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Marcelo Auler

Ulysses Guimarães promulgou aquela que denominou de Constituição Cidadão, hoje Balzaquiana, porém, necessitando de "retoques".

Ulysses Guimarães promulgou aquela que denominou de Constituição Cidadão, hoje Balzaquiana, porém, necessitando de “retoques”.

A crise política, aparentemente sem precedentes, que todos vivenciamos e sofremos na pele, nos leva a uma constatação dolorosa. Nossa jovem democracia – reiniciada em 1985 e consolidada com a Constituição, em outubro de 1988 – está ameaçada. Vivemos momentos dignos de autoritarismo. O que serve para demonstrar que a Carta Magna, que Ulysses Guimarães orgulhosamente cunhou de Cidadã, recém-ingressada na chamada fase “Balzaquiana”, hoje necessita de “retoques”, pequenos remendos.

Prova maior da necessidade desses “retoques” é a impossibilidade que o país se depara em resolver a crise política com o uso e o respeito ao que a Carta determina. É mais do que claro que o país anseia por uma ampla reforma política/eleitoral. Mas não apenas isso. O que se questiona é se esse Congresso que aí está terá interesse em fazer as mudanças que necessitamos, muitas das quais eliminarão de vez as chances de vários parlamentares voltarem a Casa.

Uma das primeiras previsões constitucionais a clamar por mudança é a de que, mesmo faltando mais de ano para o encerramento do mandato presidencial, a possível escolha de um novo presidente se dê por voto indireto dos congressistas. Muitos dos quais, suspeitos de crimes parecidos com os que o presidente Michel Temer está sendo acusado e que deverão derrubá-lo do cargo.

Isso, no fundo, contradiz um princípio básico da democracia de que “todo poder emana do povo e em nome dele será exercido”. Bem como vários outros artigos da própria Carta que enaltecem e incentivam a participação popular pelo voto.

Nas duas Casas essencialmente colegiadas, determinadas decisões ficam a cargo exclusivamente de seus presidentes, que passam a atuar conforme interesse pessoal. Foto Reprodução.

Nas duas Casas essencialmente colegiadas, determinadas decisões ficam a cargo exclusivamente de seus presidentes, que passam a atuar conforme interesse pessoal. Foto Reprodução.

Mas, não é tudo. Como admitir, por exemplo, que o pedido de impeachment de um presidente da República, ou mesmo de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), fique a mercê de uma única cabeça, como ocorre hoje. Pela Constituição Cidadã, cabe ao presidente da Câmara e ao presidente do Senado, em decisões monocráticas, darem ou não prosseguimento aos pedidos de impedimento do presidente da República ou de um ministro do STF, respectivamente.

Ou seja, em duas Casas essencialmente colegiadas, uma única pessoa decidirá se submete tais pedidos aos seus pares – 80 senadores (no caso de ministro do STF) e 512 deputados (quando envolve o presidente) – para dar prosseguimento ao processo de cassação.

Democraticamente estas questões não deveriam ser decididas pelo colegiado? Seja o colégio de líderes ou mesmo as Comissões de Constituição e Justiça de ambas as casas?

É evidente, como se tem verificado atualmente, assim como se verificou exemplarmente com Dilma Rousseff, no ano passado, que a decisão não será jamais motivada por questões técnicas ou legais, mas por interesses pessoais e/ou partidários.

Eduardo Cunha decidiu levar adiante o impeachment de Dilma após o PT não ter lhe garantido a absolvição na Comissão de Ética. Já Renan Calheiros, quando presidente do Senado, e já investigado em inquéritos no Supremo, não deu prosseguimento às duas solicitações de impedimento do ministro Gilmar Mendes, assinadas por dois grupos de juristas.

Atualmente é Rodrigo Maia quem está sentado em cima de 11 pedidos diferentes de impedimento do presidente Michel Temer,

Rodrigo Maias (DEM-RJ) sentou em cima dos pedidos de impeachment contra Temer; Eduardo Cunha (PMDB-RJ) só liberou o de Dilma Rousseff depois que o PT não lhe deu voto na Comissão de Ética; Renan Calheiros rejeitou todos os pedidos contra Gilmar Mendes. É certo dar esse poder aos presidentes das duas Casas?

Rodrigo Maias (DEM-RJ) sentou em cima dos pedidos de impeachment contra Temer; Eduardo Cunha (PMDB-RJ) só liberou o de Dilma Rousseff depois que o PT não lhe deu voto na Comissão de Ética; Renan Calheiros rejeitou todos os pedidos contra Gilmar Mendes. É certo dar esse poder aos presidentes das duas Casas?

muitos deles assinados não por um parlamentar – como Maia – mas por vários deles.

Algo parecido ocorrerá com um pedido de ação penal contra o presidente da República. Reza a Constituição que ele só será apreciado pelos ministros do STF – aos quais caberá reconhecer a procedência jurídica – se autorizado pela Câmara dos Deputados.

Tal autorização dependerá da aprovação por dois terços dos parlamentares. Ou seja, com 171 votos a favor do presidente, o processo não será instaurado. Abre-se então um balcão de negócios onde, como sabemos, vale tudo, menos o interesse direto da sociedade.

É de se questionar se esta regra não deveria ser invertida. No Direito Penal, na hora de acatar um processo criminal, os magistrados usam a máxima “in dubio pro societate“. Somente na hora de sentenciar é que o princípio muda, passando para “in dubio pro reo“. Não seria o caso, diante de um pedido de processo contra um presidente, na dúvida, prevalecer o interesse da sociedade? Ou seja, abre-se o processo caso ele não obtenha dois terço dos votos da Câmara contrários ao pedido e se examina as provas. Na sentença, persistindo a dúvida, prevalece o benefício a favor do réu.

A crise nos mostra que outras mudanças se fazem necessárias. Como, por exemplo, a escolha do Procurador Geral da República. Pela regra constitucional, é uma escolha de livre arbítrio do presidente da República. Fernando Henrique Cardoso usou esse direito para manter no cargo o engavetador-geral, Geraldo Brindeiro. Graças a ele, vários atos de corrupção do passado jamais foram investigados. Inclusive as denunciadas falcatruas cometidas pelo próprio Temer, na década de 90, no Porto de Santos.

Se ao procurador-geral da República cabe a função de fiscal da Lei e fiscal da sociedade, não seria mais democrático deixar o eleitor escolher pelo voto direto quem deve ocupar a função. Isso não ajudaria a impedir as trocas de favores, tanto quando da indicação, como na sabatina no Senado e, depois, no exercício do cargo?

A prática adotada pelos governos petistas, que ao contrário dos tucanos acolheram as indicações feitas pela lista tríplice votada pelos procuradores da República, continuaria, porém, aperfeiçoada. Como o procurador-geral é chefe de todo o Ministério Público da União (MPU), a escolha de três nomes se daria entre todos os membros do MPU. Isso, ao contrário do que acontece na atual lista tríplice, incluiria procuradores do Trabalho, procuradores militares e os procuradores do Distrito Federal e Territórios.

Caberia ao Senado sabatinar não um indicado, mas os três nomes mais votados, em sessão pública, transmitida por todos os meios de comunicação, inclusive redes sociais. Os aprovados, depois se submeteriam ao voto secreto dos eleitores em geral. Pode-se falar, inclusive, em modificar o mandato que atualmente é de dois anos, para quatro anos. Jamais coincidente como de presidente da República. Sem direito à reeleição.

Há quem conteste, alegando que isto politizaria de vez a função. Mas ela já não está politizada? Tanto para ser aprovado entre os colegas,como para ser indicado ao Senado e ainda, lá, ao ser sabatinado, não há todo um jogo de interesses políticos? Entre acordos e negociações com políticos não seria preferível o sufrágio dos eleitores?

“Há algum tempo essa corte perdeu sua capacidade de ação…” (Foto: Fellipe Sampaio/SCO-STF)

Não está na hora da Constituição prever controles do Supremo Tribunal Federal, único dos órgão públicos para o qual não há fiscalização de terceiros?

A mesma regra valeria ainda para a escolha, ao menos, dos membros do Supremo Tribunal Federal cuja lista de nomes seria preparada pela presidência da República. Preferencialmente consultando magistrados, advogados e Ministério Público, respeitando a divisão que existe nos tribunais com três quintos das vagas para magistrados e as outras cadeiras divididas meio a meio entre MP e advogados. Com um impedimento apenas. Na vaga dos magistrados não poderiam entrar membros de tribunais superiores nomeados pelo quinto da advocacia ou do ministério público.

É certo que uma Constituição, embora ampla, não deve descer a detalhes a serem definidos por legislação infraconstitucional. Mas, pelo que se tem visto no dia a dia do Judiciário, inclusive e, principalmente, do Supremo, está mais do que na hora de definir na Carta Magna princípios que garantirão a democracia nos julgamentos. Em especial no STF, que por ser a mais alta corte, não se sujeita a qualquer espécie de fiscalização.

São exemplos os motivos de impedimento e suspeições de magistrados em geral. Jamais alguém como Gilmar Mendes, que já se vangloriou de ser amigo de décadas de Michel Temer e que dele ganhou carona aérea para Lisboa, poderia continuar participando dos julgamentos em que Temer, como presidente ou como cidadão, tenha interesse.

Da mesma forma, não é possível a sociedade conviver – sem que ninguém tome providências contra – com os chamados “pedidos de vista” que magistrados de tribunais e do próprio Supremo usam como artifício para impedir uma decisão que lhes é desfavorável ou com a qual não concordam.

Trata-se, portanto, de um pequeno e limitado apanhado de mudanças que a prática democrática nos últimos 32 anos mostrou serem necessárias. Sem falar na reforma político/eleitoral, incluindo a limitação de partidos políticos e uma forma de não mais se permitir o leilão do tempo de Televisão, comum entre os partidos de aluguel.

A grande dúvida é saber quem irá propor tais mudanças que, necessariamente, acabam exigindo uma antecipação das eleições previstas para outubro de 2018.

3 Comentários

  1. João de Paiva disse:

    Sempre acostumado ao trabalho de repórter que Marcelo Auler demonstrou possuir, é com grata surpresa que leio esta análise política por ele elaborada. O repórter competente e destemido mostra, agora, sua competência como analista político. Não duvido que Luís Nassif, que nuca deixou de ser repórter, mas que há quase duas décadas se mostra uma analista refinado não só de Política, mas também de Economia, tenha incentivado Marcelo Auler a escrever artigos opinativos e análises como esta.

    Embora a atual composição da Câmara e do Senado seja, de longe, a pior da História, existem nas duas casas alguns parlamentares que acolhem sugestões dos cidadãos e que podem formular projetos de lei visando uma reforma política; como exemplo, lembro os deputados Paulo Pimenta e Jorge Solla, assim como os senadores Paulo Paim e Vanessa Graziotin.

    Concordo com as sugestões apresentadas por Marcelo Auler e tenho várias outras. Mas para levá-las a termo somente uma ANC exclusiva – em que sejam colocados critérios mais rigorosos para os postulantes, além de restringir a candidatura deles por pelo menos duas legislaturas – terá condições.

  2. Márcio Antônio Rezende disse:

    Marcelo, tenho falado isso há anos. Sou um evangelizador nessa área e acredito que isso deva se dar em relação todas as procuradorias em todas as esferas.

  3. Diogo disse:

    Suas ideias são excelentes e necessárias. Mas infelizmente considero pouquíssimo provável que sejam um dia implantadas no Brasil, ainda mais se considerarmos que poucos países (será que tem algum?) escolhem procuradores e juízes do Supremo por eleição popular.

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