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Marcelo Auler

Valdir Pereira da Rocha, ao ser preso em julho passado.

Valdir Pereira da Rocha, ao ser preso em julho passado.

Ao apresentar-se à polícia, em 22 de julho passado, Valdir Pereira Rocha, 36 anos, vivia em liberdade condicional, na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, noroeste do Mato Grosso (540 quilômetros de Cuiabá), na divisa com a Bolívia. Da pequena cidade com não mais do que 20 mil habitantes, foi levado para Campo Grande (MS) e trancafiado no presídio federal de segurança máxima por ordem do juízo da 14ª Vara Federal de Curitiba, como consequência da Operação Hashtag.

Na segunda-feira (17/10), após 87 dias sob custódia do Estado, Valdir retornou à cidade para onde se mudara em 2008. Ali mora sua esposa Vanicélia de Melo Raimundo, 35 anos, mãe dos seus dois filhos, de cinco e um ano de vida. Chegou dentro de um caixão, com o rosto de tal forma desfigurado que o filho mais velho não o reconheceu. Foi enterrado no final do dia, sob protestos de sua mãe adotiva e sua advogada Zaine El Kadre.

Nos quase três meses (87 dias) em que esteve preso – sob a custódia do Estado, lembre-se -, Valdir foi acusado de ser terrorista e de possivelmente ajudar a preparar um atentado durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Passou dias isolado na penitenciária federal, prestou um depoimento no qual acusou um delegado de Polícia Federal de pressioná-lo, ameaçando deter sua esposa, esteve prestes a ser posto em liberdade com uma tornozeleira eletrônica, mas acabou perdendo de vez a liberdade condicional e, depois, a própria vida.

Alexandre Moraes, ministro da Justiça, melhor do que ninguém poderá responder: Quem é que vai pagar por isso?

Alexandre Moraes, ministro da Justiça, melhor do que ninguém poderá responder: Quem é que vai pagar por isso?

Embora a operação estivesse em segredo de Justiça, as prisões foram logo alardeadas pelo então ministro interino da Justiça, Alexandre de Moraes, atraindo a atenção de toda a mídia, inclusive internacional, que já estava no Brasil na expectativa dos Jogos Olímpicos. Como noticiamos em 12 de setembro, a PF omitiu detalhes dos supostos “terroristas tupiniquins” e não tem provas de qualquer atentado. Nas buscas e apreensões realizadas não se encontrou armas, explosivos ou qualquer indício de atentado.

Agora cabe questionar ao ministro se ele terá a mesma agilidade para esclarecer o que aconteceu de fato com um preso que estava sob a custódia do Estado. Melhor do que ninguém, talvez ele possa dizer:

Quem responderá por esta morte? Os presos que o atacaram ou o Estado que o mantinha sob custódia?

 

Outro ameaçado – No Ceará, há outro caso envolvendo um dos suspeitos libertados em setembro pelo juiz Josegrei, o de Daniel Freitas Baltazar. Nada se provou contra ele em termos de terrorismo, mas foi libertado com tornozeleira eletrônica. Ainda assim, na quarta-feira (12/10), em Caucaia (região metropolitana de Fortaleza), atacou uma pessoa com faca. Imagens da oficina onde o agredido se refugiou registraram a cena e estão no YouTube. Pode parecer um caso de violência comum, mas, ao que tudo indica, Daniel sofre de transtornos mentais que se teriam agravado depois da prisão. A defensora que cuida do seu caso em Curitiba, Rita Cristina de Oliveira, requereu na segunda-feira sua transferência para uma penitenciária federal, por medida de segurança. 

No segundo interrogatório que prestou, Valdir manteve-se em silêncio, mas fez questão de registrar a pressão sofrida na primeira conversa com delegados federais que ameaçaram deter sua mulher.

No segundo interrogatório que prestou, Valdir manteve-se em silêncio, mas fez questão de registrar a pressão sofrida na primeira conversa com delegados federais que ameaçaram deter sua mulher.

Valdir e Daniel são dois dos 15 suspeitos de articular uma célula do Estado Islâmico no Brasil, a partir de informações repassadas à Polícia Federal pelo FBI. No caso desses dois, após 60 dias de investigação, agentes da Divisão Antiterrorismo do Departamento de Polícia Federal (DAT/DPF) nada conseguiram para provar a tese de que eles planejavam ataques terroristas durante as Olimpíadas.

Ainda assim, a Polícia Federal queria manter Valdir preso enquanto perdurassem as investigações. Para Daniel, admitiu a liberdade controlada por tornozeleira. O Procurador da República Rafael Brum Miron foi contra e defendeu o monitoramento dos dois por tornozeleiras eletrônicas, medida adotada pelo Juiz Marcos Josegrei da Silva em 16 de setembro., como reportamos em Sem comprovar atos terroristas, MPF acusa oito e quer saber dos investigados as redes sociais que navegam.

Daniel ganhou a liberdade. Valdir, porém, não deixou o presídio. Por conta de um crime antigo, de 1988, em Tocantins, ele e o irmão de criação – Leonid El Kadre, também preso, e um dos oito que foram denunciados com base na nova lei antiterrorismo – foram julgados e condenados em Tocantins. Valdir, em dois julgamentos, acumulou uma pena de 28 anos de prisão, porque era maior de 21 anos. Leonid, com 18 anos, foi condenado a 21 anos. Os dois ficaram presos de 2002 a 2008. Foi quando, no regime semi-aberto, mudaram-se para Vila Bela da Santíssima Trindade. Ali, conquistaram a liberdade condicional. Foi na prisão que os dois se converteram ao islamismo. Também na cadeia, Valdir se formou no segundo grau.

Com a mudança para Vila Bela, o processo de execução de pena passou a ser de competência da única vara de Justiça daquele município. Na cidade, Valdir fez o curso de gestor público por ensino à distância, cuja colação seria nos próximos dias. Sua mãe tentou conseguir que o libertassem para isso, mas os pedidos foram em vão.

Foi o juiz da cidade, Leonardo de Araújo Costa Tumiati, que, respaldado no artigo 118 da Lei de Execuções Penais, decretou a regressão do regime de liberdade condicional, por conta do envolvimento de Valdir e Leonid na nova investigação policial. Isso ocorreu em agosto.

Em setembro, com a decisão do juiz da 14ª Vara Federal de Curitiba de libertá-lo, o juiz federal das Execuções Penais de Campo Grande (MS), a quem tinha sido delegado o acompanhamento da prisão dos envolvidos na Operação Hashtag, declarou-se incompetente para permanecer com o caso de Valdir e remeteu-o aos cuidados da Justiça Estadual de Mato Grosso, isto é, ao juiz Tumiati.

E-mail vazado para a TV Globo; "Para justificar as prisões" diz a defensora.

A adesão ao EI deu-se nos e-mails. Não foi descoberto qualquer ato que provasse a iminência de um atentado. Mas a participação de Leonid, destacou-se na troca de mensagens.

Com base nas mensagens de Facebook que a polícia recolheu e também nos arquivos de Telegram que uma fonte anônima encaminhou ao DPF e ao FBI, ficou demonstrada a participação de Leonid nos grupos que discutiam possíveis apoios ao EI. Foi ele quem propôs reunir os simpatizantes do Estado Islâmico em algum lugar, talvez um sítio, falando até em treinamento de artes marciais e de tiros. Ficou na promessa, até por que o grupo não dispunha de verba para tal empreitada. Não conseguiram nem mesmo reunir todos em um único espaço, presencialmente. A convivência era meramente virtual.

Valdir e a mulher Vanicélia

Valdir e a mulher Vanicélia

Já a participação de Valdir era secundária. Tanto que a polícia não conseguiu provas para incriminá-lo e ele não foi denunciado. Ele apresentou-se à Polícia Militar da sua cidade quando soube que sua mulher, na véspera, 21/07, fora levada pela Polícia Federal a Guajará-Mirim, em Rondônia, para dar explicações sobre o marido, que estava na Bolívia.

O mesmo aconteceu com Marissol Cristina de Brito, ex-mulher de Leonid. No dia 24 de julho ela e o filho de cinco anos foram levados à Delegacia da Polícia Federal de Cáceres (MT) para depoimento, segundo a mãe dos dois denunciou na Polícia Federal e na Vara Federal de Curitiba. Do Juiz Josegrei, através de um e-mail repassado pela diretora da secretaria da 14ª Vara, Ellen Jane Garcez, o blog recebeu a seguinte explicação, em 15 de setembro::

Por ordem do MM. Juiz Federal, informo que a questão da alegada oitiva e/ou constrangimento de criança quando da condução da Marissol foi mencionada pela defensora de LEONID, dias após a deflagração da operação, em petição juntada em um dos incidentes de transferência de presos para o Mato Grosso do Sul. Na ocasião, a defesa anexou cópia de declaração nesse sentido, prestada por ela própria perante a Polícia Federal do MT.

O juízo entendeu que a reclamação já tinha sido direcionada para quem de direito (PF/MT), pois nos autos da Operação Hashtag não há nada que comprove essa situação”.

Ao se entregar, Valdir atendeu ao mandado expedido pelo juiz da 14ª Vara Federal de Curitiba, no bojo da midiática Operação Hashtag, realizada 15 dias antes da abertura da Olimpíada do Rio. Nessa operação, teoricamente, a Divisão Anti-Terrorismo (DAT) do Departamento de Polícia Federal (DPF) desbaratava uma possível célula terrorista ligada ao Estado Islâmico (EI).

No depoimento que prestou na penitenciária federal, sem a presença de um advogado, no dia 25 de julho, ele teria sofrido pressões do delegado federal Érico Barbosa Alves, como denunciou no segundo depoimento, em 1º de setembro, já na presença da advogada e da mãe. Do termo consta até a ameaça feita pelo delegado Polybio Brandão Rocha:

“…esclarecendo que o termo de declarações acima mencionado foi produzido enquanto o interrogado estava sendo ameaçado pelo Delegado que Presidiu o referido ato, que lhe teria dito que se o intyerrogado não confirmasse as informações que ele (o Delegado) lhe disse, a sua esposa seria Presa, em seguida, reformulando, disse que sua esposa seria detida; Que nesta hora o interrogado foi advertido pelo Delegado de polícia Federal que preside este ato,das consequências da não confirmação de suas afirmações, o que pode ensejar seu processamento por comunicação falsa de crime”.

Já não mais se beneficiando da liberdade condicional, Valdir foi transferido para um presídio estadual. Uma transferência, segundo a mãe dele, bastante suspeita. A começar por um fato aparentemente inusitado. Ele foi morto com a ajuda de uma barra de ferro. Isso provoca a primeira desconfiança na mãe:

“Não dá para entender porque ocorreu isso, porque antes dele entrar no presídio, haviam feito um baculejo, uma revista. Como é que estava essa barra lá só para agredi-lo?”, questiona Zayne.

Ela ainda diz ter recebido recado de detentos lá do presídio que um “amarelinho” abriu as grades (os “amarelinhos” são presos também chamados de “turma do corre”, que prestam serviços, inclusive distribuindo alimentação, e circulam à vontade) . “O amarelinho fica com as chaves”, diz Zayne. “Eu quero que descubram quais são os amarelinhos que estavam presentes naquele dia? Abriram as grades a mando de quem? Tem que ser a mando do sistema”.

Outra atitude estranha, segundo ela, é que a Polícia Federal o levou a três penitenciárias de Cuiabá e Várzea Grande, antes de deixá-lo no Presídio Capão Grande, em Várzea Grande, onde, segundo ela diz, estava tudo planejado.

Zayne questiona ainda como uma penitenciária recebe um réu sem documentação, sem passar por exame de corpo delito e sem ter sido levado à triagem para definir em qual “raio” (área da prisão) ele poderia ser colocado.

“Lá dentro tentaram jogar ele no raio dos evangélicos”, relata. “Mas, ele lá dentro, quando estava passando, em pé ali aguardando para saber a vaga dele, no ‘corre’ mesmo disseram para ele: ‘Você não pode entrar na área dos evangélicos porque já têm três ameaçados lá dentro’. Aí jogaram ele próximo do raio onde estavam os periculosos”.

Ele chegou na penitenciária dia 13, quinta-feira, depois do almoço, quando  o “amarelinho” já não podia mais abrir as celas. Foi por isso, diz ela, que tudo ficou para o dia seguinte. Na hora do almoço do dia 14 ele foi espancado. Chegou a ser socorrido pelo SAMU dentro da penitenciária e foi levado para um hospital, onde morreu no sábado, dia 15.

A causa mortis, supostamente, segundo ela, foi traumatismo hemorrágico no cérebro. Isso lhe causa nova dúvida:

“Como ele teve hemorragia se ele foi drenado? Eu vi o dreno de 400 ml. Não teve morte cerebral, como falaram na televisão”.

Ninguém poderá dizer que a morte de Valdir é uma fatalidade. Como também não será qualquer agressão que Daniel vier a sofrer na cadeia do Ceará. Mesmo sem qualquer prova ou culpa formada, eles já são dados como terroristas, capazes até de usarem crianças para explodir bombas. No Estado Democrático de Direito, o caso deve ser bem apurado e as responsabilidades distribuídas para se responder à questão acima: quem é que vai pagar por isso?

 

13 Comentários

  1. C.Poivre disse:

    Pela análise do perfil dos atuais componentes do nosso ridículo e submisso supreminho, não há perspectivas de recuperarmos o Estado Democrático de Direito, conforme revelou o Justificando.com. Dá também para entender melhor porquê este tribunal de mediocridades aderiu tão facilmente ao Golpe de Estado que extinguiu nossa jovem Democracia:

    http://justificando.com/2016/10/19/por-conta-de-lula-e-dilma-stf-e-um-lugar-cheio-de-ministros-e-ministras-mediocres/

  2. […] Por Marcelo Auler, em seu blog –  […]

  3. Francisco de Assis disse:

    Caro Marcelo,

    com a sua imensa autoridade de jornalista, seria interessante que você questionasse o governo golpista, para que ele informasse se esses prisioneiros, acusados de terrorismo, foram interrogados na prisão federal por agentes estadunidenses (de Guantanamo ou de outra origem), e que tipo de interrogatório sofreram. Esta possibilidade é real, tendo em vista a submissão colonial que esse governo vira lata, entreguista e anti-nacional, adotou em relação ao seu patrão do norte, para nossa imensa vergonha como brasileiros.

  4. edson tadeu disse:

    Vou um pouco mais longe e asseguro que a morte desse cidadao foi de caso pensado, certamente os presos foram insuflados contra o posssivel torrorista . e certamente a policia o considerou de alta periculosidade sem ter elementos suficientes para confirmar suas suspeitas providenciaram que presos fizessem o trabalho sujo para eles. iSSO é o mesmo caso do preso que invadiu a casa de Silvio Santos por 2 vezes e a policia o considerou um sujeito muito inteligente e perigoso e aranjaram um jeito de presos o liquidar.

  5. C.Poivre disse:

    À distância parece uma queima de arquivo pra livrar a cara de todos os envolvidos nesta sucessão de ilegalidades que resultaram na morte de Valdir. E não é caso de dar “explicações à família”, como sugeriu um blogueiro, mas da proposição de uma ação judicial responsabilizando o Estado pela sua morte e pedindo a devida indenização, sem prejuízo do inquérito que já deveria ter sido aberto pelo MP da comarca onde se deu o linchamento.

  6. Marcelo Gaúcho disse:

    A Globo incita ao linchamento.
    Presta um desserviço à sociedade e a sua concessão deve ser cassada.

  7. Eny Moreira disse:

    Casos como esse ocorreram, e muitas vezes, durante a ditadura de 1964. É preciso denunciar amplamente as circunstancias dessa violencia. Não podemos gritar contra a tortura só quando ela atinge os filhos da classe média…
    O ministro da justiça está na obrigação de esclarecer, e muito be,m, essa morte hedionda;. Ele é o principal responsavel , haja vista o escândalo por ele promovido quando da prisão desses rapazes – aos quaos não se conseguiu provar a acusação… A Nação exige providencias cabais, imediatas, sem lero lero.

  8. Sandra Rodrigues Cabral disse:

    Socorro!!!!!!!!! A quem é a quais instituições recorrer???? O Estado de Exceção tudo pode? Pisoteiam a cidadã, o cidadão, cassam direitos duramente conquistados, criminalizam e matam, ferem a Constituição. STF de joelhos, polícia parcial, criminosa. Estão saqueando o Brasil é nossas vidas. Golpistas criminosos!!!!!!!

  9. Àlvares de Souza disse:

    Alguém duvida de que sua morte foi encomendada? Como também alguém acredita que vai sobrar para essas “autoridades” irresponsáveis e criminosas alguma penalidade?

  10. João de Paiva disse:

    Não existe mais, no Brasil, Estado de Direito Democrático, mas um Estado Fascista de Exceção. Não é preciso ser gênio, para perceber que a ditadura imposta com o golpe de Estado segue os ditames do alto comando internacional, que fica nos EUA. Na edição 283 da Revista CartaCapital, datada de 24 de março de 2004, como muito bem lembrou uma leitora do blog, tem-se a prova de que a PF brasileira tinha sido comprada pelos EUA. Quem acompanha a Fraude a Jato, os diversos cursos e eventos em embaixada dos EUA e as inúmeras viagens de sérgio moro a esse país, sabe muito bem que esse juizeco da guantánamo paranaense nada mais é que um preposto dos EUA. Da PGR e do séquito de procuradores do MPF que integram a Fraude a Jato basta dizer que jogam no mesmo ‘time’ de sérgio moro. E as quadrilhas políticas que integram o governo golpista dispensam comentários detalhados e explicações. A morte de Valdir deve ser colocada na conta do alexandre nazimoraes, como afirma a reportagem.

  11. Schell disse:

    E mesmo assim, o temerista GOLPISTA dá entrevistas afirmando que tudo não passa de “comentários” contra seus ministrecos. Esse Moraes devia ter sido defenestrado de imediato quando da merda-midiática imposta pelos EUA. Mas, são o que são porque o povo brasileiro é humilde e triste.

  12. […] Fonte: Quem é que vai pagar por isso? | Marcelo Auler […]

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