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Marcelo Auler

Memorial da Anistia Política: o projeto e o seu atual estágio em foto de 08/12/17

Idealizado para organizar, preservar e divulgar a memória e o acervo histórico dos períodos de repressão política no Brasil na ditadura civil-militar (1964-1985), o Memorial da Anistia Política – MAP está com o seu prédio principal pronto. Embora já dotado até de elevadores e aparelhos de ar- condicionado, é mantido vazio, Sem qualquer uso. Falta construir a praça que dará acesso ao mesmo e contará com um anfiteatro. Enquanto isso não acontece, o prédio novo se deteriora.

Foi por conta desta obra paralisada desde o início deste ano por falta de repasses financeiros do governo golpista de Michel Temer que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi atacada no último dia 06 de dezembro. Seu reitor Jaime Arturo Ramírez, sua vice, mais votada na lista tríplice para o próximo quadriênio, Sandra Goulart Almeida, as ex-vice-reitoras, Heloísa Murgel Starling (2006-2010) e Rocksane de Carvalho Norton (2010/2014), além do  presidente da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep), professor Alfredo Gontijo, da assessora da reitoria Silvana Cozer – uma das responsáveis pelo MAP – e Sandra Regina de Lima (gerente de finanças da Fundep) foram levados coercitivamente à Polícia Federal.

Em resposta à truculência da ação policial autorizada pela juíza substituta da 9ª Vara Federal, Raquel Vasconcelos Alves de Lima, neste domingo (10/10), Dia Internacional dos Direitos Humanos, centenas de pessoas, entre elas a sociólogas Eleonora Menicucci de Oliveira (ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no governo de Dilma Rousseff) e o secretário de Direitos Humanos de Minas, Nilmário Miranda (ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula) participaram de um ato em defesa do MAP e da UFMG.

O Ato público, como não poderia deixar de ser, teve início com o vereador petista de Belo Horizonte, Arnaldo Godoy, transmitindo a solidariedade de Luís Inácio Lula da Silva – que na sexta-feira encerrou a caravana pelo Estado do Rio de Janeiro – e levando os presentes a cantarem o Hino da Anistia – “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco & Aldir Blanc. Foi uma forma de protesto ao fato de a operação comandada pelo delegado federal Leopoldo Lacerda ter sido batizada com um verso da música. Fato que gerou protesto dos seus autores. Abaixo, um trecho da música cantada pelos manifestantes.

Os protestos também foram contra a forma como a polícia agiu, com o respaldo da juíza, motivo que levou os manifestantes a aprovarem representações contra os dois. Algo que ainda será estudado por advogados como pode ser feito.

A juíza Raquel Vasconcelos Alves de Lima é a mesma que, em janeiro de 2013 declinou da competência de julgar os assassinos de três auditores e um motorista do então ministério do Trabalho, em janeiro de 2004, no que ficou conhecido como Chacina de Unaí. Na época em que ela declinou da competência, o que levaria o caso de volta à justiça da cidade mineira, a então subprocuradora geral da República Raquel Dodge, hoje Procuradora Geral da República, considerou o fato um retrocesso. “Estamos convictos de que esse julgamento já poderia ter acontecido há bastante tempo”, afirmou. O julgamento ocorreu em 2015, mas embora os mandantes do crime – os irmãos fazendeiros Norberto e Antério Mânica – tenham sido condenados, até hoje estão em liberdade graças aos recursos que impetraram.

No ato deste domingo, coube a Lenice Mota, que reside com a assessora da reitoria da UFMG, Silva Cozer, relatar como se deu o que chamou de “sequestro” da servidora que se dedica há anos à obra do Memorial. Foi o único depoimento sobre o ocorrido na quarta-feira (06/12) uma vez que, por prevenção, nenhum dos que foram conduzidos coercitivamente pela policia compareceu ao ato. Eles evitam comentar o caso publicamente, alegando sigilo do processo e orientação dos advogados.

Enquanto através de outros relatos se soube de violências e truculências – como tentativas de colocar algemas – em alguns dos conduzidos coercitivamente, no caso de Silvana, sua companheira de residência destacou que  os policiais – dois homens e uma moça – foram gentis. Mas não permitiram chamar advogado na hora. Ouça abaixo o depoimento dela:

Como definiu Betinho Duarte, antigo defensor das causas sociais e membro do Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil – CASC, que participa ativamente da briga pela criação do Memorial da Anistia Política, “Silvaninha” – forma carinhosa como trata a assessora da reitoria – é de dedicação ímpar ao MAP. Em posição semelhante encontra-se Maria Christina Rodrigues, que ajudou a fundar a Associação de Amigos do Memorial da Anistia causa pela qual se dedica intensamente.

Foram os dois que convocaram o Ato deste domingo. Inicialmente, antes da malfadada operação da Polícia Federal, seria na defesa da conclusão do Memorial. Com as truculências promovidas por algumas das equipes da PF,  imediatamente acoplaram à pauta da manifestação os protestos contra as ilegalidades cometidas. Tais como as denunciadas por Cristina Del Papa, da Coordenação do SINDIFES – o Sindicato dos Trabalhadores nas Instituições Federais de Ensino, em Minas Gerais, que divulgamos em Operação na UFMG: divisor de águas?.

A ideia de construir, em Belo Horizonte, um Memorial da Anistia Política surgiu há dez anos, mas ganhou corpo no final do segundo governo Lula, quando o ministro da Justiça era Tarso Genro. Foi acertado o convênio com a UFMG que cedeu o terreno na Rua Carangola, no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte.

O centenário prédio do “Coleginho” está sendo mantido por barras de ferro fixadas em suas paredes por andaimes. Foto Marcelo Auler

O projeto, como se vê no desenho no início desta reportagem, aproveita o centenário prédio do “Coleginho”, onde funcionou o Colégio de Aplicação da Universidade. Trata-se de uma edificação tombada pelo patrimônio público de Minas. Localizada em uma área ao lado do prédio onde funcionou a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – edificação hoje ocupada pela Secretaria Municipal de Educação – o espaço foi palco dos movimentos universitários de oposição à ditadura civil-militar na capital mineira.

O “Coleginho” acabou sendo um empecilho à conclusão, somada à falta de vontade política do atual governo. Antes mesmo de iniciarem as obras, o “Coleginho” teve seu telhado devastado por chuva e vento. A firma que ganhou a concorrência para o Memorial pelo critério do menor preço, originariamente de São Paulo, chegou a refazer o telhado, mas a estrutura antiga do prédio não suportou.

A mudança do telhado, por imperícia e/ou imprudência, ameaçou o prédio que começou a ceder. Desde então – há muitos anos – ele está sendo sustentado por andaimes que fixam barras de ferro em suas paredes impedindo que elas desabem. A falta de fundação na construção exigirá um enxerto para mantê-la em pé. O problema agravou-se com a falência da primeira firma contratada. Uma solução ainda não foi encontrada para o problema, pois falta também a verba para resolvê-lo, já que ela é extra orçamento do Memorial.

O novo prédio foi erguido pela Construtora JRN que, em 29 de dezembro de 2016, de forma direta – ou seja, sem interferência da UFMG, teoricamente responsável pelo projeto e pelos pagamentos – obteve junto ao Governo Federal o valor de R$ 1,132 milhão a que fazia jus pelos serviços já realizados. A verba, portanto, era devida. Estranha foi a forma direta, e um tanto quanto misteriosa, como ela foi liberada em Brasília.

O prédio novo, ao lado do centenário “Coleginho” não pode ser usado por falta de acesso, já que ainda não construíram a praça. Ao fundo,o prédio onde funcionou a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.Foto Marcelo Auler

Com a verba em caixa, em janeiro a construtora desmontou o canteiro de obras no local. Ficou o prédio novo acabado – e vazio – uma praça por ser construída, onde deverá haver um anfiteatro e um prédio que fará a ligação da nova construção com o “Coleginho”.

Isolando-se o prédio centenário e construindo a praça de acesso ao novo prédio, o Memorial poderia estar em funcionamento. Sem isso, a universidade gasta com seguranças para que não haja invasão do terreno, como vizinhos dizem já ter ocorrido no passado.

O sigilo na investigação policial impede que se saiba muita coisa sobre o que a Polícia Federal vem investigando. A partir de informações de quem conhece o caso, sabe-se que “há indícios de fatos graves”. Mas, mesmo estes agentes públicos consideram que houve exageros na operação da PF.

É fato também que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) em Minas Gerais investiga a paralisação da obra. A ela, porém, não cabe investigar possível desvio de recursos o malversação de verba pública. Isto fica a cargo do Núcleo de Combate à Corrupção do MPF em Minas. Ela busca a responsabilidade pela paralisação do projeto o que, por si só, pode ser considerado uma “malversação”. Afinal, um prédio praticamente pronto está paralisado.

Também não se pode ignorar o desprestígio no governo golpista de qualquer política relacionada à área de chamada Justiça de Transição que lida com a investigação dos crimes e irregularidades no período ditatorial, na expectativa de responsabilizar culpados. Trabalho que tem se mostrando bastante difícil nos dias atuais. O desprestígio deste setor pelo atual governo golpista é evidenciado pelo fato sintomático de que a Comissão de Anistia, criada em 2002 no governo de Fernando Henrique Cardoso, encontra-se sem presidente. O último, Arlindo Fernandes de Oliveira, pediu demissão do cargo com críticas à condução do ministro da Justiça, Torquato Jardim, em setembro.

Faixa produzidas pelas bordadeiras que compõem o grupo “Bordando a Liberdade” (Foto: Marcelo Auler)

Ao falar á imprensa no dia da malfadada operação policial, 06/12, o delegado federal Leopoldo Lacerda apontou possíveis desvios em torno de R$ 4 milhões e irregularidades com os bolsistas contratados pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) da UFMG.

Na decisão que autorizou as conduções coercitivas, a juíza Raquel Vasconcelos fez constar: “na execução do contrato com a FUNDEP, verificou-se que a maior parte da verba foi gasta no pagamento de bolsas de estágio, extensão e diárias, apurando-se irregularidades na concessão de bolsas“.

Os bolsistas foram contratados para pesquisas que serviram ao preparo do material permanente do Memorial. Parte deste material foi exposto, a partir de 31 de agosto, no Centro Cultural da UFMG, na mostra Desconstrução do esquecimento: golpe, anistia e justiça de transição. Esta iniciativa gerou divergências, pois o Ministério da Justiça e o Tribunal de Contas da União foram contrários.

Na sua decisão a juíza diz que “as apurações indicaram ainda irregularidades nos pagamentos realizados aos bolsistas W.B.A., A.B., J.R.G., L.B.P.G. e L.S.A.M. (N.R.: o Blog omitiu os nomes antes de ouvi-los). Consta que vários contratos foram assinados pela Vice-Reitora à época, Rocksane de Carvalho, na condição de coordenadora do projeto pela UFMG, e que os borderôs, com suspeita de falsidade ideológica, foram assinados por Sandra Regina de Lima, gerente de finanças da FUNDEP“. (grifo do original)

No caso, J.R.G. é o professor Juarez Rocha Guimarães, 63 anos, há 45 militando na esquerda e reconhecido no meio acadêmico como um dos professores mais dedicados ao estudo e ao combate à corrupção no Brasil. Tanto assim que, dois dias antes da malfadada operação ele deu palestra na Escola da Controladoria Geral da União (CGU), em Belo Horizonte, sobre “Os Caminhos de Combate à Corrupção”.

No dia em que a Polícia Federal levou seus companheiros de Universidade coercitivamente para deporem – sem que nunca antes tivessem sido convocados – Guimarães estava em Ouro Preto, interior de Minas, descansando. Lá o Blog o encontrou e o ouviu no final de semana.

Exposição na UFMG Desconstrução do esquecimento: golpe, anistia e justiça de transição. (Foto: site da UFMG)

Explicou que a bolsa que recebeu foi por um período curto e um valor pequeno. Distante de casa e dos documentos, não soube precisar, mas diz que foi na época em que Rocksane de Carvalho era vice-reitora (2010/2014). Ou seja, no mínimo há três anos, provavelmente mais.

“O fato de eu ter recebido uma bolsa é uma coisa normal, neste contexto. Tive participação intensa em reuniões, na elaboração do projeto museográfico do Memorial, que condicionava toda a pesquisa. Porque as pesquisas eram feitas em função das concepções do Memorial. Eu recebi por um período curto, não lembro exatamente o ano (…) De fato meu trabalho no Memorial foi intenso e a maior parte foi trabalho não pago. Foi pela causa”, explicou.

Estas pesquisas, segundo ele, permitiram o  levantamento do “maior arquivo no Brasil de dados sobre a repressão na Ditadura Militar e sobre as lutas que se fizeram contra a ditadura militar“:

É o maior arquivo já construído e eles dizem que as bolsas eram fantasmas“.

Curioso, também, é que segundo ele explicou, ainda na gestão de José Eduardo Cardozo à frente do Ministério da Justiça, e com a participação do então presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, hoje secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a coordenadora do Projeto República – que abarcava todas as pesquisas para o memorial -, professora Heloísa Starling, apresentou um relatório detalhado ao Conselho Curador do Memorial, do qual Guimarães faz parte. Por isso causa maior estranheza a forma como a operação policial foi realizada.

Cada bolsista nós conhecemos, são estudantes, são professores. Já foi apresentado, e eles têm acesso a isso, o nome de cada bolsista e o que cada bolsista fez na pesquisa. Apresentado ao Ministério da Justiça, em datas que não as tenho à mão. O relatório apresentado pela coordenadora da pesquisa, professora Heloisa Starling, contém tudo o que foi pesquisado, os bolsistas, o nome de cada um deles. Esse trabalho de documentação foi todo feito e certamente a Polícia Federal e a CGU têm acesso a isso”, esclareceu, estranhando as suspeitas levantadas.

Por todos estes motivos expostos pelo professor Guimarães é que na comunidade acadêmica de Minas Gerais – e, de resto, em outras Universidades espalhadas pelo Brasil – causou estranheza o modo como está sendo feita a apuração dos possíveis desvios indicados pela Polícia Federal, TCU, CGU, o próprio MPF e, ao final, a juíza.

Ninguém está acima da lei, é verdade. As suspeitas devem ser investigadas. Mas dentro do devido processo legal e, acima de tudo, da civilidade no trato com as pessoas, por mais suspeitas que sejam.

Tampouco a possibilidade de erros ou mesmo ações criminosas – caso tenham ocorrido, ressalve-se – jamais poderão justificar o fim do projeto do Memorial da Anistia Política. Trata-se de algo que o Brasil está fazendo com atraso perto de outros países que vivenciaram as atrocidades das ditaduras civis-militares.

Foi em defesa deste projeto e da autonomia da UFMG – o que não significa que ela estaria blindada de apurações sobre possíveis irregularidades – que centenas de pessoas se reuniram no domingo na frente de onde será o Memorial. Foi o início de uma mobilização que promete ser longa, inclusive com outra manifestação hoje, na UFMG. Provavelmente com a presença da ex-presidente Dilma Rousseff. Ao final do ato de domingo em defesa do MAP, houve um abraço simbólico, como mostra o vídeo abaixo.

Tal e qual admitimos na postagem Operação na UFMG: divisor de águas? a malfadada operação policial contra os coordenadores do projeto do Memorial da Anistia Política do Brasil poderá ter um efeito bumerangue. Não apenas na urgente e necessária revisão dos métodos adotados pela Polícia Federal, MPF e alguns juízes com relação às conduções coercitivas.

Mas, no caso específico da UFMG, poderá desencadear uma campanha, como proposto por Luis Nassif em Memorial da Anistia: não há de ser inutilmente, na defesa e na arrecadação de fundos para a conclusão da obra, independentemente da má vontade política do Governo Temer. Com um detalhe, o espaço que Nassif propõe que seja criado para expor as Músicas em Favor das Liberdades Civis já está previsto no projeto original, segundo os organizadores.

(*) Registramos nosso agradecimento ao casal Graça e José Carlos, moradores defronte do MAP, por nos permitir o acesso à residência para fotografarmos as obras do Memorial.

 

 

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1 Comentário

  1. João de Paiva disse:

    Como ex-aluno da UFMG solidarizo-me com toda a comunidade universitária vítima dessa violência do aparato repressor do Estado. A ditadura midiático-policial-judicial – que usa togas, coletes, paletós, microfones, holofotes e a máquina de destruir e assassinar reputações, honras e corpos – precisa ser chamada pelo que de fato é: uma ditadura de caráter nazifascista.

    Parabéns a Luís Nassif (mineiro de Poços de Caldas), a Marcelo Auler – esse gigante do jornalismo investigativo, que não teme retaliações, perseguições e ameaças feitas pelos criminosos de Estado, hoje enquistados na PF, no MPF e no PJ. Marcelo Auler e Luís Nassif estão fazendo o que a imprensa mineia – toda ‘comprada’ e servil a o tucanato local, chefiado pelo gângster Aécio Cunha – não fizeram, não estão fazendo e não farão: jornalismo investigativo, com apuração de fatos graves e denúncia jornalística baseada em depoimentos e provas.

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