e três meses de prisão por tráfico e associação ao tráfico de drogas. O Instituto de Defensores de Direitos Humanos, que atua na defesa de Rafael, tentou reverter essa decisão em segunda instância, mas, por dois votos a um, os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio mantiveram Rafael preso.
Como comparação: em julho, durante um plantão na madrugada, o desembargador José Ale Ahmad Neto deu habeas corpus a Breno Fernando Solon Borges, de 37 anos. Ele é filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul, Tânia Garcia Freitas. Breno havia sido preso em flagrante, em abril, com 129,9 quilos de maconha e munições para armas de calibre 7,62 mm e 9 mm. Depois de passar dois meses na prisão, foi transferido para uma clínica médica de Campo Grande para “se submeter a um tratamento contra o transtorno de personalidade borderline”.
(…) Não, a lei não é para todos. Nem a prisão. Muito menos a justiça. Hoje, não se pode falar no encarceramento dos pobres e negros como política de Estado sem sublinhar o que está acontecendo com as mulheres e a lei de drogas. De 2005 a 2014, a quantidade de mulheres presas cresceu numa média de 10,7% ao ano. Em termos absolutos, a população feminina saltou de 12.925 presas em 2005 para 33.793 em 2014. A estimativa é de que hoje o aumento seja ainda maior. As mulheres representam 5,8% da população prisional. Mas, no caso delas, o “tráfico de drogas e associação para o tráfico” tem um peso bem maior que no caso dos homens: 64% das condenações. (…)
Antes de gritar “tem que prender”, “tem que matar”, é imperativo lembrar que quase 40% das pessoas presas hoje no Brasil estão lá sem jamais terem sido julgadas. Este dado permite afirmar que é contra estes presos que se comete um crime. Quem fica gritando “tem que prender”, “tem que matar” pode estar deixando de perceber que está apenas reforçando a desigualdade do Brasil e mantendo o direito de defesa e o acesso à justiça como privilégios. E direitos não são privilégios.(…)
Não, a lei não é para todos no Brasil.
Na data emblemática de 7 de setembro, será lançado o filme que afirma no título o contrário do que vejo e investigo: Polícia Federal – A Lei é Para Todos. Pretendo assisti-lo. Mas posso adiantar que me parece perigoso tal título associado à Lava Jato, uma operação em andamento, por todas as razões e porque acredito que a Lava Jato reforçou a deformação de confundir prisão com justiça. E também a deformação de valorizar mais o patrimônio do que a vida. Me parece perigoso principalmente porque reforça a ideia de que agora há igualdade na aplicação da lei. Deveria haver, mas não há.
(…) Quando Luiz Inácio Lula da Silva virou personagem de um filme baseado na sua vida e o assistiu na poltrona do cinema do Palácio do Alvorada, como presidente do Brasil, eu o critiquei. E também fiz uma crítica de Lula, o filho do Brasil, que ao reduzir a complexidade do homem a um clichê de herói fez uma peça de propaganda. E uma peça de propaganda ruim. É bastante provável que o filme da Lava Jato tenha a pretensão de influenciar o momento e também as eleições a seguir, como o de Lula também tinha. É preciso assistir a este com essa hipótese em mente, assim como era preciso assistir ao outro.
(…) O Brasil já é um país-condomínio e um país de cadáveres insepultos, porque morreram sem justiça, às vezes sem nome. Quem berra “tem que prender”, “tem que matar” talvez pense que a solução seja botar metade do país na cadeia. Mas, cuidado: talvez você acredite que está numa metade e, quando perceber, o despacharam para a outra.
(*) Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: [email protected] Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
6 Comentários
E por falar em corrupção…
Uma faculdadezinha de fundo de quintal de GM e família vai à falência e é
adquirida com dinheiro público por 8 MILHÕES de reais (o seu, o meu, os nossos impostos). Será que o MP do Mato Grosso tem peito para encarar?
https://caviaresquerda.blogspot.com.br/2017/09/chao-comeca-ceder-sob-os-pes-de-gilmar.html
O Al Capone brasileiro:
https://caviaresquerda.blogspot.com.br/2017/09/o-al-capone-brasileiro.html
Deputado Paulo Teixeira pede o afastamento do juizeco de fala fina da operação “Farsa a Jato” por negociar delações, prisões e dosimetria de condenações (o que é ilegalíssimo, nem precisa dizer). Em qualquer país civilizado este mafioso, íntimo do Mineirinho, nem teria chegado à magistratura:
https://www.brasil247.com/pt/247/poder/315741/Teixeira-pede-afastamento-de-Moro-da-Lava-Jato.htm
https://caviaresquerda.blogspot.com.br/2016/12/editora-tres-reune-nata-da-bandidagem.html
Eliane Brum é uma das raras jornalistas da atualidade que se mostra capaz de produzir grandes reportagens, relatos e crônicas-reportagem como esta citada na presente matéria. Mas Ela trabalha para um jornal liberal-conservador; por essa razão ela não assume uma posição clara, já que a linha que separa uma falsa (hipócrita e impossível) ‘neutralidade’ da postura mais aguerrida e militante em torno de causas humanitárias e sociais – as quais, necessàriamente exigem a assunção de um posicionamento político-ideológico claro – é tênue. Eliane tenta se equilibrar nessa corda, para levar suas mensagens a um público leitor supostamente mais qualificado e sensível para as causas humanistas, que freqüenta as páginas eletrônicas o El País.
https://www.esmaelmorais.com.br/2017/09/pf-apreende-malas-de-dinheiro-de-homem-de-confianca-de-michel-temer/
A propósito, Paulo Henrique Amorim vem denunciando há muito tempo a existência de um apartamento na cidade de S.Paulo, abarrotado de reais, dólares e euros em espécie, provavelmente gerido por tucanos e golpistas em geral, cuja localização é de amplo conhecimento, exceto para a Polícia Federal.
Sobre a matéria do Estadão sobre o juiz Marcelo Bretas, da Operação Lavajateira no Rio de Janeiro:
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——- O que se salva da matéria do Estadão é a fortíssima suspeita de que o sorteio de Bretas para conduzir a Operação Lavajateira no Rio possa ter sido dirigido, tal como em vários casos no STF, com seus sorteios suspeitos ———
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O mais importante da matéria do Estadão é este trecho: “Antes de assumir a 7.ª, (Bretas) fez um intercâmbio de três meses no The Federal Judicial Center (a Justiça Federal americana), em Washington, focado no tema corrupção e lavagem de ativos. “Meu feeling era que a Lava Jato podia vir para a 7.ª, e começamos a aparelhá-la para essa possibilidade”, contou. Logo chegou o processo da Eletronuclear – que notabilizaria Bretas, pela maior sentença da Lava Jato, 43 anos para o almirante Othon Pinheiro.”
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É muita coincidência: ANTES DE SER SORTEADO para conduzir as ações lavajateiras no Rio, o juiz vai para o Tazuni fazer um cursinho judicial preparatório de 3 meses. E, mais, achando, pelo seu “feeiling”, que a Operação Lavajateira viria para sua vara, a 7.ª. E não dá outra, o primeiro processo, o do Almirante Othon, é sorteado para ele, uau. Quanta coincidência
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É muito feeling, o Bretas é um verdadeiro Pai Dinah para adivinhar as coisas. Ou parece que o sorteador de processos no Rio é do mesmo fabricante daquele do STF e pode ser calibrado para determinado juiz.