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Lançamento: Como militares franceses adestraram os militares brasileiro para a tortura

Marcelo Auler

tortura como arma de guerra

Lançado oficialmente na noite de quinta-feira (16/06), na livraria Argumento (Leblon, zona sul do Rio), durante um debate do qual participaram a autora, a jornalista brasileira radical na França, Leneide Duarte-Plon, o deputado federal Wadih Damous, ex-presidente da Comissão estadual da Verdade, a psicanalista Cecília Boal e o historiador Daniel Aarão Reis, o livro “A Tortura Como Arma de Guerra” (Editora Civilização Brasileira, 294 páginas, R$ 47,90) mostra as ligações do general francês, torturador confesso, Paul Aussarresses, com os militares brasileiros, entre os quais o último presidente durante a ditadura civil/militar, João Baptista Figueiredo.

Mas, como lembrou Leneide em entrevista acessível através da página do Grupo Editorial Record, engana-se quem pensa que tortura é tema relacionado apenas às ditaduras:

“A tortura persiste em todo o país, disseminada e exercida por policiais militares e civis. A mesma sociedade que se compadece do martírio de Tito nos porões da ditadura fecha os olhos para a tortura contra pobres e negros nas delegacias dos bairros. Uma estudiosa americana citada por Vladimir Safatle no prefácio desse meu novo livro diz que se tortura mais hoje no Brasil que durante a ditadura.  A polícia hoje tem a mesma lógica dos tempos da ditadura. Temos ainda um aparato policial repressivo. Pessoas são retiradas de suas casas por policiais, são assassinadas e os corpos não aparecem. Isso ocorreu com o Amarildo em pleno regime democrático. Os “Fleurys” e “Albernazes” da ditadura faziam exatamente o mesmo. Denunciar a tortura é obrigação. Os jovens precisam aprender nas aulas de história que este  país viveu uma ditadura sanguinária e que seus efeitos perduram até hoje – como, por exemplo, a tortura”.

Juntamente com Clarisse Meireles, Leneide escreveu “Um homem torturado: Nos passos de frei Tito de Alencar, (com 420 páginas, publicado pela Civilização Brasileira em 2014, finalista do Prêmio Jabuti 2015- Reportagem) que narra a prisão (1969) e as torturas físicas e psicológicas que foram praticadas no frei dominicano pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, provocando-lhe sequelas psicológicas que o levaram ao suicídio em 1974, no Convento Saint-Jacques, na França. Sobre o livro a respeito da saga de Frei Tito é possível ler um artigo da própria Leneide no Observatório de Imprensa, editado em 2014.

Charge general frances Paul Aussarresses (compartilhada do site www.correiodobrasil.com.br)

Charge general francêes Paul Aussarresses (compartilhada do site www.correiodobrasil.com.br)

Como lembra em artigo publicado na página da Record, a jornalista Claudia Lamego, praticada em vários momentos históricos, por Estados, povos e até pela Igreja católica, a tortura tornou-se crime contra a humanidade desde 1929, na Convenção de Genebra. No entanto, continuou a ser usada ilegalmente em guerras e guerrilhas do século XX. Durante a Guerra da Argélia, travada entre dois partidos revolucionários que lutavam pela independência e o exército francês, o país europeu torturou. Negada pelo governo da França e denunciada por intelectuais e militantes independentistas, a tortura foi confessada pelo general Paul Aussarresses, que admitiu sua prática e a defendeu, em entrevistas e em seus livros, como legítima arma de guerra contra-revolucionária.

As conversas entre o general francês, na casa dele, na Alsácia, e a jornalista Leneide Duarte-Plon, única brasileira a quem deu depoimentos, é uma das bases para este “A tortura como arma de guerra”.

No livro, Leneide mostra como a França exportou para o Brasil todo o arcabouço do terrorismo de Estado, que incluía a tortura e a eliminação física de opositores. O terrorismo de Estado foi implantado pela ditadura militar que se instaurou no país a partir de 1964.

Debate sobre tortura realizado na Livraria Argumento cvom a presença do deputado Wadih Damous, da psicanalista Cecilia Boal e da autora. Foto Claudia Lamego/Editora Record

Debate sobre tortura realizado na Livraria Argumento com a presença do deputado Wadih Damous, da psicanalista Cecilia Boal e da autora. Foto Claudia Lamego/Editora Record

Paul Aussarresses foi adido militar no Brasil de 1973 a 1975 e deu aulas para militares brasileiros sobre o que ficou conhecido como a “doutrina militar francesa” ou “escola francesa”, desenvolvida durante a experiência da Guerra da Argélia. Leneide mostra como essa doutrina foi estruturada e teorizada no livro A guerra moderna, do coronel Roger Trinquier, que tratava de uma nova forma de guerra, a guerra anti-subversiva ou contra-revolucionária.

No contexto da Guerra Fria e da luta americana contra o avanço comunista, a doutrina foi utilizada nos Estados Unidos, na Guerra do Vietnã, e em países da América Latina, como o Brasil, a Argentina e o Chile – todos a partir de golpes militares contra governos democráticos.

No Brasil, Aussarresses era muito próximo do general João Figueiredo e, além de dar aulas sobre tortura, fazia lobby para que o governo brasileiro comprasse armas francesas. Para compor A tortura como arma de guerra, Leneide pesquisou arquivos diplomáticos da França que guardam os relatórios secretos enviados a Paris nos quais o general e outros adidos militares que o precederam analisam a política externa e interna do Brasil. Em seu livro, Aussarresses conta um episódio em que Figueiredo atuou pessoalmente no caso de uma mulher torturada no Brasil  apontada como espiã. Em uma das entrevistas que concedeu a Leneide, o general ratificou esse e outros relatos

O desaparecimento de Rubens Paiva, assassinado pelo Exército em 1971, foi justificado com um falso sequestro tal como ocorreu na França. Foto: reprodução

O desaparecimento de Rubens Paiva, assassinado pelo Exército em 1971, foi justificado com um falso sequestro tal como ocorreu na França.
Foto: reprodução

Em seu novo livro, Leneide, citando os casos do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog, mostra ainda como os métodos para encobrir crimes de tortura na ditadura no Brasil e na Guerra da Argélia eram parecidos.

No caso de Rubens Paiva, os militares esconderam o corpo e venderam a versão, já desmontada, de que o deputado teria fugido, sequestrado por guerrilheiros enquanto era  transferido de local pela polícia. A versão do Exército Francês para a morte do francês Maurice Audin, professor de matemática e militante comunista em Argel, foi parecida. O corpo de nenhum dos dois foi encontrado.

Quanto a Herzog, ele foi fotografado com uma corda no pescoço na prisão – de forma parecida como acontecera na Argélia, alguns anos antes, a morte de Larbi Ben M’Hidi, chefe do Front de Libération Nationale – partido socialista argelino. De Ben M’Hidi, os militares franceses divulgaram o suicídio por enforcamento, sem chegar ao requinte da foto. A versão do suicídio de Herzog e de Ben M’Hidi também foi desmontada.

No prefácio da obra, Vladimir Safatle ressalta que, “ao centrar sua análise na história do general francês Paul Aussaresses, responsável pela repressão à luta dos argelinos pela independência, Leneide deixou evidente uma conexão nunca antes explorada de forma sistemática, a saber, os vínculos entre os crimes contra a humanidade cometidos pelas ditaduras latino-americanas e a lógica da ‘guerra contra-revolucionária’ desenvolvida no combate colonialista contra o direito de autodeterminação dos povos. Mas esses vínculos não mostram apenas como se desenvolveu a generalização de práticas de violação dos direitos humanos a partir de uma triangulação entre França, EUA e América Latina. Na verdade, mostram como o colonialismo serviu de laboratório para o modelo de Estado imposto em países como o Brasil durante a ditadura militar.”

Leneide começou a produzir a obra em 2008. Além das entrevistas com o general francês Paul Aussaresses, a autora conversou com o general brasileiro Armando Luiz Malan de Paiva Chaves e personagens emblemáticos da Guerra da Argélia, como Henri Alleg, jornalista torturado por homens de Aussaresses e autor do livro que fez história por denunciar, pela primeira vez, a tortura na Guerra da Argélia, e Josette Audin, viúva de Maurice Audin. Para Safatle, Leneide é uma jornalista que “une em sua escrita o olhar sistemático de historiadora e a sensibilidade crítica de psicanalista que não se deixa levar por falsos acordos e tem há anos exposto aquilo que muitos no Brasil gostariam de sequer nomear”.

Comportamentos diversos – No Brasil, a tortura nunca foi admitida pelo Estado, mas também foi denunciada em livros e entrevistas por intelectuais, jornalistas e religiosos. A Lei de Anistia não permitiu punições aos torturadores e nem mesmo os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – instaurada em 2012 e que colheu depoimentos importantes, como o do coronel Paulo Malhães, que relatou as torturas e a farsa da morte de Rubens Paiva, tendo sido assassinado pouco depois – criaram condições para uma mudança na interpretação da legislação. Como a tortura é um crime contra a humanidade, ela não teria prescrito, como defendem os militares.

Leneide traça ainda, na entrevista citada acima, outro paralelo que mostra como França e Brasil lidam de forma totalmente diferente com as atrocidades cometidas no passado pelos seus respectivos exércitos. Enquanto no nosso Congresso Nacional há políticos, como Jair Bolsonaro, que chegam a defender as torturas praticadas no passado pelos seus pares militares, na França isto jamais ocorreria.

“Nenhum político ou militar francês ousaria hoje defender a tortura como  forma de interrogatório. E não se viu até hoje nenhuma denúncia de prática de tortura contra presos, suspeitos de terrorismo, em solo francês. Se isso ocorrer, a maioria da sociedade francesa vai se levantar contra essa prática, condenada pela Convenção de Genebra, assinada pela quase totalidade dos países do mundo. A ACAT, Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura, é uma ONG ecumênica criada na França, em 1974, a partir de denúncias de tortura na Guerra do Vietnã, tem juristas, historiadores, sociólogos, padres, pastores e religiosas, além de leigos em constante trabalho de denúncia da tortura em todos os países do mundo. Cabe ressaltar que nunca houve denúncia de torturas em Cuba, por exemplo. Cito um texto de Frei Betto publicado em francês no qual ele diz que nunca teve noticia de pessoas torturadas pelo regime cubano. Caso contrario, como cristão, não poderia apoiar aquele regime”, expõe Leneide.

4 Comentários

  1. C.Pimenta disse:

    Apesar de o nazifascismo ter sido derrotado militarmente em 1945, o que se vê de lá pra cá é não só o seu ressurgimento como a sua institucionalização nas escolas militares e de polícia. Para isto estar acontecendo tem que haver uma retaguarda financeira poderosa, como certamente há. O Terceiro Reich, por exemplo, foi generosamente financiado pelos bancos centrais dos EUA e da Inglaterra, que fingiram ser contrários ao hitlerismo para ficar do lado vitorioso:

    https://blogdoalok.blogspot.com.br/2016/06/hitler-foi-financiado-pelos-bancos.html

    • João de Paiva disse:

      Parabéns pela coragem e lucidez, ao revelar uma verdade inconveniente aos países capitalistas que financiaram o nazismo e que posam de ‘bonzinhos’ e ‘inocentes’.

  2. j disse:

    Livros como este se mostram não só oportunos, mas essenciais nestes dias em que há um golpe de Estado em curso no Brasil. É fundamental lembrar que o STF, em 2010, se mostrou conivente com os torturadores da ditadura brasileira, concedendo-lhes anistia e descumprindo acordos internacionais assinados pelo Brasil. E os tribunais internacionais asseveram que o crime de tortura é imprescritível, sobretudo se praticado por agentes de Estado.

    Um agravante é que o atual chefe do GSI (que nada mais é do que um SNI ressuscitado pelo governo golpista liderado por Michel Temer), general Sérgio Etchegoyen, foi o único dos chefes militares a se colocar contra a Comissão Nacional da Verdade. O pai de Sérgio Etchegoyen foi identificado/acusado como torturador; um tio do atual chefe do GSI também; para coroar, o avô de Sérgio Etchegoyen também foi acusado de tortura, durante o Estado Novo. O chefe do GSI é encarregado de arapongar e manter sitiada na residência oficial, em Brasília, a presidente licenciada Dilma Rousseff. A arapongagem e ameaças de perseguição e repressão também atingem movimentos sociais e partidos de Esquerda – como MST e PT.

  3. Vera Gertel disse:

    Existe um documentário excelente, do qual não me lembro o nome, mostrando como os torturadores franceses da OAS não ensinaram prática do tortura aos militares e civis argentinos, como eles próprios torturaram, durante a última ditadura militar do país. Se alguém souber o título ou como encontrar o documentário favor comunicar. Ficaria agradecida, documento importante.

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