Quem hoje defende a volta dos militares, ou se faz de ignorante ou tem memória curta. Os 21 anos de ditadura nos trouxeram mortes, espancamentos, torturas, desaparecimentos e a censura. Aqueles que trabalharam ou trabalham em comunicação social, artes e lidam com a necessidade da liberdade de expressão sabem o que foi conviver com os censores que não tinham critérios. Impediam desde uma simples crítica ao poder à notícia do surto de meningite que ocorreu em São Paulo. No mundo artístico, diversas peças teatrais foram impedidas e muitas músicas censuradas.
É verdade que a convivência com a censura acabou por nos ensinar como tentar contorna-la (longe de mim defende-la por conta disso). Chico Buarque chegou a utilizar um pseudônimo para ver se conseguia passar suas músicas. Com a assinatura de Julinho da Adelaide, aprovou sem problemas pelo menos três músicas: “Acorda amor”, “Jorge Maravilha” e “Milagre brasileiro”.
Ao descobrir isso a censura mudou as regras, como ele mesmo lembrou em 1975 na entrevista que me deu para o jornal Movimento e que acabei publicando no Pasquim a parte relacionada à censura:
“Agora já não há a possibilidade de usar pseudônimo, tem que usar o nome certo, carteira de identidade, e tal…”
A conversa com Chico Buarque sobre a censura há 39 anos é recordada aqui como uma forma de se resgatar a história, recente e trágica que o país viveu, e que alguns desavisados, ou nem tanto assim, torcem para que ela se repita.
Os problemas de Chico Buarque com a censura começaram para valer após dezembro de 1968, quando da edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Ele deu plenos poderes aos militares, autores da quartelada de 64, por isso foi chamado de golpe dentro do golpe. Até então, como Chico admitiu na conversa, publicada em dezembro de 1976, após a suspensão da censura no Pasquim, uma única música tinha sido censurada:
“É preciso deixar claro que, por incrível que pareça, até 1968 os problemas com a censura eram raros, entende? Tive um problema só com a censura, que foi a música “Tamandaré”, e assim mesmo não foi a censura federal, não foi o Departamento de Polícia Federal. Foi no caso a Marinha, porque ele era patrono da Marinha”, explicou.
Antes, porém, vivenciou outra espécie de censura quando da apresentação da sua primeira peça teatral, Roda Viva (1967). Na direção de José Celso Martinez, ela estreou no Rio, em janeiro de 68, com Marieta Severo, Heleno Prestes e Antônio Pedro nos papéis principais. Foi um sucesso sem nenhum problema.
Na segunda temporada, em julho de 1968, em São Paulo, já com Marilia Pêra, André Valli e Rodrigo Santiago, foi considerada um símbolo da resistência à ditadura militar o que motivou o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo de direita que espalhava terror e atentados sem ser perseguido – até porque, militares que reprimiam a esquerda atuavam no CCC -, a promover uma baderna. Cerca de 100 pessoas invadiram o Teatro Galpão, agrediram os artistas e depredaram os cenários. Em setembro, na estreia da peça em Porto Alegre, houve um novo ataque. Na entrevista, Chico comentou:
“Tive um problema com a censura no caso da peça “Roda Viva”, mas também foi uma coisa extraoficial, uma pancadaria, aquele negócio de terrorismo mesmo. Agora, censura oficializada em música , censura prévia em texto de música, não havia”.
Após 68, os censores não tinham qualquer critério. Tanto assim que liberaram a música “Apesar de Você”, em 1970 – ela foi lançada em um compacto simples, um pequeno disco de vinil com uma única música – e em 1971 vetaram-na, mandaram recolher os discos nas lojas e militares invadiram a sede da Philips (gravadora de Chico, à época) para destruír as cópias restantes.
Consta, segundo narrações posteriores, que o censor que aprovou a canção também foi punido. Os oficiais do governo, no entanto, não destruíram a matriz, o que possibilitou a reedição da versão original da gravação. Em um interrogatório, Chico foi indagado sobre quem era o “você” da letra da canção: “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”, teria respondido o cantor.
Esta “experiência negativa” dos censores fez com que eles se tornassem mais rígidos na hora de analisar suas músicas, a ponto dele não poder usar mais o pseudônimo como antes. Na entrevista ele e comentou:
“Depois de “Apesar de Você” a coisa já vira um caso pessoal, já vira um problema até de sobrevivência, do censor (…) Virou problema de emprego e acho que eles têm um apego muito grande a este emprego porque estão muito preocupados. Aqui, no Rio de Janeiro, por exemplo, eu já não tenho condições de mandar músicas, É o caso de “Mulheres de Atenas”, que agora foi liberada em Brasília. A música não tem razão nenhuma de ser proibida. Muitas vezes consigo liberar em Brasília. E não sou eu, é um advogado que vai lutar lá em Brasília. Mas fica difícil porque já cria o problema de desautorizar o censor do Rio de Janeiro”.
Aos poucos Chico Buarque passou a ser apontado como o autor com mais musicas censuradas, mas isto não era admitido por ele. Até porque, como explicou, qualquer musica já gravada precisaria passar novamente pela censura:
“Se eu disser o número de músicas proibidas, ou mesmo se publicar as letras proibidas, vou decepcionar muita gente porque nem é um problema de músicas que atentem contra a moral ou contra a segurança nacional, nem é um número tão grande assim. (…) Eu não sei quantas músicas eu tenho proibidas. A rigor, a “Banda” (primeiro grande sucesso dele, de 1966) não é uma música liberada, porque se eu tiver que gravar a “Banda” hoje, eu tenho que mandar para a censura novamente e frequentemente músicas antigas têm sido proibidas”.
Apesar das dificuldades, como a maioria dos compositores, dramaturgos, escritores, jornalistas e mesmo atores na época, Chico não cedeu. Os censores tornaram-se o maior problema da criação artística, no entendimento dele. Mas não foram capazes de desanimá-lo:
“Nunca usei, nem acho que seja honesto usar a censura como pretexto para não fazer nada. Agora, vou lhe mostrar que durante todos esses anos que tenho problemas com a censura tenho feito muitas coisas. Eu nunca parei por causa da censura, nem vou parar por causa da censura. Agora, a censura é um problema gravíssimo”.
Ainda bem que ele não esmoreceu. Penhoradamente, agradecemos.
*Texto revisado para pequenos acertos em 19/01/2016
4 Comentários
Interessante.
[…] A censura sem critério nas obras de Chico Buarque […]
[…] A censura sem critério nas obras de Chico Buarque) […]
Li os artigos, mas não a íntegra das entrevistas em versão digitalizada do Pasquim ou Movimento. Foi excelente relembrar o que CB disse sobre ser de classe média e o fato disso não impedir que ele estivesse ao lado do povo, assim como as peças de teatro que ele criava. É oportuno relembrar essas falas de Chico Buarque, principalmente porque muitos o acusam de ser elitista, dados os altos preços para assistir a shows e peças de autoria dele.